Antevendo a depressão de mais um domingo à tarde, agravada pela tristeza de um curto dia de inverno, dia repleto de sol mas incapaz de dissipar o frio, hesitei entre dormir e dar um pequeno passeio. Deixei-me dominar pela melancolia e fui na cantiga de Morfeu. Sedução que me libertou momentaneamente da angústia dos sentidos e do temor do futuro. Mesmo assim, meio adormecido, senti o apelo do passeio, como que antevendo o achamento de algo que me desse prazer, que justificasse a minha vida, que me recordasse o passado e que profetizasse o futuro. Foi o que fiz. Saí de casa e acabei por calcorrear um velho caminho mais do que conhecido. O tempo de sol que restava não era muito, mas mesmo assim ainda oferecia alguma garantia de pormenor. Sei, por experiência própria, que passando várias vezes pelos mesmos sítios corremos o risco de encontrar coisa novas. Foi o que aconteceu. Ao longo da ribeira ouvi sons diferentes, mais quentes, mais musicais, mais alegres, mais despidos, mais selvagens, e tropecei em aves de todos os tipos que, descaradamente, se comportavam como se não houvesse mais nenhum ser humano neste planeta. Não tropecei em viva alma, as que tinham ainda vida deveriam estar junto das lareiras ou de aquecedores elétricos, talvez magnetizadas pelo diferentes programas televisivos. Ainda bem, assim fiquei dono de tudo, do ar, do sol, da água, da passarada, das árvores desnudadas e, sobretudo, das lembranças, das minhas e dos que por aqui viveram.
Revi o cantar do velho caneiro de águas límpidas correndo com a mesma velocidade de há meio século no qual o meu pequeno barco de baquelite azul navegava com segurança e elegância. Que pena não o ter à mão, se o tivesse largava-o em cima e depois corria até junto do moinho à sua espera. As quedas de água reproduziam velhos sons, os mesmos, são as mesmas cordas vocais a cantarem as mesmas canções. Mais à frente, depois das provocações dos pardais e dos desafios de melros, olhei para a velha pedra acariciada pelas águas desde a noite dos tempos. Uma pedra convexa, lisa e sensual, que só sabe cantar no inverno, quando as águas da ribeira se transformam num manto para cobrir a sua nudez. Surpreendeu-me que no dia de Reis, uma romãzeira sem folhas ainda apresentasse uma bela, rosada e solitária romã. Que bela coroa real. Em cima, iluminados pelos belos raios de sol de fim de tarde, os campanários da igreja escondiam-se atrás dos arbustos. Olhei e vi-os a sorrir. Foi então que começaram a falar na mais silenciosa e sonora das línguas, a da saudade, contando o que viram, lembrando o que vi e o que senti, e profetizando o que está para vir...
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarQue lindo passeio e que linda que é a natureza. Quando admiramos o belo nunca o esquecemos, o tempo pode passar mas o belo é intemporal. A natureza encarrega-se de o preservar e a memória de não o esquecer...