quarta-feira, 2 de outubro de 2013

"Gabinete"...



Procuro o refúgio do meu gabinete. Gosto de estar no silêncio das minhas paredes, paredes que me conhecem tão bem, tão bem como eu a elas. Sempre nos entendemos, elas com o seu silêncio e eu com os meus pensamentos. É um local com algum sentido de sagrado a querer imitar, embora sem conseguir, um templo religioso. É um local privilegiado onde consigo despertar o sentido da liberdade e da criatividade que sempre persegui. É um local doce e solitário que me faz esquecer tantas coisas e me ajuda a pensar e a desenhar pensamentos e a tentar ver o mundo de outra forma. É um local do passado que me empurra, sem sobressaltos, para ver o que está ali à minha frente, aquilo a que chamam pomposamente futuro. É uma fonte de tranquilidade, de sabedoria adormecida e de esperança viva, em que é possível ver, ouvir e sentir o mundo com a ousadia da razão e com a força da inspiração. Gosto de estar no meu espaço, na minha solidão universitária, esperando, escutando e desejando encontrar algo que acalente os meus sentidos e a fome de conhecimento. Não me importo que outros possam ter mais e melhor. O que me interessa é apenas saber. Para saber basta-me recolher e ver. Vejo, sinto e ouço tantas coisas e se não vejo, sinto e ouço mais é por que não quero. Mas eu quero. Toco num velho livro, numa relíquia qualquer, imagino o que aqui fiz e desenhei, o que escrevi e o que inventei, o que desejei e nunca alcancei, pois foi aqui que passeei a minha vida e daqui viajei e sempre voltei. Estou aqui, sentado, à espera. Não sei de quê, mas estou à espera, e quem espera sempre alcança, mesmo que seja a desesperança. Não interessa. As ideias correm, as lembranças também, os projetos acordam e as associações explodem com vontade de se mostrar ou de me saciar. Emergem com tal facilidade que não as consigo reter. Fogem-me, escapam-me com prazer. Brincam. Divertem-me. Apetecia-me prendê-las ao papel. Não faço. Deixo-as ir. Libertam-se, mas deixam novas sensações as quais por sua vez despertam novas ideias num turbilhão fabuloso de conceitos e interpretações. Não preciso de as guardar, apenas necessito de as sentir. Basta senti-las, para que um dia destes as possa prender e depois oferecer. O meu gabinete é mágico. Gosta de brincar com coisas sérias e eu gosto de transformar as coisas sérias em brincadeiras, sempre no mais belo silêncio que se possa imaginar, um silêncio apenas interrompido pelo som, pelo cantar nostálgico, e ao mesmo tempo frenético, da cabra ao fim da tarde a relembrar que devo descansar um pouco, pelo menos para a ouvir. Eu ouço com prazer, um prazer que não consigo descrever, porque só se pode sentir.

2 comentários:

  1. Caro Professor Massano Cardoso
    Todos temos os nossos lugares "mágicos", são tão cúmplices das nossas vidas que não os podemos dispensar.

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  2. Acho que só há lugares mágicos quando aí se viveram temos felizes que nos fizeram sentir parte integrante de alguma coisa que nos transcendeu. Nos lugares mágicos acumulou-se energia positiva, reconhecemos-nos nas coisas, na paisagem que associamos ao lugar, é um ambiente seguro no nosso imaginário. Hoje é difícil construir esses lugares, há os open space, as mudanças permanentes, uma luta constante pela integração, a "personalização" de um espaço é uma preciosidade em extinção...

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