À minha mãe, nos seus 89 anos
Pesas como chumbo, eu sinto. Sinto quando me tolhes os pés que deviam poder andar, sinto-te nas pernas dormentes de velhice, sinto nos ombros o teu braço paralisante. Sinto o teu deslizar lento, insuportavelmente lento, enquanto olho da janela as folhas das árvores, primavera, verão, outono, inverno, sempre a mesma janela, sempre a mesma paisagem, num ritmo confirmado e exasperante.
Tomo consciência de ti e estás velho, tão velho e trôpego como eu, já não corremos os dois numa fuga infinita, já ninguém nos procura nem reclama, agora esperamos um pelo outro mas no vazio, sem promessas e sem negaças, no vazio em que te anseio e me aborreces, no vazio em que te demoras e te acolho como a um inútil sem sentido. Mesmo assim quero-te, não me deixes, fica mais um pouco, não te esgotes, se te instigo é apenas porque o teu lento deslizar prolonga as minhas dores e me devolve o eco da minha solidão.
Mas não foi sempre assim. Durante toda a minha vida nunca me sobraste, antes tive que te partilhar com os outros. Primeiro, quando era criança ou muito jovem, não dava sequer pela tua existência, não te via, não te sentia, estavas ali, infinito e leve, eras como o ar, a energia ou os carinhos da minha mãe.
Quando os anos passaram e me tornei adulta vivia na dependência de ti, intrometias-te e impunhas-te, depois, arisco, fugias-me por mais que quisesse deter-te, sim, quantas vezes pedi que te demorasses um pouco ao meu lado, deixando-me saborear a tua existência, saciar-me na demora dos gestos e na fruição de cada momento, mas corrias tão depressa, acordava de manhã e contava as promessas no teu sorriso mas logo te sumias, ainda eu mal te vira. Sedutor que eras, impossível ignorar-te, impossível resistir-te, por isso confiei sempre, uma e outra vez, que ias voltar para recomeçarmos de novo e que tudo seria novo e eterno de cada vez que voltasses. Por isso te adiei tantas vezes, na ilusão do retorno, por isso te ignorei outras tantas, na certeza de te recuperar. No auge da minha vida fui muito generosa com os outros, pediam-me um pouco de ti e eu dava, ou simplesmente puxavam-te e eu deixava que fosses, às vezes era sôfrega de ti, sobrecarregava-te quando finalmente te alcançava e então parecia que te detinhas mas acabava sempre a ver-te fugir, via-te a correr à minha frente e eu, Espera!Espera! incapaz de te guardar só para mim, por pouco que fosse. Esbanjei-te, acho que foi isso, desperdicei o quinhão que me coube da tua existência, da liberdade que me trazias, das oportunidades com que acenavas dizendo, estou aqui, sou teu. E eu a deixar-te ir.
Eis-te de novo, como sempre, mas agora vejo-te bem, entregas-te, agora que já não sei o que fazer de ti. Ficaste a rondar-me, preguiçando, desde que a casa ficou vazia e a minha vida sossegou. O teu passo abrandou e acertou com o meu, numa carícia discreta que me abraçava docemente, firmemente. Ri-me ao princípio, surpreendida e encantada, inventei conversas e detalhei-te minuciosamente, saboreando a minha nova arte de te cativar junto a mim. Mas era um novo engano, esse amargo descobri também, com os dias longos e as noites intermináveis, sem outro respirar além do meu.
Ficas porque já não tens caminho para correr, poucos te disputam, menos te reconhecem, novos tempos vieram e tu, velho tempo, tempo meu, posto de lado, não serves, não entendes, diz-se que passaste e é bem feito, que fizeste tu senão correr apressado, prenhe de promessas e de enganos?, cumpriste alegrias, é certo, mas aí eras ainda mais veloz, lembro-me bem que te vingavas nas horas más, atrasando o teu ritmo como pingos resinosos que se agarram à casca que os segrega e repele.
Sobras para mim, finalmente, velho ardiloso. Pesas como chumbo, eu sinto. Mas fica, ainda assim, fica um pouco mais, demora-te, vê as árvores, olha comigo através da janela, seduz-me ainda, maldito, querido sedutor, embala-me devagarinho até ao fim do tempo que já passou.
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Depois de apreciar este belíssimo bordado em que se entrelaçam os fios coloridos de uma vida num linho muito fino e ténue que é o tempo, vem-me à memória o tema de um cantor do meu tempo de adolescente; Cat Stevens. Começava assim:« Não existem palavras que possa usar, porque a escolha para o seu sentido continua a pertencer-te.»
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=or43DQ8y2eA
Um abraço sem tempo...
ResponderEliminarO tempo e as perceções que dele vamos tendo ao longo da vida...
ResponderEliminarBelíssimo texto que só uma mãe inspira.
Ao ler este belo texto da Suzana veio-me ao pensamento as diferentes percepções que vamos tendo sobre a passagem do tempo à medida que o tempo passa e se aproxima. Inevitavelmente, pensamos naqueles que nos são queridos, que pertencem ao nosso tempo e dão sentido ao tempo que percorremos...
ResponderEliminarCaro Bartolomeu um bordado bem elaborado foi o que o meu amigo teceu no seu comentário, muito bonito mesmo!
ResponderEliminarCaro Massano Cardoso, um abraço sempre a tempo, para si também.
Caros Zé Mário e Margarida, vamos olhando e vendo, nos que nos são mais próximos, as várias formas de contar uma vida, o protagonista vitorioso é sempre o tempo, o que perdemos e o que soubemos aproveitar.
O tempo vai-nos fugindo e não conseguimos agarrá-lo. Vamos ficando para trás, ê a lei da vida e a lei do tempo. Não lhe escapamos.
ResponderEliminarLinda evocação, cara Suzana.
Nalguma coisa há-de haver igualdade, caro Pinho Cardão, a lei do tempo é inexorável :)
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