Nova Iorque, ao anoitecer. Uma família de turistas, pai, mãe, duas crianças, esperavam no passeio que abrisse o semáforo para os peões. Do outro lado da avenida, esperava também para atravessar uma estranha figura, alta, negra, desgrenhada, o corpo escanzelado a boiar num casaco larguíssimo, agarrada a um velho carrinho de compras ajoujado de trouxas e, em cima da pilha, espalhava-se, aberto, o que parecia ser um casaco com uma manga a descair para fora, a arrastar pelo chão.
Abriu o semáforo, o pai agarrou com firmeza a mão das filhas, uma de cada lado, a mãe seguia logo atrás, apressados para passar a tempo do sinal verde, cruzaram-se com a “sem abrigo” a meio da avenida, ia vacilante a empurrar a sua tralha e a turista reparou, pasmada, que ela se equilibrava a custo no que parecia ser uns sapatos de salto alto, que mal segurava nos pés magros. Passou por eles num chocalhar de metal do carro desengonçado e, um instante depois, ouviu-se um estardalhaço e a mulher caíu estatelada no chão, a meio da travessia, a brandir os braços como um boneco desarticulado, tentando a custo que o carrinho não entornasse a sua carga por cima dela. A turista, num impulso, gritou ao marido segue! segue! e correu atrás a ajudá-la a levantar-se. Curvou-se sobre o vulto caído cuja face negra mal se distinguia no escuro e estendeu-lhe a mão, mas ela encolheu-se como um animal ferido, lançou-lhe do chão um olhar fulminante, que brilhou de ódio e terror, levantando um braço a proteger a cara, como se temesse uma agressão, enquanto a outra mão agarrava o apoio do carrinho com a força de uma garra que não larga a sua presa. Não havia tempo a perder, o semáforo dos peões já passara de verde a intermitente, os automóveis roncavam ao fundo da avenida, a turista puxou-a com força pela mão ossuda e gélida, “let me help you”, dizia para a acalmar, o carrinho de compras estava a tombar, encravado, sem a largar soltou da roda a manga que provocara o acidente, o casaco ficou no chão, não havia tempo a perder, a outra torcia os pés para se mover com os sapatos impossíveis e não se sabe como conseguiu levá-la de roldão até ao passeio, com o carrinho à frente, num equilíbrio miraculoso. Os faróis aproximavam-se perigosamente, um último impulso para vencer o degrau sem virar o carrego e chegaram sem fôlego ao passeio, mesmo a tempo de ver os carros a passar por cima do casaco abandonado no asfalto, as luzes a iluminar o instante e logo o casaco revolteava, pisado, enrodilhado, atirado de um lado para o outro, depois vir outro e pisá-lo, uma e outra vez, até ficar um farrapo inerte passada a revoada do trânsito. A turista acenou para o outro lado, a sossegar a família perplexa, mas a “sem abrigo” parecia não entender o que se tinha passado, paralisada a olhar fixamente para o casaco velho estraçalhado pelas rodas e de repente, num gesto irado, brandiu para a outra o braço esquelético, numa agressão imaginária, gritando-lhe com voz rouca “Damn you!” e desapareceu na esquina, com rapidez surpreendente, a praguejar arrastando o carrinho e a chinelar os sapatos de salto alto.
Quando se juntou à família, do outro lado da avenida, as crianças perguntaram à mãe combalida “o que é que ela te disse, mãe, assim com o braço no ar?” e ela respondeu baixinho, “ora, filhas, o que havia de ser, disse “thank you”.
Devia tratar-se de mais uma vítima daquelas que por todo o mundo, surfa a grande vaga de desemprego.
ResponderEliminarO casaco, um "Versace" constituia o derradeiro sinal de que pertencera em algum tempo, a um mado fashion, um mundo glamoroso que sempre julgou inabalável, construído sobre solidos alicerces.
Enganara-se, afinal, tratava-se de um mundo completamente ilusório, povoado por figuras imaginárias, insólitas, vasias... aquele casaco, era o derradeiro sinal de que a sua vida não tinha sido um sonho, e que na realidade, em algum tempo da sua vida, tinho sido ums estrela que brilhara num determinado céu. Um céu onde as estrelas tÊm uma duração limitada de... 5 anos, na melhor das hipoteses, de 10 anos, mas nunca mais do que isso. "Damn you, fantasy"!
Cara Dra. Suzana Toscano,
ResponderEliminarParece-me que este quadro, o quotidiano da mendiga a atravessar as ruas movimentadas de NY empurrando um carrinho de supermercado com os seus haveres, pode ser entendido como o estereótipo do mendigo americano, oriundo das camada marginais de negros, anti-social e altivo, como se verifica pela expressão de agressividade gestual e verbal da sua personagem, que o cinema americano aproveita para ilustrar de forma pitoresca alguns filmes
Delicioso, Suzana. Só mesmo por amizade é que a minha Amiga gaba os meus retratos, humildes ao pé destes seus...
ResponderEliminarOra caro Drº Ferreira de Almeida, a modéstia tem limites! Os seus quadros são muuito lindos, e da "arte do pintor",nem se fala!
ResponderEliminarTenho-os admirado, embora sem palavras...
Caro Bartolomeu, desta vez ganhou em imaginação a toda a linha, eu só tinha pensado que fosse um casaco velho que alguém lhe deu por caridade, mas a sua versão lembrou-me a lindissima canção Memory, que vi no musical Cats, sabe qual é?
ResponderEliminarSim, caro jotac, era uma figura típica das ruas de NY, quando lá estive há tantos anos que por cá ainda não havia sem abrigos...
Zé Mário, cada um faz quadros com o que tem, mas olhe que a sua máquina fotográfica é realmente de grande qualidade, sobretudo se nas mãos de quem sabe olhar e ver.
Sei perfeitamente a que canção se refere, cara Drª Suzana.
ResponderEliminarA mim, lembrou-me um tema mais nacional cantado por João Pedro Pais: http://www.youtube.com/watch?v=2kM81Fqmbi8
Se houver uma próxima vez...
;)))
Há episódios das nossas vidas que nunca se esquecem. Podem estar adormecidos, mas volta e meia são acordados. Mais um quadro pintado do talento a que a Suzana já nos habituou.
ResponderEliminarFica o tema, caro Bartolomeu, espero que não hája outra oportunidade :)
ResponderEliminarPois é Margarida, cá ficam, à espera de serem contadas.