As férias servem para muitas coisas, para descansar, para viajar, para conhecer novas gentes e velhos lugares, para ler, para por o corpo e a mente em sintonia com a natureza e para abrir gavetas. Sim, abrir gavetas é um encanto que me enche de prazer. Encontro sempre coisas que me surpreendem e que me fazem reviver velhos episódios. É uma forma de viajar no tempo, é uma interessante maneira de me encontrar e de compreender o que sou e o que fiz. A gaveta não é muito grande e estava tudo bem acondicionado o que me preocupou, porque sempre que mexo em qualquer coisa fico sem espaço para recolocar as coisas nos seus lugares, um pouco à semelhança de quando eu desmontava um brinquedo, sobravam sempre peças. Atrevi-me e encontrei velhas fotografias. Não me foi difícil relembrar esses momentos e períodos. Numa delas tinha um pequenino cavalo de baquelite cujas pernas e cabeças se movimentavam com pequenos gestos. Vinham dentro de pacotes de café, que o petroleiro, no seu veículo esquisito, onde cabia um pouco de tudo e que era puxado por uma mula, vendia porta a porta. Fazia-se anunciar pelo som de uma corneta acompanhado pelo ruído das rodas e dos cascos do animal a saltitarem no empedrado. Vinha cedo. Perguntava logo se ia comprar café. - Hoje não, hoje não é preciso. - Mas compra. Compra. Dizia numa voz doce. Tantas vezes pedia à minha mãe para comprar que acabava por me fazer a vontade. - Posso abrir? Posso? - Não. Está ainda um aberto. Se o abres perde o cheiro. - Não perde nada. Deixa-me abrir. Depois pões numa lata. Anda lá, deixa-me abrir o pacote. Após tanta insistência, mais do que premeditada e nada discreta, deixava-me abri-lo. Quando o fazia, com muito cuidado, saia um cheiro tão agradável que me inebriava os sentidos, duplamente, o odor a café e o facto de saber que lá no meio deveria estar um cavalinho pequeno de baquelite. - Não vejo nada! Não traz um cavalo. - Dá cá que eu vejo. E, com muito cuidado, começou a verter o café para uma lata meia vazia, misturando-se os dois odores, o novo e o velho, até que surgiu a cabeça do cavalo. - Estou a vê-lo! Estou a vê-lo! É verde. É verde. É tão lindo! Quando fez a trasfega deu-mo para a mão. Fiquei tão feliz que nunca mais o larguei. Nesse dia tiraram-me algumas fotografias. Disseram-me para largar o meu cavalinho. Respondi que não, que não o deixava. - Dá cá o cavalo. Dá cá! - Não, não dou. O cavalo é meu. O cavalo é meu e não vou largá-lo. Venci. Tiraram-me as fotografias. Eu estava feliz, porque tinha um cavalo de baquelite verde que mexia as patas e a cabeça. Sempre que passo por aquele sítio, lembro-me dele, do inebriante odor a café e soube o que era ser feliz.
É o que acontece quando se abre uma velha gaveta.
As velhas gavetas com conteúdos preciosos são cada vez mais raras, desde que as fotografias são digitais e os filmes passaram a vídeos que nunca mais consegui ter uma fotografia das minhas filhas ou dos momentos importantes da família bem guardados à mão de semear. Valem-me os velhos albuns, que pacientemente fui fazendo, quando ainda se revelavam fotografias e, sobretudo, quando a máquina de fotografar era um exemplar único em que só o pai é que mexia. Agora, com tanta variedade e tanta desmaterialização, as gavetas vão ficando sem interesse nenhum...
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