Não sou dado a superstições, embora em certas ocasiões dou conta de que estou a atuar de uma forma irracional, meio estereotipada.
Recordo muitas dessas iniciativas que me foram transmitidas com tal solenidade a ponto de ter que acreditar nelas e na sua importância. Foram tantas que sou incapaz de as elencar com propriedade. Nalgumas circunstâncias cheguei mesmo a ser vítima delas. A minha avó e tias, tão ou mais velhas do que ela, foram mestras, transmitindo ideias e superstições que vinham de outros tempos e que, talvez alarmadas com a ameaça de um fim anunciado, começaram a reviver com intensidade.
A minha avó abria a boca e fazia sistematicamente o sinal da cruz para evitar que o demónio entrasse. Era o que me dizia. Não deixava que abrisse o chapéu em casa, não permitia que lançasse sal na mesa e dizia que dava azar passar debaixo de umas escadas. Benzia-se ao toque das trindades e ensinou-me formas de esconjurar os maus espíritos e o diabo. Tudo servia para me instruir em práticas ancestrais. Mas havia uma que a incomodava bastante, era cruzar as facas. Ficava, não digo possessa, mas incomodava-se bastante e desfazia de imediato tamanho sacrilégio. Perguntava-lhe as razões porque não podia cruzar as facas, nunca me soube responder cabalmente, ficava irritada, coisa que não era muito habitual. Pronto, pensei, esta gente lembra-se de certas coisas e depois é o que se vê. O pior é que não era só a minha avó. Todos, lá em casa, ficavam meio possessos sempre que se cruzavam as facas, até o meu avô, que parecia nunca ligar a estas coisas, também dizia que não se podia fazer isso, e não era só ele, outros familiares, digamos mais liberais e de espírito aberto, diziam a mesma coisa. O que é certo é que eu, com o tempo, sempre que dava conta que as facas estavam cruzadas, desfazia-as de imediato com receio de acontecer alguma coisa. Ainda hoje, instintivamente, faço isso, evito cruzá-las. Fico surpreendido com este comportamento, que reflete o efeito da "educação", ou melhor, da importância do moldar do pensamento numa idade facilmente influenciável. Sempre que perguntava as razões para essa atitude, tinha como resposta que dava azar, como se o que "desse azar" fosse suficiente para não as cruzar. Nunca me incomodei com as origens desta superstição, mas hoje, depois de uma visita a uma sinagoga, onde comprei um excelente livro, pequeno, mas muito interessante, fiquei a saber práticas e expressões de origem judaica. Algumas já conhecia, mas havia uma ou outra que não. Foi então que li que as "facas cruzadas" está, de facto, ligado ao azar, "pois os cristãos-novos tinham repulsa a tudo o que estivesse relacionado com uma cruz". Sabendo da violência a que foram sujeitos, continuarem a ser judeus por dentro e cristãos por fora, um atentado à identidade humana praticada pelos cristãos da altura, é fácil de compreender o horror que deveriam sentir quando viam sinais da força e da falta de misericórdia ligados ao catolicismo fanático. Parei na leitura e comecei a imaginar o que diriam a minha avó e as velhas tias se eu lhes dissesse: - Que raio. Então vocês são católicas ou judias escondidas? Não me digam que ainda são judias. Divirto-me a ver as suas caras, repletas de surpresas e incomodadas com tamanha afronta.
Bom, sendo assim, vou tentar não descruzar as facas para ver qual o efeito. O mais certo é não conseguir, porque a força do hábito é muito poderosa...
Quando eram as vindimas e eu pequenito ia para junto do lagar a comer um pão, o meu pai e o meu avô diziam para sair, pois dava azar e o vinho não saía bom.
ResponderEliminarSó mais tarde li estudos a confirmar que o fermento contido no pão dá cabo do vinho aquando da sua fermentação.
As superstições existem devido a centenas de anos de práctica.
Sempre têm uma explicação, e muitas das vezes científica.
Tal como nunca se podia varrer a casa para fora, e ainda hoje muitissima gente nunca cruza os bracos, quando quatro pessoas se cumprimentam!
ResponderEliminarA repressao aos judeus e cristao-novos deixou-nos muitas supersticoes, que preduram no tempo.
Bem haja pelo artigo.