quinta-feira, 22 de setembro de 2022

“Até eu medrava sem comer” …


No pico do espraiamento do sol tive que calcorrear uns bons metros através de velhas ruelas sempre à procura da tão desejada sombra. 

Quatro gatos alinhavam-se em frente de uma porta modesta demonstrando que ali nasce comida pela qual nunca tiveram de lutar ou de trabalhar. Sabem-na toda estes animais ditos domésticos, embora não totalmente, visto que prezam, de forma ímpar, a independência e a liberdade. Três gatos cercavam um outro, mais pequeno e ranhoso, que não se mexia. Encolhido, e paralisado de medo, devia estar a equacionar a melhor maneira de livrar-se dos três “irmãos”, umas verdadeiras bestas. Todos quietos. Um deles, em jeito de ataque imediato, era o que estava mais perto, enquanto o segundo, negro, com o pelo eriçado e olhar assustador, trancava, um pouco mais longe, a passagem de uma eventual fuga. O terceiro, castanho-amarelado, acabou por desistir daquela parvoíce abandonando o local em passo lento e com um ar verdadeiramente aristocrático. O quadro dos três gatos adquiriu, subitamente, vida, com o mais perto a mostrar dentes aguçados e a bufar à maneira ao mesmo tempo que dava uma valente patada com as garras desnudadas no focinho do pobre animal que, encolhido, quase desapareceu tipo ouriço-cacheiro. Gemeu de dor. Perante o quadro avancei em seu auxílio. Safou-se e agradeceu, miando com ternura e com um olhar enternecido. Avançou uns metros e colocou-se à sombra debaixo de um contentor. Os outros dois viraram-se para mim, mas devem ter reparado que eu tinha uns valentes palmos a mais. Mesmo assim não desarmaram à primeira. Olhares furiosos prontos a atacar. Eu fiz o mesmo e dei-lhes a entender que estava preparado para ripostar à maneira.  

Analisando a questão, não vi que tivesse violado o seu território, não vi nenhuma fêmea a apelar à satisfação do cio e também não me pareceu que fosse por causa dos alimentos. Os agressores estavam bem nutridos, ao passo que a vítima estava doente e visivelmente esfomeada. Quanto à minha pessoa também não me referenciei como alguém que pusesse em causa a etologia felina. 

Ia a pensar neste quadro urbano e despropositado, em que a violência extravasa a sua força, quando uma senhora bem nutrida, sentada na soleira da sua porta, não muito distante do episódio que acabei de contar, manifestava em alta voz o seu desagrado com a menina que lhe queria saltar para o lombo. Traquina, e calada como os gatos, tentava fazer das suas. Uma atitude que tomei como lúdica e carinhosa. Quem não estava a gostar da conversa era a avó, que lhe gritava: - Está quieta meu estupor. Nunca estás queda. Só sabes chatear. Quem me dera que a tua mãe viesse amanhã da Alemanha e te levasse. Até eu medrava sem comer! A pobre da criança deixou-se de brincadeiras e sentou-se na soleira da porta ao lado. Amuada? Sim, ou qualquer coisa parecida. Às tantas pensei, o raio do calor dá cabo dos cornos, quer das pessoas quer dos gatos. Só pode. 

Sem comentários:

Enviar um comentário