A vida é uma fonte de tormentos. Quase que me convenço que deve ser a sua forma preferida de entretenimento, e só quando se acalma, durante breves sonos, é que consigo saborear alguns prazeres, os sonhos da vida. Quando está acordada é manhosa, sabida, fingida, atrai e trai, apunhala sem pudor e rouba o que resta do calor. Nunca se sabe quando vai adormecer. A danada deve sofrer de insónias. O melhor é estar atento, e assim que começar a dormitar, fujo, pé ante pé, para bem longe, onde vive a liberdade e o prazer. São sonhos breves, são os seus sonhos, sonhos da vida, sonhos que consigo roubar-lhe. Ela não gosta, nunca gostou que os mortais lhe roubassem os seus sonhos. Fica atormentada porque é invejosa e cruel. Vinga-se criando vazios na alma. Vazios que não se conseguem preencher com as obrigações, com as responsabilidades, com a criatividade, com a devoção, com o suor, com o trabalho ou com a indignação. São estranhos os vazios criados pela vida. Formas de tormento e de angústia. Preciso de apagar esses vazios, preciso de a ludibriar. Eu sei que é um pouco complicado, porque ela nunca ou quase nunca se deixa enganar. Preciso enganá-la preenchendo os vazios que causa na minha alma. Afinal não é muito difícil, basta preenchê-los com coisas desnecessárias. Conversar um pouco, fazendo emergir algumas recordações, partilhar histórias, descrever episódios pessoais, navegando pelo passado de uns e de outros, trazendo-os à nossa presença, contando e recontando coisas sem importância, coisas à espera de serem esquecidas, tudo isto provoca pequeninas ondas de felicidade, fazendo com que as gargalhadas se libertem airosamente e a tranquilidade se instale sem dificuldade. Mesmo as dores do passado acabam por ser anestesiadas pela companhia e pela partilha de emoções. O tempo, que é muito curioso, ficou a ouvir deliciado. E quanto mais tempo o tempo fica a ouvir, mais tempo a vida fica a dormir. Um bom cúmplice, quando quer. Afinal o tempo também tem os seus vazios e sabe que só as coisas desnecessárias conseguem tapá-los. Hoje, o tempo foi mesmo curioso. E a vida, a que atormenta, a que provoca dor, a que se entretém à custa do sofrimento humano, adormeceu. Foi o tempo, só pode ter sido, deve ter-lhe enfiado nas goelas um poderoso hipnótico. E assim foi possível falar de coisas desnecessárias, as únicas capazes de preencher o vazio da vida.
O frio da noite está a penetrar no meu corpo, mas mesmo assim escrevo, escrevo uma coisa desnecessária.
A vida está a dormir, eu estou acordado e o vazio deixou de existir...
O "vazio" normalmente, está cheio de tudo.
ResponderEliminarEscrevia Miguel Torga no seu poema "Bucolica"; ser a vida, como uma mãe que faz a trança à filha.
BUCÓLICA
A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937
Belo.
EliminarÉ.
ResponderEliminarUm poema que condensa de um modo muito singelo, uma visão concreta da vida, no seu mais puro sentido.
Belo remate para um belo texto, afinal há tantas maneiras de expressar um pensamento, podem ser "desnecessárias" mas que acrescentam isso é verdade!
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