Quando nos confrontamos com um perigo imediato desencadeamos um conjunto de reações na milésima fração de segundo que precede o impacto. Um fenómeno bem estudado e que pode ser bastante útil. Mas há situações em que isto não acontece. Ser-se apanhado "à traição" é horrível e dá-nos a verdadeira sensação do que somos, vidrinhos pensadores ambulantes. Julgamos que dominamos muitas coisas. Não, não dominamos nada, somos apenas seres vulneráveis prestes a quebrar ao menor impacto.
Ia a descer a rua, ladeando o passeio devido à presença das grades de proteção por causa de obras. Olho para o relógio, 13:28. Uma pancada violentíssima nas costas e no ombro esquerdo despertaram-me para uma realidade traiçoeira. A dor misturada com a estupefação obrigaram-me a rodopiar, vi uma face espantada a poucos milímetros da ponta do nariz. Continuei a rodopiar e acabei por me estatelar no meio da rua dois, três metros à frente. Olhei para o céu e não vi estrelas, apenas nuvens cinzentas e brancas. Imerso em dores intensas comecei a gemer. Aproximaram-se jovens que iam para a escola. A confusão que se instalou na mente, quanto ao que me iria acontecer, um auto-diagnóstico feito rapidamente, prognóstico a curto prazo e compromissos a serem cancelados, não me impediram de dizer à jovem, que, entretanto telefonava para o 112, qual a minha situação e que era médico. A jovem que estava nervosa ficou mais tranquila, eu é que não estava, porque as dores roíam-me o tórax e o ombro. Bonito. Ainda consegui fazer um telefonema dando indicação do que estava a acontecer e da "não gravidade" da situação. No entanto, as dores apunhalavam-me sem dó e nem piedade. Apercebi-me, pela conversa, que tinha sido abalroado por um ciclista distraído que, qual Eddy Merckx, julgava estava a descer os Alpes, só que ia a cumprimentar o amigo ou o vizinho. Gemia? Ai não que não gemia. Deitado no meio da rua inclinada, propicia a acelerar qualquer bicicleta, esperei. Esperei e não desesperei, ou quase. Misturar dores com longos minutos é uma estranha combinação. Apareceu o socorro com um jovem amigo da minha terra. Estávamos longe dela, mas o sinistro juntou-nos. Foi coisa que eu imaginei logo de início. O rapaz olhou-me espantado e tive que o "acalmar". Cuidadoso, supercuidadoso, conjuntamente com os dois colegas fizeram o que tinham a fazer. Bons profissionais. Abdiquei da minha condição de clínico, o melhor que se deve fazer, sem deixar de contribuir para estabilizar o ambiente típico destas condições. E, assim, entrei pela primeira vez "deitado" no serviço de urgências de um hospital, registando tudo com se tivesse um gravador e um vídeo na minha cabeça. Tudo registado ao mínimo pormenor, conversas, imagens, cheiros, solavancos, tudo. As más notícias correm à velocidade da luz. Depois, esperei com uma anilha amarela presa ao meu pulso direito. Não a vi, mas senti que alguém me tinha colocado qualquer coisa. Esperei. O tempo é um verdadeiro filho da puta quando um indivíduo está a ser bombardeado com dores. Chegaram. Eram jovens. A moça pega-me no punho direito, eu não conseguia mover o pescoço, trataram-me como se fosse um politraumatizado, e exclamou: - Foi meu professor! Bonito, pensei, o que é que vai sair daqui. Depois veio o chefe, o cirurgião, velho amigo. Espantado com a minha presença naquela cidade pediu-me desculpa por não ter estado presente na tomada de posse do órgão a que presido na Ordem dos Médicos. As dores atormentavam-me sobremaneira, mas, mesmo assim, ainda lhe disse que se soubesse tinha trazido o livro de termos e dava-lhe posse ali mesmo. Brincar nestas circunstâncias é um saboroso analgésico. Ajudei, fiz o que me mandaram e portei-me como qualquer outra pessoa. No final tive alta com uma receita e recomendações passadas por ex-alunos. Saí com dores e o aviso de que iria ter algumas semanas álgicas.
Registei muitas outras histórias dentro desta história. Algumas muito curiosas que dariam pano para mangas. De qualquer maneira, o sistema funciona, há competência, há atenção, há cuidados e há coisas que nos incomodam, incomodam por uma razão muito simples, as dores fazem expandir o tempo, esse sacana que se lembrou de me trair num momento particular e que se divertiu comigo naquela tarde.
Agora tenho de aguentar.
Paciência, é o que acontece quando se é atropelado por um ciclista "à traição"...
Primeira reação à portuguesa: uf! Ainda bem que não era um automóvel a descer a ladeira mas uma bicicleta desgovernada. Segunda reação: que azar, podia ter-se distraído o meu amigo, ter- se detido um pouco a ver qualquer curiosidade, como tanto gosta, e não teria sido abalroado! Terceira reação: magoou-se a sério, espero que lhe passem as dores e cresça a paciência para passar o tempo e desejo- lhe de todo o coração uma recuperação muito rápida. E, para ajudar a passar o tempo " no estaleiro", o quarta república é sempre um belo recurso, com a certeza de que será muito bem empregue :) um grande abraço!
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarDesejo-lhe uma boa e rápida recuperação. Agora andam pelas ruas muitos ciclistas, sabe-se lá como! E, depois, elas acontecem. Um abraço amigo.
Obrigado. O tempo vai ajudando à sua maneira...
ResponderEliminarMais uma experiência de vida, das dolorosas, mas mais uma. Não se desejam, não se procuram, aparecem à traição. A última vez que entrei nas urgências estava a ser acariciado por uns cristais aciculares... Foi uma experiência muito rica.
ResponderEliminarCiclista há 55 anos, apesar da interrupção de 27 durante a força da vida(!), não imagina quantos humanos e quantas viaturas já se meteram à minha frente ;-)
ResponderEliminarCom os seus susto e sofrimento à parte, a sua história é muito o espelho do que me ocorre enquanto pedalo!
Espero que as suas dores já tenham desaparecido ou sejam residuais, ao mesmo tempo que verifico que não deixou de valorizar a riqueza da nova experiência.
Entretanto ocorrem-me 2 perguntas:
E em que estado ficou o abalroador: nem uma clavícula ou 2 costelas partidas, com é da praxe nestas circunstâncias?
E o cavalheiro não tinha o conveniente seguro de responsabilidade civil, como o que é providenciado pela FPCUB, para a devida indemnização?
Obrigado. O ciclista ficou bem, sem qualquer problema. Claro que não tem seguro. Não é obrigatório!
ResponderEliminarUm abraço