quinta-feira, 28 de março de 2013

Memória


Não sei o que fizeram à memória. Alguns esquecem-se porque a idade assim o exige, outros porque as toupeiras da demência destruíram o passado e minam o futuro, mas há também os que se fazem esquecidos, umas mulas que sabem viver e como enganar o próximo. A estes tipos de faltas de memória acrescento a atrofia do desenvolvimento da mesma. 
Começa a ser anedótico ir às compras e pagar.
- Faz favor? Quanto é? Uma pergunta banal para quem acabou de adquirir um jornal e uma revista. Feitas as contas, mentalmente, 3,75 €.
A menina saca de uma máquina calculadora e consegue fazer a conta.
- 3,75€.
- Muito bem! Aqui tem uma nota de cinco euros.
Fiquei a aguardar o troco, 1,25€. A menina volta a pegar na pequena máquina de calcular e em voz alta digita, 5 euros menos 3,75. Com um sorriso bonito e simpático dispara, triunfantemente:
- Tenho de lhe dar 1,25€. Aqui tem.
- Muito obrigado. Ripostei um pouco incomodado pela lentidão do processo. A moça deveria ter o curso secundário e conseguiu baralhar as minhas ideias. A lentidão mental que demonstrou não deveria ter equivalente à forma como se relaciona e fala com os outros. Esta insuficiência de cálculo mental, evidente, levou-me a pensar que, hoje em dia, os jovens não fazem exercício adequado aos seus neurónios como se fazia ainda há poucos decénios ou em tempos idos em que as fontes de conhecimento eram mais do que reduzidas. Maquinetas de todo o tipo, acesso à net, livros e bibliotecas aos trambolhões permitem, rapidamente, obter as informações necessárias. 
Quem não deveria ter sofrido de atrofia da memória foi Giovanni Pico della Mirandola, filósofo, que viveu na segunda metade do século XV e que morreu cedo, aos trinta e um anos. Lembrei-me dele, porque em tempos li um livro intitulado "O homem que sabia tudo". Fiquei fascinado, sobretudo pela forma como absorvia e fixava tudo que lia, numa altura em que os livros valiam mais do que os diamantes. Mas não era só Giovanni Pico, outros também demonstravam uma enorme capacidade em fixar e decorar praticamente tudo. Não tinham outra forma. Um livro tinha que ser "memorizado". Esta capacidade em fixar com um pormenor magnético fascinou-me desde sempre. Tinha de haver técnicas capazes de estimular a memória. Descobri algumas dessas técnicas, anos mais tarde, após a leitura de um livro, quando entrei pela primeira vez na bela e sedutora Livraria Lello no Porto. Deparei-me com um pequena obra, intitulada "Tratado da Magia", de uma outra figura que chegou a debater com della Mirandola, Giordano Bruno, que acabou por ser churrascado pelas suas ideias. Um homem curioso, que conseguiu um feito, nunca alcançado por ninguém, ter sido excomungado por três igrejas, católica, luterana e calvinista, facto que abona a favor do seu poderoso e inquieto cérebro. Nesse livro, que li com muita curiosidade, chamou-me a atenção para os capítulos dedicados à memória, às técnicas mnemónicas. Um pouco complexas, sem dúvida, mas que deveriam ser eficazes. Um dia, ensaiei uma delas, de forma simples, básica, desenhando círculos, losangos, triângulos, anotando dentro de cada um dessas estranhas figuras geométricas, a relembrar cabalas, os principais conceitos de uma conferência para a qual fui convidado a comentar. Quando chegou à altura de criticar e analisar o que o orador tinha dito, consegui algo inimaginável, sem perder o fio à meada fiz uma síntese e análise interessante que acabou por ser compreensível e admirada por parte da assistência. Quem me ouviu deverá ter ficado surpreendido com a minha "memória". Ainda hoje recordo alguns desses aspetos que subjazeram à minha intervenção. Curioso, afinal, a memória pode ser treinada, ensinada e desenvolvida com meios que  passaram à história. Compreendi, finalmente, o porquê das elevadas capacidades mnemónicas dos nossos antepassados. Uma mera questão de técnica e exercício, que hoje estão arredados da prática e do ensino. Que diriam Giordano Bruno ou della Mirandola se vissem a menina que me atendeu? - Que rapariga tão simpática e linda! Nem reparariam na máquina de calcular, nem nas suas dificuldades em fazer cálculo mental, e tinham razão para tal...

3 comentários:

  1. Diz-se que a natureza compensa a "falha" de um dos sentidos, potenciando outros.
    No caso da mocinha, priveligiou-lhe a beleza e a simpatia, desde que a memória não lhe falhe, na altura de saber onde colocou a pequena máquina de calcular, a última vez que a usou... tem o futuro garantido!

    ResponderEliminar
  2. Os desmemoriados estão a aumentar assustadoramente... e a memória a curto prazo está a ser a mais afetada, não concorda, caro Prof?! : )

    ResponderEliminar
  3. Sobretudo a memória dos afectos, Catarina.

    ResponderEliminar