Parece, ao ler os jornais e ouvir alguns debates públicos, que o mal
irremediável do nosso país é a existência de “interesses”. Interesses
diabólicos e empedernidos, interesses de grupos profissionais que reagem à
ameaça de redução de vencimentos e perdas de regalias, interesses de reformados
que não compreendem nem por mais uma por que motivo hão-de perder até 80% do
seu rendimento, interesses dos privados, interesses dos “públicos”, interesses
dos senhorios, interesses dos inquilinos, interesses dos bancos, interesses dos
devedores, interesses dos jovens, interesses da geração mais velha, interesses
dos partidos que querem chegar ao poder, ou mantê-lo. Ui, que balbúrdia, aqui não há razões, só interesses
e mais interesses. Intoleráveis, gritam os reformadores, assim não se vai a
lado nenhum! Uma teia insuportável, irrequieta, perturbadora do ritmo firme e
orientação das reformas, há que denunciar
tais interesses, combatê-los, asfixiá-los, anulá-los, sobretudo evitar que se imponham em desfavor das
decisões isentas, puras e cristalinas, defendidas heroicamente pelos poucos que
sabem olhar o interesse comum, imunes a qualquer contaminação egoísta. Um
combate titânico, porque este pobre País está pejado de maus, cobiçosos,
aproveitadores, valha-nos Deus! ontem pacíficos e pouco ambiciosos funcionários, esforçados
professores, pais dedicados, doces velhinhos, hoje
afinal uma “factura pesada” e difícil de remover, como as nódoas, finalmente
expostos, na sua atitude mal sã, pelos alertas dos ascetas do bem
público e da felicidade e justiça colectivas.
Este País devia deixar-se desenhar a régua e esquadro para renascer
límpido de gente interesseira, tal e qual como os outros. Sim, como os outros,
pois é claro e é bom que acreditem que os países hoje prósperos têm uma sociedade civil patriota e
fixada no bem comum, não se assiste a nada disto, não há greves, nem abaixo
assinados, nem resistências, nem argumentos, nem desmotivação, nem grupos de
pressão. Tudo se fez e faz em devido tempo, tudo se transforma em harmonia, com
conversas tranquilas, ou debates abertos e conclusivos, os partidos amam-se
perdidamente, falam-se com cordialidade, partilham responsabilidades, patrões e
trabalhadores lado a lado como irmãos, empresários que só pensam na sociedade,
trabalhadores conscientes e reconhecidos pelo que lhes proporcionam ou queiram
dar. Nesses prósperos países todos os argumentos convergem, naturalmente, para
essa abstracção para eles intuitiva que é o “bem comum” ou o “futuro”. Lá, ninguém
se lembra de levantar um dedo e balbuciar “então e eu?”, é facílimo anunciar
que talvez despedindo aí uns 50 mil professores, ou baixando os salários de
grupos profissionais seleccionados aí uns 20%, ou diminuindo as prestações
sociais em fatias significativas, tudo de um ano para o outro, lá nem se
pestaneja, nunca jamais levantaria resistências, era só explicar, mostrar umas contas
e uns gráficos indesmentíveis, e tudo se vergaria ao doce embalo do caminho
certo, certíssimo, do futuro radioso para todos. Aí sim, "lá fora" fizeram-se
reformas e mudanças “estruturais”, a tempo e horas, sem se ouvir um pio. Deve
ter sido fácil. É ver as estatísticas, um resultadão. Está tudo explicado. Aqui é só interesses, como nunca visto.
O único problema que o país tem com interesses é que há uns que, por terem acesso à violência, se sobrepõem aos outros. Se fossemos uma democracia de facto até poderíamos sobreviver com o estado que temos. Como não somos e os interesses que têm acesso à violência insistem em se sobrepor, então o país vai sobreviver de outra forma.
ResponderEliminarQuanto aos reformados, podem questionar-se como é que a conversa chegou a eles, mas quando um poder democraticamente eleito é empurrado e empurrado, eliminando-se soluções, como toda a história sempre nos ensinou, vão pagar os mais fracos.Sabem bem a quem agradecer...
É por causa deste discurso que diaboliza os interesses e dispensa a razão que caminhamos a passos largos para a mais completa abulia social. Estamos a fundar a república do desinteresse...
ResponderEliminarCaro Tonibler, tirando que muitas vezes a luta de interesses se confunde com a luta pela sobrevivência, ou pela justiça, concordo consigo, um regime democrático deveria ter a capacidade de seleccionar o que são "interesses" que dantes se chamavam abusos ou posições dominantes dos interesses que as pessoas defendem com toda a legitimidade e que são o que determina o equilíbrio e a equidade.O que não pode é meter todos no mesmo saco, branqueando uns e condenando outros. É como diz, no fim pagam sempre os mais fracos, tem toda a razão, foi assim que se chegou aos reformados e se esqueceu outras conversas.
ResponderEliminarZé Mário, não acredito em sociedades abúlicas por opção, ou são ameaçadas e têm medo, ou ainda acreditam que a razão será ouvida. As tensões sociais, se não forem resolvidas em sede própria e institucional, não dão lugar à abulia, pelo menos como estado permanente e definitivo, isso seria a aniquilação do instinto de sobrevivência.
"No fim pagam sempre os mais fracos"
ResponderEliminarE sendo o estado português fraco será que no fim ainda ficará pior?
O contrato social passa por uma ideia de estado. Um funcionário do estado será sempre diferente do funcionário privado.
Não acredito em refundações ou revoluções. Acho o "The Toyota way" muito mais interessante: "continuous improvement, and respect for people."
Suzana
ResponderEliminarOs interesses institucionalmente organizados são facilmente acusados de bloquearem isto e aquilo, os outros que actuam de forma discreta e silenciosa vão fazendo o seu trabalho mas ninguém os conhece. Se não "existem" não há razão para falar deles. E depois há os interesses que não estão organizados, não têm poder, é como se não existissem. Interesses haverá sempre, é assim mesmo, o problema está nos mecanismos da sua representação. Há interesses mais interessados e interessantes do que outros.
Alguém dizia: "A esquerda defende princípios, a direita defende interesses". Claro que esse alguém era de esquerda e assim diabolizava os interesses. Por isso, quando os trabalhadores fazem greve para obter mais dinheiro ou quando alguns fazem manifestações para defender os "direitos adquiridos", dizem sempre que não é por interesse próprio mas sim para defender o bem comum e o País.
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