Não deveria ter mais de cinquenta anos, a sua face ainda estava pejada da beleza da adolescência, mas o que me chamou a atenção foi o sorriso, algo de especial, a sugerir a vitória sobre um mal profundo e doloroso. Sentou-se. Era a primeira vez que a via. Perguntei-lhe se andava bem de saúde, respondeu-me que tinha estado de baixa prolongada, mais de um ano. Olhei e interroguei-a à minha maneira, não dizendo nada, deixei que o meu silêncio atuasse. A senhora compreendeu e começou a contar o que lhe tinha acontecido. Que história, meu Deus, um drama, o suicídio de uma jovem a quem ela queria como se fosse uma filha. O mundo desmoronou-se para a senhora, para o marido, para a filha mais nova e para o filho, o namorado. Falou, e eu nunca a interrompi. Soube que tinha recuperado de uma grave e profunda depressão, pessoal e familiar. Contou-me pormenores, eu aceitei-os e vi algo de misterioso, um equilibrado distanciamento entre os acontecimentos e a forma como os descrevia. Ótimo, pensei, a senhora está excelente, consegue contar dramas muito dolorosos com um distanciamento saudável. No final da narrativa, felicitei-a pelo facto. Olhou-me com curiosidade e eu expliquei-lhe que quem conta o sucedido daquela forma, que tanto a marcou, é porque estava curada. Sim, disse-lhe, o distanciamento como narrou os acontecimentos é prova disso. Felicitei-a. A senhora não estaria, talvez, à espera dos meus comentários e tentou contra-argumentar, dizendo que, por vezes, se emociona quando fala com pessoas que conheceram a jovem. É natural, disse-lhe, a senhora comove-se por causa da pessoa que está emocionada e não por causa do ato em si. Sim, é capaz de ter razão. No final da consulta, levantou-se e agradeceu a atenção e as minhas palavras. Via-se perfeitamente que um suave e quente agrado a acompanhava. Veja se se diverte. É um pouco difícil, mas vou seguir o seu conselho, obrigada. Saiu sorrindo, não sei se com o mesmo sorriso com que entrou ou com outro. Não importa. Partilhou parte da sua vida.
Passados alguns instantes, aproveitando um curto intervalo, entrei na secretaria do laboratório anexo, para meter conversa com as senhoras. Sabe bem. Não é frequente, mas deu-me para aí. Ah, disse-me, uma delas, está ali um senhor que perguntou pelo senhor doutor. Por mim? Antes que respondesse, vi quem era, um amigo, mais velho do que eu, que só vi uma ou talvez duas vezes nos últimos quarenta e muitos anos. Olhei-o, vi que o cabelo, pendente sobre os ombros, tinha esbranquiçado desde maio último, quando o encontrei por mera e interessante causalidade, uma história que merecia ser contada, a face, sempre sorridente, era da cor da cera, estremeci, abracei-o como se o tivesse visto no dia anterior. Contou-me que estava ali por causa das análises, telefonaram-lhe para as ir buscar com urgência. Sabes, parece-me que tenho a creatinina elevada, importas-te de as ver? Lembrei-me de me teres dito no encontro que tivemos em maio que vinhas aqui às terças-feiras da parte da tarde, por isso perguntei por ti. Enquanto dava a sua explicação, imaginei logo o que estaria por detrás. Tem dezasseis anos a mais do que eu. Em criança era o responsável pela biblioteca itinerante. Aconselhava-me nas leituras. Mais tarde, soube que acompanhou todo o meu percurso estudantil e académico, talvez porque sentisse ter tido uma quota-parte na minha formação, ainda que indiretamente, e também por ter ajudado a minha mãe a obter uma bolsa de estudo, conjuntamente com um mestre da literatura portuguesa, natural da terra onde vivia, Branquinho da Fonseca. Nunca fez alarde disso, mas sei que teve um papel importante. Sem a sua ajuda, e a do escritor, nunca teria obtido uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que me permitiu estudar. Nunca falou disso. Também nunca foi preciso. Dois abraços em quase meio século foram suficientes. A funcionária colocou-me os resultados nas minhas mãos. Meu Deus, pensei, está tão mal. Grave insuficiência renal, gravíssima, a confirmar as minhas suspeitas. Perguntou-me se tinha tratamento, e o que é que lhe poderia acontecer. Disse-lhe. E agora para arranjar um médico especialista vai ser complicado, não é? Não, telefonas a um colega meu, e amanhã ele vê-te, e quanto ao tratamento, paciência, o que eu quero é dar-te novamente um abraço em breve. Está bem, fica prometido. Abraçou-me, confiante, e saiu, com aquela agitação que lhe é tão típica e que eu conheço há meio século. Partilhei emoções e reconheci o verdadeiro sabor de uma amizade.
Passados alguns instantes, aproveitando um curto intervalo, entrei na secretaria do laboratório anexo, para meter conversa com as senhoras. Sabe bem. Não é frequente, mas deu-me para aí. Ah, disse-me, uma delas, está ali um senhor que perguntou pelo senhor doutor. Por mim? Antes que respondesse, vi quem era, um amigo, mais velho do que eu, que só vi uma ou talvez duas vezes nos últimos quarenta e muitos anos. Olhei-o, vi que o cabelo, pendente sobre os ombros, tinha esbranquiçado desde maio último, quando o encontrei por mera e interessante causalidade, uma história que merecia ser contada, a face, sempre sorridente, era da cor da cera, estremeci, abracei-o como se o tivesse visto no dia anterior. Contou-me que estava ali por causa das análises, telefonaram-lhe para as ir buscar com urgência. Sabes, parece-me que tenho a creatinina elevada, importas-te de as ver? Lembrei-me de me teres dito no encontro que tivemos em maio que vinhas aqui às terças-feiras da parte da tarde, por isso perguntei por ti. Enquanto dava a sua explicação, imaginei logo o que estaria por detrás. Tem dezasseis anos a mais do que eu. Em criança era o responsável pela biblioteca itinerante. Aconselhava-me nas leituras. Mais tarde, soube que acompanhou todo o meu percurso estudantil e académico, talvez porque sentisse ter tido uma quota-parte na minha formação, ainda que indiretamente, e também por ter ajudado a minha mãe a obter uma bolsa de estudo, conjuntamente com um mestre da literatura portuguesa, natural da terra onde vivia, Branquinho da Fonseca. Nunca fez alarde disso, mas sei que teve um papel importante. Sem a sua ajuda, e a do escritor, nunca teria obtido uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que me permitiu estudar. Nunca falou disso. Também nunca foi preciso. Dois abraços em quase meio século foram suficientes. A funcionária colocou-me os resultados nas minhas mãos. Meu Deus, pensei, está tão mal. Grave insuficiência renal, gravíssima, a confirmar as minhas suspeitas. Perguntou-me se tinha tratamento, e o que é que lhe poderia acontecer. Disse-lhe. E agora para arranjar um médico especialista vai ser complicado, não é? Não, telefonas a um colega meu, e amanhã ele vê-te, e quanto ao tratamento, paciência, o que eu quero é dar-te novamente um abraço em breve. Está bem, fica prometido. Abraçou-me, confiante, e saiu, com aquela agitação que lhe é tão típica e que eu conheço há meio século. Partilhei emoções e reconheci o verdadeiro sabor de uma amizade.
As estórias de vida que o Senhor Doutor aqui nos traz, envoltas sempre, numa plasticidade composta por cores muito reais e muito humanas, fazem-me pensar; se não será ou terá sido, em vidas anteriores, um mágico. Se fosse eu, no seu lugar, acho que procuraria uma sessão de hipnose de regressão.
ResponderEliminar(sei que estou a correr o risco de esconjura; não é nada ético, aconselhar um Homem da Ciência, ao uso de técnicas alternativas mas... a vida também é composta disto.)
Enquanto houver na sociedade pessoas com o dom, ou a capacidade de ouvir as outras, de lhes entender as angustias e de as tocar, nem que seja com um simples silêncio de cumplicidade... a humanidade manterá viva a esperança.
;)
Caro Prof. Massano Cardoso,
ResponderEliminarComo de costume traz-nos um texto tocante.
E estes exemplos de vida de médico, levam-me a pensar na escolha dos futuros candidatos.
É verdade que os exames do secundário são a "pior solução, mas melhor que todas as outras" para decidir do ingresso nas faculdades, nomeadamente em Medicina.
Mas seria curioso solicitar
aos "marrões" de 19-20 valores, que parecem que deixam de viver aos 15 anos com a obsessão da entrada no curso, um ensaio sobre o modo como estes exemplos de vida os tocam e os fazem ver o "ofício de médico".
Espero sinceramente que a experiência de vida e o exemplo dos médicos da geração mais velha, como é o caso emblemático do nosso amigo Massano, permita a esses jovens de que fala o Jorge Lúcio vir a ter esta sensibilidade e capacidade de ouvir e servir.
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