O ritual foi criado de forma rápida. Surpreendeu-me, não pela qualidade da alimentação, nem do espaço, pouco cuidado a recordar velhos locais do passado, mas pela qualidade das pessoas, simples, espontâneas, criativas, com linguagem fechada aos nossos dias e vendo o mundo por cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas. Um local que me levava a voar nas conversas que ouvia a outros tempos e a outras épocas. Uma espécie de caverna, onde aprendia e desfrutava histórias e historietas. Acabei por registar em desenhos da minha memória muitas personagens. Aos domingos esperava-os ou encontrava-os. Seres que me inspiravam e divertiam. Com o tempo alguns iam desaparecendo. Talvez por terem morrido, talvez por não conseguirem deslocar-se ou por não terem dinheiro para pagar a refeição do almoço de domingo, talvez a única extravagância, que apesar de não ser dispendiosa, longe disso, começou a causar mossa nos bolsos pobres de gente pobre mas rica de sentimentos e de histórias. O declínio vinha-se acentuando desde há alguns meses, e o dono já tinha manifestado desagrado pela situação, dando a entender que o melhor era voltar a emigrar. Não dei a importância devida, embora me tenha pedido há semanas o meu telefone para avisar de qualquer contratempo nesta época do ano. Pensei que deveria ser para descansar alguns dias. Hoje era dia de ir à minha "caverna" conviver com personalidades retiradas diretamente das profundezas do povo, rico, único, fonte de inspiração e cheio de histórias, que contavam e partilhavam alto e em bom som de mesa para mesa sem receio de serem ouvidos, pelo contrário, até ficava convencido que gostavam mesmo de serem ouvidos. Eu gostava, e eles já deveriam ter percebido a minha atenção, embora nenhum tenha lido o que escrevi sobre eles. Hoje fui à "caverna". A porta estava fechada com um aviso, "encerrado por tempo indeterminado". Fechou-se um portal para o passado. Vou deixar de ouvir e de conviver com gente do povo, gente interessante e rica em emoções, histórias e interpretações.
Eu sei que a crise é violenta, mas chegar a este ponto violenta-me também, porque perco um precioso bem. Nem um espaço pobre, simples, pouco cuidado e barato escapou às garras de miseráveis que a esta hora devem estar a conspirar em luxuosos restaurantes desfrutando opíparos repastos e continuando a ofender pobres humanos.
Para onde terão ido os donos? Reemigraram com toda a certeza...
«... pessoas, simples, espontâneas, criativas, com linguagem fechada aos nossos dias e vendo o mundo por cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas.»
ResponderEliminar... cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas... não tenho memória de alguma vez ter lido ou ouvido outra expressão que, aplicada no mesmo contexto, o definisse de forma tão exata.
Provavelmente reemigraram... Nada escapa aos abutres.
ResponderEliminarUm bom Ano Novo, caro Prof.
Abraço
Obrigado, Catarina. Igualmente para si um Ano Bom com saúde...
Eliminar