Observo a imagem impressionante da barragem de Algueva com os descarregadores de superfície a libertar os excedentes da água que se acumulou na albufeira por estes dias de chuva intensa. E sorrio, lembrando uma reunião no Ministério do Ambiente há pouco mais de dez anos com um movimento - Movimento Cota 139, assim se chamava se não erro - que com grande audiência nos media se opunha ao enchimento à cota determinada pelos estudos (cota 152 m, creio) por razões ecológicas mas também sociais e económicas. As suas teses obtinham aceitação especial no ´Expresso´onde pontificava a papisa do ambientalismo luso, espécie de Torquemada que condenava à fogueira quem não alinhasse com as suas teses sobre a felicidade. Vivíamos um tempo em que, para a opinião publicada, palavra de ecologista - ou de quem assim se intitulava, vestia e discursava como tal - era lei. Lei reforçada, blindada contra revogação pela brigada de articulistas sempre prontos a zurzir nos poderes instituídos, mesmo que estes fossem sensíveis a algumas das causas do ambientalismo militante. O verde era nesse tempo outorgado pelos dirigentes dos grupos ambientalistas, a quem cabia, entre outras coisas, certificar o que era ambientalmente correto e o que era pasto para a condenação, aos sábados, pela tal papisa. Alguns deles emprestavam a sua ciência - bem paga - a promotores de projetos imobiliários e outros necessitados de credibilidade ambiental, assinando pareceres ou prestando consultadoria técnica a procedimentos de avaliação ambiental...
Na reunião, contra o acumulado de estudos técnicos e científicos que ao longo de décadas fundamentou o projeto de Alqueva, um sujeito, afamado dirigente de uma das várias associações, tomou a palavra para, em tom muitissimo grave, quase ameaçador, advertir o Governo das consequências do crime que estava a acontecer. Do ponto de vista ecológico o enchimento à cota 152 seria uma catástrofe, as anunciadas vantagens económicas uma ilusão, o contributo para a melhoria social do Alentejo uma falácia, e mesmo a ideia da constituição de uma reserva estratégica de água na região onde ela mais rareava, uma quimera. Hipnotizado com o seu inflamado discurso, o conhecido lider ambientalista, postado à minha frente e pontuando a exposição com esgares terríveis que acentuavam as previsões mais assustadoras para a qualidade da água, o futuro da agricultura, o clima, a biodiversidade, a saúde, levava uma boa meia hora de prognósticos catástroficos mais que certos, se fosse ultrapassada a marca mágica, a 139.
Não fora a interrupção que se tornou necessário impor ante a repetição dos mais negros cenários e aquilo prolongar-se-ia por horas uma vez que o verbo e o gesto não davam sinais de esmorecer. Nem de acalmar. Aproveitou-se para dizer que o Governo compreendia as preocupações, mas estava tranquilo e confortável com o que resultara dos estudos de impacte ambiental e correspondente avaliação. Também o estava por conhecer outras ponderações, sérias, que tinham envolvido universidades, centros de investigação, técnicos e cientistas de mérito reconhecido e que concluiam não ser expetável o que prognosticavam os militantes da causa do enchimento pelo mínimo ecologicamente ético. Percebi que os meus interlocutores já esperavam a reação de quem tinham pela frente, e de repente pareceram dar-se conta do risco de debandada dos jornalistas que tinham convocado e que os esperavam. Afinal toda a paciência tem limites, até a dos jornalistas estagiários a quem prometeram os pormenores da notícia da continuação de um crime...
Na despedida, porém, o lider do movimento, surpreendeu. Virando-se para o membro do Governo, sentenciou:
- Senhor Secretário de Estado, os senhores não são sensíveis aos nossos argumentos e vão continuar com o programa de enchimento da barragem. Pois bem, fique ciente de uma coisa: construíram a barragem no pressusposto de que seria possível um dia ver a albufeira cheia. Nenhum de nós verá essa dia chegar porque é seguro que jamais haverá água para a encher. Será uma sorte mantê-la na cota 139. Está cientificamente demonstrado.
Fiquei, então, definitivamente convencido da firmeza e coerência dos argumentos do movimento, mais do que curioso sobre a solidez da profecia.
Sim, o homem está felizmente vivo e creio de ótima saúde, virado agora para outras barragens.
Já não me lembro se a papisa decretou lançar à fogueira o pobre membro do Governo. Recordo sim que por essa altura já se tinha tornado imune a qualquer queimadura...
a ecologia seria tomada a sério se não tivessem aparecido estes 'borra-botas'
ResponderEliminarJosé Mário
ResponderEliminarQue episódio "delicioso"! Os cálculos científicos há muito que caíram em descrédito. E não são apenas as contas das cotas da água, há por aí muitas outras inundações que deixam submersos muitos outros níveis bem terrenos que dificilmente voltarão à superfície...
Fartei-me de rir. Imagino a pachorra do secretário de estado e a vontade de...
ResponderEliminarNão tem mais histórias? Olhe que tem. Olhe que tem. Ponha-as cá para fora, se faz favor!
Por falar em calculos 'científicos':
ResponderEliminarNão é que na empresa (?)RAVE do Bloco Central (PO High Velocity), concluiram para Portugal 2030:
Entre Lisboa e Madrid, média de 25 mil passageiros diários em circulação?
Outro tanto Porto-Madrid?
Dramas da cientificidade lusa.
Também sei desse profeta...
ResponderEliminarE era mesmo assim!
Sou da mesma opinião do Floribundos.
ResponderEliminarA ecologia séria, faz falta ao nosso país, tão prejudicado que tem sido ambiental e ecológicamente, em benefício de meia-dúzia de marrecos que disso tiram proveito.
E o Alqueva Senhores?! Que desperdício de meios tem sido até hoje. Que políticas maradas, ou que falta de uma política séria, agrícola e económica têm votado ao abandono um projecto que já deveria estar a «dar frutos» ha um porradão de tempo? Barquinhos-casa ecológicamente correctos, uns bacanos de quando em vez para a fotografia a promover os desportos ao ar-livre?! E os pomares? e as hortículas? e a irrigação de toda uma vasta zona? Para satisfazer a tudo isto, é necessário que a "bichinha" encha à cota máxima, mas é necessário também, que os decisores levantem a peida das estofadas cadeiras dos gabinetes, vão ao sítio e oiçam os produtores, discutam estratégias económicas e de produção e se empenhem mútuamente.
O sucesso de um projecto, não passa por cumprir calendários borocráticos, fingir que se escuta os ecologistas e os ecologistas fingirem que defendem o ambiente. Se assim for, passam 10 anos e outros dez e mais dez ainda e outros dez, seguramente e a barragem vai enchendo e esvaziando ao rítmo das monções, o estado vai suportando as manutenções, os gajos dos barquinhos e do restaurante, do café e da loja de artigos marítimos vão repuxando os cabelos, os Melancia vão fornicando os sobreiros e a malta continua de boca aberta feita azémula a olhar para uns e para outros e a pensar mais ou menos o mesmo que terá pensado o Sr. Presidente da República, quando indagou publicamente « o que é necessário fazer...».
Sim! Que raio, O que é necessário fazer???
Mas! Não foram só os verdes, amarelos, cor de burro quando foge, etc. que vieram com tais argumentos.
ResponderEliminarQuem não se lembra de quantos debates se efetuaram na televisão contra a construção, uma vez que, segundo altos estudos cientificos, nunca iria haver água em quantidade suficiente para viabilizar a construção? E a maioria continuam por aí. Caladinhos, eventualmente a efetuar outros estudos cientificos, de algo que um dia possa acontecer.
Artigo delicioso e que diz muito da qualidade do ambientalismo que se pratica em Portugal, com fortes implicações políticas. A fundamentação científica destas iniciativas (M. Cota 139) e de outras é absolutamente confrangedora. É pena que não chame os "boys" pelos nomes, pois eles continuam a vociferar alarmismos patetas. Saliento, por exemplo, alarmismos relacionados com as alterações climáticas.
ResponderEliminarEstou como o Massano, não há mais para contar? Estas e outras histórias - nem todas acabam bem, com progresso e as populações servidas - mostram bem as dificuldades da governação.
ResponderEliminarCaro Ferreira de Almeida,
ResponderEliminarTalvez valha a pena explicar que o projecto não se fez para que a albufeira subisse até aos 152 metros, fez-se porque os tais estudos que fundamentaram a decisão diziam que seriam irrigados cem mil hectares, que jorrariam rios de leite e mel do projecto e que seria estancado o empobrecimento e despovoamento do Alentejo. Ao ver hoje que nem metade desses hectares previstos são irrigados, que mesmo que que são dependem de um preço político da água que todos pagamos e que se não fosse o olival superintensivo que nenhum estudo antecipou nem metade do que hoje é regado teria viabilidade (mesmo aos preços políticos da água), para além do contributo do projecto para a dívida do país não deixo de estar como o tolo na ponte, sem saber para que lado me virar. Ao menos a previsão errada dos ambientalistas não teve custos por aí além, ao contrário das previsões e decisões sobre a barragem, que hoje todos pagamos com lingua de palmo sem que nenhum dos seus objectivos esteja atingido.
henrique pereira dos santos
Nenhum dos objectivos esteja integralmente atingidos, há êxitos parciais, mas a um preço que conviria nunca esquecer, deveria eu ter acrescentado para ser mais rigoroso.
ResponderEliminarhenrique pereira dos santos
Meus caros Massano Cardoso, Margarida e Suzana, TEMOS seguramente que contar, tal como O David Justino, Tavares Moreira ou o Miguel, ou mesmo da Dra Manuela. Nalguns casos a vontade de contar tem de ser travada pela reserva que o exercício de cargos públicos impõe apesar do tempo passado, ainda que os episódios merecessem divulgação, nem que seja - o que não é pouco - para animar a malta.
ResponderEliminarMeu caro HPS,
ResponderEliminarA minha intenção era relatar um episódio que me veio à memória, datado e no ambiente de uma época bem diferente quer nas expetativas quer nos recursos. Outros episódios, de que se lembrará bem - barragem de Odelouca, que colocou o governo perante o gravissimo dilema de um sarilho herdado - guardo-os como partículas de uma curta fase da minha existência em que aprendi muito. Aprendi, sobretudo, a relativizar previsões e a não me deixar escravizar por elas.
O seu comentário, em especial na parte em que se refere ao insucesso do projeto, suscita-me as seguintes provocações que lhe dirijo, tanto mais que presumo que conhece o contexto em decisões tiveram de ser tomadas:
1. Quando o Governo tomou posse, tinha sido já tomada pelo anterior, a decisão fundamentada em inúmeros pareceres e opiniões técnicas, sobre a cota máxima de enchimento. Estavam praticamente concluidas as expropriações baseadas nesse pressuposto e a desarborização em franco curso. Pensa que existiria à face da terra alguém feito governante - salvo o que porventura beneficie de direta inspiração divina - que chegue e diga aos responsáveis pela execução do projeto "Não, as MINHAS previsões contrariam toda a opinião certificada técnica ou científicamente. E por isso, tudo se ordenará para que a albufeira passe a comportar menos x!".
2. Quanto ao preço político da água, estou de acordo com o que observou. Mas onde é que, na Europa, encontra o meu Amigo agricultura extensiva não subsidiada de uma forma ou de outra? Temos de acabar com este paradigma? Temos, mas é uma questão que quando voltarmos a ter UE há que discutir no quadro da própria União, sendo certo que é mil vezes preferível estimular o regadio baixando os custos de produção, do que subvencionar diretamente alguns agricultores segundo critérios que à transparência devem muito. Pelo menos é o que dizem alguns agricultores.
3. Diz que nem metade da área irrigável é aproveitada e se descontado o olival, a estimativa de 2002 estaria muito mais afastada da realidade. Também tem razão. Mas a capacidade, meu caro, está lá à espera que a inteligência nacional ou externa a aproveitem. Há dias vi que uma empresa, creio que da Escócia, viu ali a oportunidade de cultivar papoilas para produção de medicamentos. Quantas mais oportunidades essa capacidade permitirá concretizar?
4. O que leva não a uma previsão, mas ao exercício a que somos também muito dados - tal como os cómicos do Inferno de Dante que caminhavam para a frente com a cabeça virada para trás (como a propósito da intervenção de Sócrates oportunamente recordava Manuel Maria Carrilho): e se não tivéssemos, com os sacrificios todos que fizémos e faremos, construído Alqueva? Estaríamos melhor? Legaríamos um melhor País?
Caro Ferreira de Almeida,
ResponderEliminarAinda bem que não tive de tomar nenhumas dessas decisões e naquelas em que participei o meu papel era verificar se cumpriam ou não a lei, o que é bastante mais fácil que decidir.
Portanto não critico essa decisão em concreto (digo mesmo que estou como o tolo na ponte, sem saber para que lado ir) mas apenas procuro encontrar um equilíbrio mais próximo da realidade: ninguém acertou nas previsões, sendo que as previsões que levaram à decisão têm um custo muito maior que as outras.
Discussão mais geral é a de saber se estaríamos melhor ou pior sem Alqueva.
A questão é de tal maneira vasta que apenas posso responder com base na fé (se quiser ser mais simpático comigo, direi com num "educated guess"): estaríamos muito melhor.
Prescindir de Alqueva não significa prescindir de regadio, significa prescindir um de modelo de regadio de meados do século XX, assente em estruturas centralizadas e pesadamente geridas, com um pressuposto de energia barata.
Como sabe o essencial do regadio em Portugal não está aí, onde está Alqueva, está no Noroeste do país, onde à disponibilidade de água se soma um desnível que permite a rega por gravidade, sem consumo energético.
Mas mesmo no Alentejo (e mesmo dentro do perímetro de rega de Alqueva) há muito quem regue sem recurso a Alqueva que, no último quadro comunitário de apoio, depois da barragem concluída, ainda absorveu 11% das verbas previstas para o mundo rural (para beneficiar 1% do território, nas estimativas mais optimistas).
Estou de acordo consigo em considerar que nenhum governante pode simplesmente esquecer-se da fundamentação técnica das suas decisões. Mas não deve também esquecer-se da fundamentação técnica que levou a estradas vazias, tgv e etc..
O que aprendi na gestão da biodiversidade, que é sempre gestão de incerteza, é que uma gestão adaptativa, de pequenos passos e atenta aos resultados parciais é de maneira geral muito mais eficaz e barata que uma gestão assente na decisão redentora e definitiva proposta pelos melhores académicos.
Mas ou menos a velha máxima dos negócios aplicada à biodiversidade: "stop inventing e listen to your clients".
Uma máxima que deveria ter sido usada mais persistentemente em Alqueva, sobretudo explicando aos clientes o preço a que a água iria ser produzida.
henrique pereira dos santos
Também diziam que não ia haver água suficiente para produzir electricidade e penso que já tem 4 grupos com uma capacidade total de 520MW e que, com esta quantidade de água, têm estado a produzir no máximo.
ResponderEliminarSim, sim, mas o que conta não é a capacidade instalada, mas o que realmente produz. Ora instalar capacidade em Alqueva é o reconhecimento de que o projecto falhou: só há água (e mesmo assim em alguns anos e em alguns períodos desse ano) porque ela não é usada no regadio.
ResponderEliminarComo projecto de produção de electricidade Alqueva não vale um décimo de outras barragens potenciais (não falo sequer das instaladas). Como forma de minimizar o desastre financeiro do projecto pode ser racional. Mas estamos a falar da minimização de um desastre financeiro, é bom lembrar. henrique pereira dos santos