quarta-feira, 21 de maio de 2014

Barbeiro

Um dia meio estranho. O sol desapareceu e deu lugar a nuvens de maio carregadas de tristeza que depois do almoço se puseram a chorar aos gritos. Um dia estranho para ir à baixa onde me enfiei no barbeiro. Esperei um pouco mais do que é costume, mas deu para ver a arte de usar a navalha nos pelos compridos, encaracolados e despenteados que emergiam de uma face magra, esquálida e castanha escura revelando que a maioria dos dentes já foram à vida, uma vida "dura" sob o sol da vida. Os gestos bem estudados do artista da tesoura e da navalha eram bem visíveis. A forma de colocar a mão, a cabeça descaída, a língua a querer a sair, revelavam cuidados e gosto no que fazia. O operado, deitado com os olhos fechados, gozava com o calor da espuma do sabão e o frio cortante da lâmina a percorrer a sua cara. Tratava-se de alguém que podia bem ser um arrumador de carros profissional. O processo de barbear conseguia ser mais lento do que o cortar do cabelo. Era muito magro e tinha uma maçã de Adão muito saliente. Quando a lâmina chegava àquele sítio até tremia com receio de poder sacá-la com um simples gesto. Mas não, subia delicadamente como se fosse uma prancha de surf a cavalgar uma enorme onda. Só na parte final é que o barbeiro se meteu com ele, certo de que qualquer reação mais intempestiva, no decurso do ato operatório, poderia sangrá-lo. O silêncio da escultura deu lugar a uma conversa mais animada em que a aguardente veio à superfície. - Não, não bebo nada disso. Aqui não entra. E faz o gesto apontando para glote. - Não. Nem pensar. Há muito que não bebo isso. De quando em vez vai um Porto, isso sim, mas nem sempre. Calou-se durante algum tempo, até que rematou, mostrando um sorriso desdentado:- Só sumo de uva prensada, mas negra, só negra. A forma como disse revelou que devia beber bem. A magreza que passeava era a sua sombra, e a colherada do outro barbeiro deu para perceber que comia pouco. - Pois é. Como apenas para sustentar o esqueleto. Não tenho muita fome. Como porque tenho de comer. Claro, nem que seja para absorver os litros de tinto que deveria ingerir. Mas a sua observação, de que o dito deveria ser negro, tinto, fez-me recordar alguém que mereceu o apodo de conselheiro Acácio, e que na sua verborreia, mais típica de um feirante a vender a banha da porca do que a sua sua condição de médico, dizia sempre, vinho sim, vinho faz bem à saúde, mas só do tinto, tinto, repetia com uma surpreendente e arrogante sabedoria que acabava por por os meus cabelos numa raiva a raiar a histeria. Levantou-se sem barba, apenas com um tecido brilhante e acastanhado a tapar a sua caveira em que faltavam pelo menos os incisivos, com o cabelo sujo e descabido para o ambiente de uma barbearia e,na perspetiva de ter de pagar o serviço, adiantou: - Agora é que é o pior! O barbeiro, matreiro e velho, na idade e na experiência, que abanava a bata, limpando-a dos resíduos pilosos, disse: - Qual quê! O cliente enfiou um boné roto e sujo, tapando a miséria dos seus cabelos e tirou do bolso das calças um maço, grosso, de notas de vinte euros, no meio das quais boiavam algumas de dez. - Chiça! O gajo até parecia um americano a sacar das notas. Retirou uma, de vinte, e disse: - Chega? O barbeiro sorriu e nem lhe respondeu. Fez o troco e deu-lhe.
Deve ter ido beber um Porto.

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