O dia acabou mais cedo do que esperava o que fez com que ficasse com o meu ritmo laboral perfeitamente destrambelhado. Não estava à espera. Pensei, vou fazer aquilo que mais gosto, vou sair, vou escrever num sítio prazenteiro, beber uma bebida quente, mas vacilei. Resultado, acabei por andar às aranhas. Ainda fui ver se havia uma mesa num espaço agradável ao pé de casa. Sem esperança, atalhei por um beco, desconfiado de que àquela hora os aposentados já o teriam tomado de assalto. Ao aproximar-me vi, nitidamente, através da larga parede de vidro, olhares de quem não sabe o que fazer, olhares secos, pobres, alguns meio patetas mas que não se cansavam de escrutinar quem passava. Ainda bem que não havia lugar. Caminhei de braço dado com o frio que, desesperadamente, queria guilhotinar o meu pescoço. Bem tentou, mas eu não deixei. Entrei na livraria, havia uma mesa vaga. Sentei-me. Tentei ler, não consegui, tentei escrever, também não consegui. Fiquei durante algum tempo a fingir que fazia nem sei o quê. Bebi um café. Olhei em redor e entretive-me a ver as pessoas, as suas caras, os seus maneios, as diferentes formas de beber e de comer, os diferentes bamboleios das ancas, e perguntar por que razão é que põem a tocar uma merda de música capaz de irritar a sensibilidade de quem procura um espaço para ler, escrever, namorar, conversar ou meditar. Atribuí a culpa do meu insucesso de final de tarde à qualidade da música, que mais parecia um vaporizador mata moscas do que outra coisa. Levantei-me e deambulei entre as mesas e as estantes com livros. Há muito que não entrava naquele espaço. Tantos livros, sedutores. Fiquei subitamente surdo, não ouvia a música. Comecei a entristecer. Queria ler aquilo tudo. Que loucura, pensei. Vou comprar um. Qual? Para quê? Não leio a maior parte dos livros, adio eternamente o momento das carícias. Andam por lá, aos pontapés, debaixo e em cima de tudo o que se possa imaginar. Nem vale a pena descrever onde e como amontoo os livros. Tenho esperança de que um dia consiga um grande feito, lê-los. Claro que não vou conseguir. Tantas obras. Bons títulos. Excelentes escritores. Evito tocar-lhes, porque tenho medo de ser contagiado. Quando abro um livro é comum ver delicados farrapos da alma do escritor, como se fossem flocos de neve, a caírem em redor, criando um belo mundo de fantasia. Não lhes toquei. Sabia que ao primeiro toque acabaria por ser aprisionado. Resisti, resisti até ver o nome de um autor. Não me recordo como apareceu na minha mão. Tentei evitar lê-lo, mas não consegui. Comecei a ler algumas passagens e, subitamente, já estava noutro mundo, via as pessoas, sabia como pensavam e o que queriam. Sabia a cor das suas almas, o calor dos seus pensamentos, os seus desejos, temores, tudo me parecia ser tão real que eu próprio duvidei quem era e onde estava. O meu velho autor preferido, um escritor maldito. Atraem-me os escritores malditos, particularmente este, que viveu e sofreu muito, fome, fome de verdade, e que acabou por ser internado numa instituição psiquiátrica onde morreu na mais completa pobreza e repúdio social. Nasceu pobre, viveu grande parte da vida pobre, morreu pobre mas consegue uma proeza única, enriquecer quem o lê. Espero que tenha passado o resto dos seus dias na mais perfeita e tranquila loucura.
Tenho-o aqui, a meu lado. Já o abri novamente e sinto belos flocos de neve a inundar-me. Valeu a pena o dia de trabalho ter acabado mais cedo. Vou lê-lo, melhor, vou saboreá-lo.
Mas quem é esse autor que tanto o fascina?
ResponderEliminarKnut Hamsun. Leia, leia, e não se vai arrepender...
ResponderEliminarObrigada , vou ler de certeza, depois lhe digo. Um abraço!
ResponderEliminarOuso sugerir a leitura de "Hunger", do mesmo autor...
EliminarFoi o primeiro que li. O livro que mais me marcou até hoje, "Fome".
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