terça-feira, 8 de dezembro de 2020
“Para ali não mandaram senão empregados incapazes…”
Tarde e a más horas
Mas, como a realidade se contrapõe à ideologia, não foi preciso mais que um ano desde a sua entrada em vigor para comprovar toda a incapacidade para defender a saúde dos portugueses.
Se em Março o SNS já mostrava as suas debilidades, com milhões de consultas e dezenas de milhares de cirurgias adiadas, o COVID veio a tornar ainda mais crítico o seu funcionamento, não só para os doentes da pandemia, mas para todos os que, sofrendo de outras doenças, se vêem impossibilitados de ser acolhidos nos hospitais. É por isso abominável que o Ministério da Saúde tenha vindo a rejeitar a disponibilização pelo sector privado de algumas centenas de camas, das quais dezenas em UCI, como a Associação dos Hospitais Privados vem lembrando, e que só agora, encostado à parede, por ser já impossível esconder o risco de ruptura do SNS, se veja forçado a dar passos para associar as unidades do sector privado e das misericórdias no apoio ao SNS. Uma ligação até agora considerada promíscua, a evitar a todo o custo.
E, embora a gravidade da situação impusesse uma estratégia global, o facto de tais diligências se efectuarem a nível regional e não nacional mostra que o Ministério da Saúde evita o envolvimento directo nessas negociações, porventura como derradeira forma de afirmar a sua pureza ideológica. Preferiria seguramente a requisição de serviços que o Presidente da República desaconselhou.
Dizem as esquerdas que os gastos com os cuidados médicos privados oneram o SNS, uma falsidade. A prova é que o valor que o Estado paga por tratamentos nos hospitais privados consta de tabelas oficiais e é inferior ao seu custo na rede do SNS.
Mas, mesmo que assim não fosse, seria sempre uma iniquidade imperdoável se, por razões ideológicas, se deixassem morrer pessoas ou agravar doenças pelo facto de o SNS não as encaminhar para onde pudessem ser tratadas. E isso acontece.
(Meu artigo na edição de 20 de Novembro de 2020 nos jornais Diário de Coimbra, Diário de Viseu, Diário de Aveiro e Diário de Leiria)
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Distribuir sem investir, o fado da perdição
Na parábola evangélica dos talentos, um rico senhor, antes de iniciar uma longa viagem, chamou três dos seus empregados e entregou 10 talentos ao primeiro, cinco ao segundo e um ao terceiro, prevenindo que no regresso lhe deveriam prestar contas. Quando voltou, o que tinha recebido os 10 talentos devolveu-os com um rendimento de outros dez, o que tinha recebido cinco apresentou um lucro de outros cinco e aquele que tinha recebido um restituíu-o a singelo, já que o enterrou para se livrar de trabalhos adicionais. Os dois primeiros foram recompensados, enquanto o último foi castigado.
Também Portugal tem enterrado muito dos fundos europeus, não tirando deles a devida rentabilidade. O PIB só cresceu mais que os montantes recebidos nos primeiros 10 anos pós adesão, nos governos de Cavaco Silva, de 1986 a 1995. Ao contrário, de 1995 até hoje o crescimento do PIB apenas igualou os apoios europeus. E a paridade do PIB per capita foi regredindo em relação à média europeia, tendo Portugal sido ultrapassado por muitos países. A política prosseguida não só não rentabilizou esses fundos, como colocou Portugal na bancarrota em 2011, endividou o país como nunca e sujeitou os portugueses à maior carga fiscal de sempre.
Neste quadro, a União Europeia tem sido bem mais generosa para nós do que o proprietário da parábola. E é assim que Portugal irá receber da União Europeia mais 60 mil milhões de euros nos próximos 10 anos, uma média anual incomensuravelmente superior à de que Portugal beneficiou desde a adesão, faz 35 anos.
Apoiar e relançar a economia, tornar as empresas fortes e competitivas deveria ser o foco das políticas, mas a prioridade volta a ser mais e maior Estado.
Como anunciado, o grande beneficiário dos 13 mil milhões de euros do Plano de Recuperação serão o Estado e a Administração Pública, enquanto apenas cerca de 23% do total vão ser afectos ao potencial produtivo, forma vaga que abrangerá o apoio directo às empresas.
E assim, não se alterando, e até se robustecendo as políticas que governaram Portugal durante 18 dos últimos 25 anos, o resultado só pode continuar a ser o da estagnação e retrocesso.
Em detrimento de um suporte à modernização da estrutura produtiva, o governo optou por um acréscimo de gastos públicos, esquecendo que, terminado este excepcional apoio europeu, o seu financiamento não advirá da economia, mas de novos máximos do endividamento e da carga fiscal.
Distribuir antes de investir é o caminho da perdição. E é também o nosso fado.
(Artigo publicado no Diário de Coimbra, Diário de Viseu, Diário de Aveiro e Diário de Leiria de 9 de Outubro de 2020)
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Uma Visão sem Plano e um Plano sem Visão
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Uma Pedra não faz um Santo, nem uma Visão um Plano
Ainda não sei porquê, mas porventura por uma associação de contrários, ao ler a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal de Costa Silva, lembrei-me do Padre António Vieira e do seu Sermão do Espírito Santo, uma peça notável da literatura portuguesa.
«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar…”.
É que aquele documento, que o Governo chama de Plano de Recuperação da Economia, tem tanta semelhança com um Plano como a pedra tosca, bruta, dura, informe com a estátua de um santo que se pode pôr no altar.
Um Plano define objectivos específicos, mensuráveis, definidos no tempo, coerentes e hierarquizáveis e indica os recursos necessários, sua origem e montante. E particulariza acções para os atingir e o custo de cada um, comprova a sua coerência interna, indica a sua execução no tempo, determina qual a hierarquização face à sua valia interna e aos recursos sempre escassos.
Um Plano, por mais flexível que seja, e deve sê-lo, longe de nós a desgraça dos rígidos Planos Quinquenais, deve atender a estes requisitos, o que a dita Visão, rapidamente transformada em Plano, manifestamente não faz, assemelhando-se mais a um catálogo de possíveis realizações.
Seguindo Vieira, trata-se de uma pedra em bruto, e obrigatório seria que o Governo, em vez de insistir em colocá-la de imediato no altar dos seus troféus, tomasse de imediato o maço e o cinzel para lhe desbastar o grosso e modelá-la objectivo a objectivo, recurso a recurso, acção a acção, até ao pormenor, de forma a obter um Plano bem esculpido, aberto ao presente e ao futuro, atento aos interesses do povo e não dos lóbis institucionalizados, com cabeça, tronco e membros bem lançados para suportar reveses, sopesar equilíbrios e indicar firmemente o caminho.
Um Plano capaz de rentabilizar o enorme volume de cerca de 69 mil milhões de euros fundos europeus disponíveis até 2030, que quase dobra a média anual de que o país beneficiou desde a adesão, e assim potenciar o aumento da riqueza. Em contraste com o que aconteceu desde 1995, em que o acréscimo do PIB se limitou a igualar o valor recebido, não multiplicando o produto, e o PIB per capita em paridade de poder de compra veio sucessivamente a regredir.
Contudo, Governo e Ministros parecem apenas preocupados em gerir o dia-a-dia e a provar a sua existência nos telejornais, servindo-se de pretextos ou de decisões rotineiras que não trazem dignidade à função, antes diariamente a desprestigiam. Ou então proclamando projectos grandiosos, como o do hidrogénio, sem valia intrínseca demonstrada, um atentado à competitividade das empresas, ou políticas a que chamam de nova geração ou agendas para a inovação, muita pompa e circunstância, mas em que o aparato dos nomes não substitui a parca substância.
É esta política ociosa, este engano de vida que conduz o Governo, que erigiu a Visão Estratégica a Plano de Reestruturação Económica e já o colocou, para veneração dos crentes, no altar das celebrações governamentais. Esquecendo que, parafraseando Vieira, só aplicando o cinzel, com esforço e perseverança, é possível transformar uma pedra bruta e informe santo que se pode pôr no altar. É que, sem cinzel e trabalho, uma Pedra não faz um Santo, nem uma Visão faz um Plano…
(meu artigo na edição do i de 18 de Setembro de 2020)
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