Conheço-a há muito tempo. Entra sempre com um sorriso muito belo e suave, um sorriso do qual emana confiança, alegria e humildade, um sorriso alcandorado numa atitude aristocrática. A voz, delicada e bem timbrada, cativa-me, porque se trata de uma voz que nunca envelheceu. Ouvindo-a sem a ver seria incapaz de decifrar a idade. Tem idade para ser minha mãe. Está doente. Aceita os seus males e vai convivendo com a situação com um à-vontade incrível. Impressiona-me o seu caráter e a forma como encara o futuro. Sempre que surge alguma complicação telefona-me ou aparece-me, e, deste modo, vamos resolvendo os assuntos. Mulher prática capaz de sugerir soluções que me deixam meio deslumbrado.
Gosta imenso de conversar, mas como é natural nestas pessoas evita prolongar a sua presença com receio de perturbar a consulta. Sou eu que a retenho, porque é bom e saudável falar com pessoas deste nível. Desta feita comentou um escrito meu, tinha apreciado o seu conteúdo, e completou o comentário dizendo que um dia deveria escrever as minhas memórias. Sorri e disse-lhe que não teria tanto interesse como isso, só se fosse para mim, para recordar alguns acontecimentos. Manteve o sorriso sedutor dizendo que em nova aprendeu estenografia, coisa que a irmã não tinha conseguido. Deu-lhe muita satisfação, porque provocava admiração ao registar tudo. Registou tanta coisa e com tanta facilidade que começou a escrever as suas "memórias". - Tão cedo? - Sim. Um dia saiu de casa, casou, foi à vida. Mais tarde encontrou os seus apontamentos estenografados. Tentou interpretá-los mas não conseguiu. Tinha-se esquecido das regras. Riu-se ao dizer que tinha lançado para o lixo tantas folhas. - Uma pessoa esquece-se de tanta coisa. - Pois é. Sussurrei. - Quer ver outra coisa? Eu aprendi a fazer frioleiras e agora já não me lembro, tenho tanta pena. - Fri... o quê? - Frioleiras. - Frioleiras? - Sim, uma espécie de "renda", que se faz com fio e uma navete. Curioso, escrevi num motor de busca a palavra frioleira e apareceram-me as imagens. Virei o écran para a senhora que, ao ver as imagens, interrompeu o seu sorriso lançando um sonoro "Ah é isso mesmo"! - Como é que o senhor doutor descobriu, foi tão rápido. - Gostava tanto de voltar a fazer isso, mas não me lembro. Ainda tentei encontrar as explicações e comecei a lê-las, foi então que o sorriso se acentuou de uma forma que nunca tinha visto. - Quer ver que o senhor doutor ainda vai aprender a fazer frioleiras? Olhe, depois diga-me como é para ver se reaprendo. Ainda li algumas linhas mas depressa desisti, aquilo é muito complicado. A conversa continuou com a senhora de idade a relembrar mais episódios da sua juventude e da sua produção. - Senhor doutor, da próxima vez vou trazer alguns dos meus trabalhos de frioleira que tenho guardado lá em casa. Quer vê-los? - Quero, claro.
Analisando o dicionário verifico que o significado de frioleira é múltiplo, "espécie de espiguilha, feita com lançadeira, para guarnições, enfeites", frivolidade, insignificância, parvoíce, bagatela, tolice, futilidade.
A consulta terminou, aprendi muito e fiquei a saber o que são frioleiras, as tais "rendas" que a minha doente se esqueceu como é que se fazem. Poderão pensar que esta descrição é uma frioleira, "futilidade ou parvoíce", mas não, pelo menos para nós os dois, já que nos esquecemos da doença, do sofrimento, e ainda vamos apreciar um dia destes a beleza das frioleiras.
Posso ser sua doente, caro Prof.? É que eu tb gosto imenso de conversar e partilhar experiências. A minha médica também é muito faladora... só que aborda assuntos/estórias/experiências com ela relacionadas. Ao fim de tantos anos... já são repetitivas.
ResponderEliminarFestas felizes, caro Professor. : )
Obrigado Catarina. Um abraço e Festas Felizes para si.
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