O resto do Verão decorreu em grande azáfama, entre a renovação completa da casa e do telhado, as exigências das novas culturas que ensaiavam nos campos antes desperdiçados, também nos convites que recebia e retribuía contribuindo com a sua presença para o reanimar da vida social da aldeia. Nunca mais viu ou se preocupou com a sombra, ao ponto de acreditar que tudo resultara da emoção da chegada e do estado de espírito amargurado que a trouxera até àquelas paragens longínquas, tão propício a deixar-se dominar pelo medo da solidão.
Voltou para Lisboa no fim do Outono, para o casamento do filho. Os caseiros esperavam-na lá fora, junto ao portão da quinta, aguardando tristonhos as despedidas mas, antes de fechar a casa da aldeia, foi ver mais uma vez a ala dos aposentos do sogro, agora recuperada, e deixou escancarada a porta do corredor para que, na sua ausência, entrasse um pouco de luz. Foi então que ouviu, sim, ouviu nitidamente, um silvo estranho, de início um soar tímido mas suplicante, uma espécie de lamento contido que cresceu como se fosse incontrolável e logo invadiu a casa quieta, fazendo-a vibrar na sua penumbra. Sorriu com doçura, quase com gratidão, como se sentisse o sofrer de alguém e estivesse ao seu alcance dar-lhe o remédio para tal dor, mas não pôde impedir as batidas fortes do coração antes de se arriscar a encarar a sombra. Afagou as orelhas do cão, na tentativa vã de lhe acalmar os latidos agudos, ganhou coragem e a sua voz soou, alto e bom som no vazio da casa, “sossegue, eu volto em breve, mal chegue a Primavera estou cá, depois de nascer o meu neto, um dia vamos ensiná-lo a gostar da quinta”, o gemido cresceu numa ansiedade tremenda e ela quase a gritar “eu volto, descanse!”, e nesse momento a sombra desenhou-se enfim à sua frente, grande como um homem, um pouco curvada como era o sogro, autoritária e nítida, assumindo a atitude de ousadia desesperada de quem não quer nem aceita ser esquecido. Foi então que ela a olhou, firmemente e, sem qualquer tremura na voz, acrescentou: “Prometo”.
A caseira acercou-se e espreitou pela porta da rua entreaberta, intrigada com tanta demora, mas apenas viu as paredes brancas na casa silenciosa e a senhora curvada sobre o cão, a fazer-lhe um último afago no pêlo eriçado e nas orelhas pontiagudas. Ainda estranhou um lampejo cúmplice que se desvanecia nos olhos da patroa, mas virou costas, resmungando que se fazia tarde para se meter ao caminho, se queria chegar a Lisboa antes de ser noite escura.
Ela fechou a porta devagarinho, com a estranha certeza de que também ali deixava a sua alma, na Casa da Sombra, a aguardar por ela até à Primavera.
A existência de cada um de nós, serve o cumprimento de um destino.
ResponderEliminarNo caso da Heroína, estou certo que o seu destino não se limitou à reabilitação da "Casa da Sombra". Não é de bom tom exigir dos autores, mas... não seria possivel antecipar um pouco a próxima Primavera, cara Drª. suzana?!
;))
Como sinal de gratidão pela sua belíssima escrita, e porque lhe ficou dos bancos da escola, o gosto pelo português arcaico, vou transcrever o poema que El-Rei D. Dinis ofereceu a Isabei de Aragão, no castelo de Trancoso, naquela que iria ser a primeira noite de amor do casal, não fosse o destino tê-la transformado na noite mais negra da vida da Rainha Santa, dado que, logo após ter ouvido D. Dinis cantar-lhos, chegaram ao castelo mensageiros de Castela, trazendo-lhe a notícia da morte do pai, El-Rei D. Pedro III de Aragão.
Espero que goste, cara Drª. Suzana;
Vós mi defendestes, senhor,
que nunca vos disse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor,
por Deus, senhor, a quem direi
quam muito mal levei
por vós, se nom a vós, senhor?
Ou a quem direi o meu mal,
se o eu a vós nom disser,
pois calar-me nom m'é mester
e dizer-vo-lo nom m'er val?
E pois tanto mal sofr'assi
se convosco nom falar i
por quem saberdes meu mal?
Ou a quem direi o pesar
que mi vós fazedes sofrer
se o a vós não for dizer,
que podedes conselh'i dar?
E por em, se Deus vos perdom,
coita deste meu coraçom,
a quem direi o meu pesar?
Cara Dra. Suzana Toscano,
ResponderEliminarJá esperava: uma maravilha! A realçar mais uma vez a sua veia de romancista.
Confesso que a ideia de ver acrescentados outros tantos folhetins a esta “casa da sombra” me sorri. Bastaria que tivesse acrescentado, logo no primeiro folhetim, pormenores sobre a vivência da família na casa de Lisboa, criado o enredo que levou esposa e mãe a regressar à “casa da sombra” e depois, a descrição da casa, talvez abastada, com belos terraços de onde se avistava com desafogo encantador o horizonte sem limite…
Mistérios e casas assombradas povoam desde sempre o nosso imaginário, são fonte inesgotável de escrita, de folhetins a romances, coisas que o brilhante talento da autora sabe pôr em palavras...
Enfim, gulosei seis folhetins, gostaria que fossem muitos mais, mas porventura faltar-lhe-á tempo, para nosso mal...
Lindo, caro Bartolomeu, já não me lembrava como o português arcaico tem esta sonoridade e como então se transmitiam sentimentos com tanta delicadeza, muito obrigada pelo presente e por se lembrar dessa referência que fiz :)
ResponderEliminarCaro jotac, se um pequeno conto consegue despertar a imaginação dos leitores para o que ali não está escrito isso significa que ao menos a leitura conseguiu "envolver" o leitor com o ambiente e os personagens, que mais pode pedir um escrevinhador? É claro que cada tema pode desdobrar-se em vários, tal como diz há nas curvas e contracurvas da vida mil pequenas estórias que podem ser contadas. Cá virei de vez em quando tentar a paciência do sleitores com mais "instantãneos" da vida real. Tempo não tenho muito, mas tenho muito gosto em usar o tempo que tenho a escrever neste blogue para esta simpática comunidade de leitores. Muito obrigada.
Devido a algum "empolgamento" mas, sobretudo, por força da minha perpétua distração (sou daqueles que nasceu com o cordão umbilical à volta do pescoço, já todo roxinho da silva, prestes a bater a caçoleta, estes "acidentes" deixam marcas irreversíveis de vária ordem, no meu caso, passa-me muito ao lado que não vejo, noutras alturas, acabo a ver aquilo que não desejava, mas pronto, isso já é outra estória) referi que iria transferiar o poema, e esqueci-me de mencionar a fonte. Neste caso, foi retirado do romance da minha Amiga Cristina Torrão, intitulado "D. Dinis - A quem chamaram o Lavrador", páginas 112, editado pela Ésquilo.
ResponderEliminar«O seu, a seu dono»
;)
Uma protagonista com uma vida um pouco atribulada e que, inevitavelmente, se depara com vários caminhos a seguir.
ResponderEliminarGostei, cara Susana. Muito.
Cara Suzana:
ResponderEliminarDizer que gostei da novela é redundante. Bem escrita, suspense em cada episódio. Fim inesperado. O Bartolomeu trouxe-nos as cantigas de amigo. Também gosto delas. Mas, agora, prefiro alguma prosa de mal-dizer.
Primeiro que tudo, a novela atenta contra os bons costumes. Veja-se que a heroína teve a última conversa com o espírito do sogro nos fins do Outono, quando deixou a casa assombrada para o casamento do filho. Mas prometeu voltar no princípio da primavera, depois do nascimento do neto. O que atesta que o fedelho já tinha sido depositado em sítio certo antes do casamento. Está mal! A heroína podia disfarçar, não aludindo a tal evento ou prometer voltar só no inverno, dando tempo ao espírito para contar os nove meses da praxe. Assim, creio que acabou por escandalizar o espírito ainda mais e terá certamente que se ver com ele.
Depois, que dizer do regresso ao obscurantismo assustador das almas penadas?
Que vai deixar meio mundo a dormir mal. Que vai pôr toda a gente a investigar as sombras que crescem, enchem paredes,se aninham aos pés e sobem ao colo e ao pescoço!...
Ou que mal se entrevêem, mas dão claro sinal de si. Já não nos faltava a Troyca e a Suzana vem com essas novelas assustadoras?
A Suzana não foi capaz de arranjar um final mais patriótico? Francamente, Suzana!...
Faça favor de começar já outra novela!
:)
ResponderEliminarQuem sabe, por intervenção de algum espírito brincalhão, o meu comentário anterior, desapareceu.
ResponderEliminarVou tentar recupera-lo, recorrendo à memória.
Referindo-me ao comentário do caro Dr. Pinho Cardão, opinei que a decisão tomada pela heroína da estória em comunicar à sombra que o filho casaria no Outono e que na Primavera já seria pai, parece-me ter sido a mais acertada, como forma de apaziguar a ira do fantasma, o qual deve ter pensado: «vê-se logo que este bisneto, é o puro-sangue da família!».
;))
Quanto à questação da inquietação que estes episódios possam causar a alguém, só me estou a lembrar de Isabel Allende, que os poderá interpretar como uma sombra a pairar sobre a sua "Casa dos Espíritos".
Mas a Chilena que tenha paciência porque, até chegar próximo do estrelato onde a NOSSA autora já cintila, vai ter ainda muitos degraus para subir.
http://www.youtube.com/watch?v=7YZb8s7Kxa4
;)))
Suzana
ResponderEliminarMas A Casa da Sombra não pode acabar já, temos que saber como vai ser a vida desta mulher em Lisboa, como vai ela aguentar estar tanto tempo longe de um lugar que a fez reviver. Foi uma mudança muito repentina. Não podemos aguentar tanto tempo à espera da próxima Primavera. É muito tempo, nem pensar! A Suzana tem que atender aos seus leitores fãs, não nos pode deixar assim sem mais nem menos...
Catarina, temos que deixar tempo para que os caminhos se desenhem, ainda bemq ue gostou.
ResponderEliminarCaro Pinho Cardão, isso de o primeiro filho nascer 9 meses depois do casamento seria mais assobroso que o fantasma, então o meu amigo não sabe que agora se faz aoa contrário, primeiro assegura-se a descendência e depois, com sorte, vem o casório, aqui o meu folhetim segue todas as tendências da modernidade, faz parte da técnica realista, em contraste com o que chama "obscurantismo assustador das almas penadas", tudo conjugado e aí tem o que até parece mesmo uma estória verídica :)espero que a troika se inspire aqui, por isso deixo o fim à imaginação, porque quem escreve as cartiolhas são eles, nós só temos que seguir o guião... Vou levar a sério essa intimação, depois não lhe serve de nada vir pedir clemência!
caro Bartolomeu, excelente réplica, sim senhor, gostei mesmo muito da parte em que invoca Isabel Allende e a Casa dos Espíritos, por alguma razão o filme baseado no livro foi filmado em Portugal, ela lá sabe onde decorrem as estórias que vale a pena contar.
Margarida, ai, ai, eu a querer deixar a heroina em paz e afinal pede-me que continue de olho na vida dela, nunca se sabe que voltas o mundo vai dar mas acho que pode dar como certo que ela vai cumprir a promessa, que com as almas não se brinca :)
Cara Suzana:
ResponderEliminarE não é que tem razão nessa questão do pimpolho? De facto, a não ser como disse, para além da casa, haveria também um casal assombrado!...
É isso Pinho Cardão, os casais de hoje são muito desassombrados mesmo :)
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