Um dia de trabalho que fez inveja ao sol. Gosto imenso de competir com o brilho e a beleza do astro da vida, não por uma questão de arrogância, mas apenas pelo simbolismo da força e do valor do pequeno, do insignificante, da migalha perdida na extensão do universo dos seres que vivem à custa dos seus raios.
Entrou de rompante, meio nervosa, ansiosa por debitar quem era, com uma fácies típica de quem teve um modo de vida peculiar que lhe provocou imensas cicatrizes na alma e no corpo. - Bom dia senhor doutor, sou diabética, sou seropositiva, tenho a carga viral não detetável e hoje de manhã o açúcar estava a X. Nem respirou. Ficou mais calma. Vi que estava habituada a lidar com médicos, e antes que lhe perguntasse o que tinha ou o que não tinha, o melhor era dizer logo, porque certas perguntas deveriam incomodar provocando-lhe sofrimento ao despertar lembranças que gostaria de ver incineradas. Sorri silenciosamente. Depois, com o andar da carruagem, levei-a, sem se aperceber, a contar as suas desgraças, ou melhor, a denunciá-las sem expressão clara. - Tenho uma lente no olho. - Hum! Tem? Alguma catarata. - Sim. - Trabalhava muito ao sol, às tantas. - Trabalhar? Riu-se com alguma ironia. - Bem ao sol andava mas trabalhar... Mas olhe que ainda trabalhei, tive o meu negócio, andei em feiras. A conversa, das mais silenciosas e expressivas que tive até hoje, foi extremamente rica. Não foi difícil perceber a vida que levou, não foi necessário fazer perguntas, não foi preciso fazer nada, nem dizer o que quer que fosse. Ficou satisfeita. Não teve que repetir ou responder a perguntas que a incomodam. A forma como sorriu foi o sinal mais feliz que encontrou para agradecer a minha abordagem. Depois, espontaneamente, contou-me o seu estado de saúde, como se encontrava, mas sempre feliz por saber que estava bem, no bom caminho. Sentia-se útil, compensada e contente por viver apesar do seu passado atribulado. Não me contou por palavras, nem eu queria. O seu olhar debitava tudo o que eu necessitava saber. Sentiu-se respeitada, não discriminada e, sobretudo, acarinhada. Saiu feliz. Fiquei com a sua história, silenciosa, mas muito agradado. Gosto de ver e comungar das vidas de quem é pequeno, insignificante, verdadeiras migalhas perdidas na extensão do universo dos seres humanos. Vivem sob o sol mas conseguem fazer-lhe inveja. Têm alma, mas sabem o que é a dor da perdição. São almas que conseguiram emergir das trevas. Libertaram-se de velhas prisões. Conseguiram, como ninguém, conhecer o prazer e a miséria da vida. A senhora, com a sua fácies típica de quem teve um modo de vida peculiar, que lhe provocou imensas cicatrizes na alma e no corpo, ensinou-me, hoje, a verdadeira dimensão da minha pobre existência. Afinal, onde é que o sol, com toda a sua grandeza, consegue viver algo semelhante? Não consegue. Mas eu consigo...
Sentir amor por alguém, é algo extraordinário, é talvez a expressão humana de maior dimensão.
ResponderEliminarAo ler este post, lembrei-me do tema escrito e interpretado por Helton John, para o filme animado "O Rei Leão". O nome do tema «Can you feel the love tonight», deixa à consideração do ouvinte se o deve entender como uma questão; uma afirmação, ou simplesmente uma incógnita. Muitos de nós já colocámos a nós mesmo a pergunta: conseguirei amar alguém; conseguirei dar de mim a alguém; conseguirei ver em alguém a mim mesmo e ama-lo como me amo?
A certa altura do tema, Helton John reflete: - Ther's a nothing who made kings and vagabonds. Há efectivamente um inexplicável "nada" que determina quais serão os reis e quais serão os vagabundos. No entanto, existe um "nada" muito maior, que pode fazer com que um rei seja o mais baixo dos vagabundos, e um vagabundo possa ser o mais alto dos reis. É provável que se trata somente de uma questão de "nadas" uns maiores... outros menores.
;)
http://www.youtube.com/watch?v=g13wy-BybpM