terça-feira, 28 de agosto de 2012

O fumador

Horace Fabregoulle era um misto de pobre diabo e de impertinente que era preciso ter em conta, uma figura absolutamente desconcertante que ficava na memória dos que tinham que conviver com ele. Era rotundo e baixo, movia-se com passos incertos e uma moleza indolente, como se hesitasse sempre no caminho, e falava pausadamente ao mesmo tempo que fazia rebolar nas órbitas uns olhos azuis aguados, desmesurados e infantis, parecendo que sentia emoções intensas que a sua fala não conseguia acompanhar ou enunciar. Esse gesto habitual, acompanhado de abundantes movimentos que lhe agitavam os braços ao calhas, como se fosse desarticulado, atraía as atenções daqueles a quem se dirigia, que ficavam a ouvi-lo, pelo menos enquanto não o conheciam bem, à espera que finalmente olhos e mãos e palavras se conjugassem para que dali saísse alguma coisa com sentido e com interesse. Mas Fabregoulle perdia-se invariavelmente nos seus discursos, inventava estratégias para reter as atenções e metia-se por labirintos incoerentes, dizia piadas tolas e ria-se delas e, quando sentia a impaciência de quem o ouvia, desesperava-se, procurava retomar o fio à conversa, suava e finalmente desistia, tomado então, só então, de uma timidez doentia que fazia sentir culpados os que antes se tinham distraído de o ouvir. Inspirava sentimentos contraditórios, ora irritantes ora compassivos, de modo que lá ia progredindo na carreira de forma misteriosa, beneficiando do facto de a organização internacional ter, ela própria, grande rotação de dirigentes, cujos mandatos se esgotavam antes da tolerância que ele tinha a arte de inspirar. A sua vida pessoal era, de resto, um importante elemento desta espécie de cumplicidade que parecia gerar-se em torno da sua existência na organização e que o tinha protegido, tantas vezes, de ser pura e simplesmente afastado das suas funções.
Fabregoulle tinha casado tarde, já perto dos 50, quando a mãe lhe morreu e se viu incapaz de se governar sozinho. Encontrou um mulher disposta a casar com ele e confiou naturalmente que pouco mudaria na sua vida, a mulher tratava-lhe da casa e do que ele precisasse e ele lá continuaria com a sua vidinha e os seus hábitos de sempre. Erro total. A mulher era uma enfermeira reformada, disposta a dedicar-se por inteiro à missão de cuidar de Horace Fabregoulle e, sobretudo, de fazer dele um aristocrata ou, pelo menos, um tecnocrata elegante como os que ela via nas revistas. Magra e seca, ainda bastante energética na sua idade indistinta, gabava a grande inteligência do marido ao mesmo tempo que lhe dizia rispidamente que não deixasse cair nódoas na gravata e que não “maçasse as pessoas" com as suas conversas sem fim. Apropriou-se dele de uma forma feroz, controlava-lhe os gastos até à minúcia, dando-lhe um mínimo por dia, comprava-lhe as roupas sem lhe pedir opinião e, quando o acompanhava, metia-se nas conversas com a sua voz aguda e autoritária para contar como era escrupulosa com a ordem dos objectos em casa, com a arrumação das gavetas, com a limpeza, oh sim, a limpeza, sem higiene não há saúde, não é Horace?, o Horace já sabe, nem pensar em entrar de sapatos em casa, os jornais são uma fonte de micróbios e nada de bebidas, dieta rígida, o Horace dá-se mal com as gorduras, eu trato dele, parece outro. Frabregoulle ouvia aquilo tudo e encolhia-se, com um sorriso aterrorizado, rebolava os olhos e dizia que sim com a cabeça na esperança de que acabasse aquele tormento mas não, ainda lhe dava mais fôlego, as pessoas riam-se e ele imaginava o que sofreria de piadas e graçolas ao corrupio de colegas que lhe iriam falar ao gabinete no dia seguinte. Mas o pior, o pior de tudo, era que ela o proibira de fumar. Proibira terminantemente, nem queria ouvir falar disso. Ora, Fabregoulle fumava desalmadamente, na altura ainda era comum fumar-se em todo o lado mas na casa dele fora de questão, a mulher revistava-lhe os bolsos antes de o deixar entrar, a conferir a ausência de cigarros, nem ao menos na varanda, nem isso!, ele até aceitaria ir para a varanda fumar, apesar de ter terror dos aviões, e logo a ela lhe dera para comprar o apartamento novo junto ao aeroporto, não houve como convencê-la, querida, tinha ele ousado ainda a caminho do notário para fazerem a escritura, sabes que não suporto ver aviões, dá-me tonturas, dá-me nauseas, tenho pesadelos só de pensar que voam por cima da minha casa, mas ela não se comoveu, deixa-te disso, nem ouves o barulho porque o andar tem janelas duplas, fechas as cortinas e nem vês os aviões, um apartamento de categoria, por aquele preço, habituas-te, um dia até gostas. Fabregoulle ia cada vez mais tarde para casa, demorava-se no escritório, tentava reter um ou outro colega com as suas conversas absurdas mas ali ficava sozinho, sentado à secretária, e a mulher da limpeza, uma vez que abriu a porta já de madrugada, estranhou-lhe o ar sonhador, estranhamente feliz, com um pacote de batatas fritas a espalhar-se na secretária, uma garrafa de cerveja já a meio e um cinzeiro a abarrotar de beatas. Horacio Fabregoulle, com os pés em cima do estofo de uma cadeira, fumava o milésimo cigarro com um sorriso idiota, acima do queixo gorduroso a sua boca abria e fechava como a dos peixes,de modo a que o fumo saísse em argolas precisas, de tamanhos diferentes, uma e outra, subiam e chocavam, misturavam-se, desmanchavam-se e ele ria-se, sustinha a respiração, lançava novos círculos, e assim se deixava ficar, horas esquecidas, até que no aeroporto terminassem as escalas dos aviões e a mulher se deixasse finalmente cair no sono profundo, depois de arrumar na cadeira, por ordem de vestir, a roupa que tinha destinado que ele usaria no dia seguinte. De manhã, ele queixar-se-ia, na sua voz lenta e palavreado confuso, das reuniões demoradas e do terrível hábito dos colegas fumadores, que lhe impregnavam as roupas daquele cheiro que, bem sei, querida, tu tanto detestas e eu próprio, como bem dizias, desde que deixei de fumar também já mal consigo suportar.

8 comentários:

  1. Anónimo00:49

    Curiosa história... Arrepia-me alguém permitir que outra pessoa reja tão completamente a sua vida ao ponto de lhe proibir até de fumar. Isso não é vida. É escravidão.

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  2. E ela, mulher de pulso forte e déspota, teria, alguma vez, suspeitado da traição do marido... com um cigarro? : )

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  3. Catarina; traição com o cigarro era o menos, agora com as batatas fritas, gordurosas...? isso é que merecia divorcio!
    ;)))

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  4. Cara Dra. Suzana Toscano,

    É preciso muita paciência para aturar os Horaces que por aí pululam, ouvir as suas dissertações enfadonhas e desconexas recheadas de graçolas patéticas, principalmente àqueles que por obrigação hierárquica ou dependência têm de estar presentes, e ai de quem se escapulir ou se atreva a interrompê-los!… No entanto tenho pena do seu Horace, não merecia semelhante castigo ainda que convenhamos na justa medida: uma mulher aborrecida e enfadonha, até mesmo à noite… :)

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  5. : ))) discordo, Bartolomeu! : )

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  6. Suzana
    Esse seu Horace até na escolha da mulher não teve sorte - um desastrado - mas convenhamos que também não deve ser fácil ser mulher de um Horace. Apetece-me dizer que assim só estragaram uma família.

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  7. Com que então a minha amiga sempre encontrou inspiração na toponímia provençal...

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  8. Caro zuricher, é um caso de crueldade mental, sem dúvida, há gente que aguenta tudo :)
    Cara Catarina, acho que de outras traições era difícil suspeitar e dessa sim, suspeitava, não vê que lhe revistava os bolsos? Mulher de ferro, era o que era. Sim, caro Bartolomeu, batatas fritas e cigarros, venha odiabo e escolha, cada facada!
    Bem viato Margarida, lá diz o povo que cada chinelo tem seu pé.
    Caro Ilustre Mandatário, a Provença é sempre fonte de inspiração, embora a toponímia lembre mais o italiano :)

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