sábado, 1 de abril de 2006

Um mal maior

Dizia Luis António Verney, no séc. XVIII, "dêem às mulheres as mesmas oportunidades que dão aos homens e verão quem governa o mundo". Oportunidades não são quotas, são condições e liberdade para exercício de direitos, eliminados os obstáculos, o resto é com cada um.
Não sei se alguma vez fui prejudicada na minha vida profissional por ser mulher. Se fui, não tive consciência disso, e seguramente nunca ninguém se atreveu sequer a sugerir-me esse argumento quando me aconteceu protestar sempre que isso aconteceu.
É verdade que algumas vezes em que ambicionei novos caminhos ou tentei ir mais adiante tive que considerar alguns factores que se calhar um homem não ponderaria, mas sempre entendi que esse era o campo da minha liberdade individual, que era uma questão de escolhas, de prioridades e, claro, de circunstâncias pessoais.
Também não conheço qualquer episódio digno de nota no que respeita às pessoas que conheço, e conheço mesmo muitas mulheres excelentes profissionais e com ambição à altura das suas capacidades. Falo dos dias de hoje, não de há 30 ou mesmo 20 anos.
Isto não significa que já esteja tudo resolvido ao nível das mentalidades, é evidente que aí estamos a milhas de encarar a paridade como uma normalidade absoluta, mas não é um problema de mais lei ou menos lei, é uma questão cultural, geracional, de hábitos e tradições que vão buscar a sua raíz na disparidade que existiu durante séculos.
Essa mentalidade vai continuar a evoluir rapidamente, uma vez assegurada a igualdade de acesso à educação e eliminação das barreiras que existiam, como o direito de exercer profissões, ou actividades,direitos e deveres na família, etc.
Mas garantir liberdades não tem nada que ver com impor quotas que, além de serem profundamente humilhantes, nada resolveriam se as dificuldades de base não estivessem resolvidas.
Pelo contrário, significam um retrocesso num caminho que está a ser veloz, como o demonstra o número de alunas no ensino superior, a sua representação entre os melhores finalistas ou o sucesso nos concursos para o acesso às profissões, para só dar alguns exemplos. Se, até aí, não foram precisas quotas para nada, porque é que hão-de ser para continuar o caminho? Para ser dirigente, empresária ou política? As mulheres chegam por mérito a todo o lado menos à política porquê? Será esse o último bastião do conservadorismo militante? Se é assim, cabe especialmente aos políticos que partilham dessa suspeita combater, pelas ideias e pela prática, o que consideram intolerável.
Não é afirmando a sua incapacidade de vencer resistências, impondo artifícios sob a forma de lei, que se dignificam ou credibilizam. Nem a eles, nem às mulheres que dizem valorizar, porque estão a atribuir-lhes um estatuto de menoridade que é em tudo desmentido pela prática.
É um mal menor, dirão alguns, assim chega-se lá mais depressa. Discordo em absoluto.
É um mal maior, porque vai levar muito mais tempo a apagar a mancha sobre as que acedem aos lugares ao abrigo de “reservas” de que não precisavam para nada, do que levariam a chegar lá, em número e qualidade, pelo simples facto de quererem.
Como dizia uma jovem a este propósito, não é preciso abrirem o caminho, basta que saiam da frente...

8 comentários:

  1. Concordo, em género e número.

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  2. É mais uma peça de reflexão a não perder, este magnífico texto.
    A propósito dele, limitando-me apenas à política activa, e esquecendo a irónica desfaçatez que as quotas representam, pergunto se não seria interessante tentar perceber se o afastamento das mulheres desta área de participação tem mais a ver com a "barreira" que lhe é feita por um mundo de homens, ou se é a própria natureza feminina que se constitui como bloqueio a numa actividade que, cada vez mais, tem menos a ver com a execução do bem comum, da forma mais eficaz e eficiente, no tempo mais oportuno? Observar o percurso de algumas grandes figuras femininas na cena política, atento o quadro conjuntural do seu exercício, talvez nos dê algumas pistas.

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  3. Anónimo15:49

    Suzana:
    Só agora reparei no seu post. Ainda bem que colocou aqui este testemunho com o qual concordo em absoluto.
    No dia em que a AR aprovou as quotas pensei em colocar uma nota sobre o assunto. Obviamente que não seria tão claro nem incisivo como a Suzana. Mas sobretudo correria o risco de ser visto como a opinião de quem, contra o politicamente correcto, afinal continua a defender a proeminência do género masculino. Escritas por si, as palavras e sobretudo as ideias não são diminuidas por essa suspeita.
    Queria só deixar sublinhada uma interrogação também feita no final do seu post, que corresponde, a meu ver, ao efeito mais preverso do sistema de quotas: daqui para a frente quantas mulheres não terão que lutar contra a suspeita de que o que são não é fruto do seu valor mas de uma discriminação a seu favor?
    Faço votos para que haja muitas mulheres que se retratem no registo que aqui deixou.

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  4. A Suzana pôs a questão nos termos certos e lançou o repto. Vamos ver se pega. Mas, como diz o Ferreira de Almeida, têm de ser as mulheres a desenvolvê-lo.
    Do ponto de vista teórico a posição da Suzana é inatacável, mas admito que surja uma teoria "pragmática" que venha defender que um sistema intercalar possa ter um importante efeito acelerador.
    Mas, quando estão em causa questões de princípio, fica sempre duvidosa a bondade dos entorses práticos.

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  5. Caros amigos, não me surpreende nada a vossa concordância com a indignação sobre esta questão das quotas, creio que hoje é quase uma questão de lucidez, para não dizer de seriedade,ver que ser trata de uma politiquice serôdia, como diz Crack, de uma "irónica desfaçatez". Qual é o problema da política, porque é que aqui há menos participação feminina?É arriscado dizê-lo, mas creio que ainda há um grande "receio" perante a exposição pública, a notoriedade, no sentido que extravasa o círculo nítido de uma qualquer actividade profissional. Esse facto, associado à má imagem pública do que é a política, leva a que as mulheres tenham um certo retaimento de se "meterem na confusão", expondo-se a elas e à família a apreciações que nem sempre são respeitosas ou dignificantes. Na política, mais do que qm qualquer profissão, avalia-se o carácter, vasculha-se o dia-a-dia, o modo como se veste, o círculo de amigos, etc. E esta devassa não é bem aceite nem pelas próprias, nem por aqueles que as querem proteger desses dissabores, não por as acharem incapazes, mas por temerem vê-las pagar o preço dessa ousadia.Uma mulher pode e deve ser competente, pode até ser a melhor na sua profissão, mas deve guardar recato, enquanto aos homens se admira a vaidade, o exibicionismo, os louros na cabeça e o passeio triunfal. Não é discriminação, é uma questão de tradição e cultura e um verdadeiro obstáculo para as próprias a quem a política atrai. E depois há outros factores, como a total desorganização de vida, na política não há rotinas, há serviço, disponibilidade, é o que tiver que ser a cada momento, não se é dono da própria agenda.E lá vem o complexo de culpa...É interessante ver que, quando um homem tem sucesso, o que se exige e espera é que a mulher o acompanhe, o apoie e se sinta muito orgulhosa dele. Se for a mulher,é porque "teve sorte em o marido aturar isso" ou "ele não se aBorrece por chegares tarde?" e é ele que é olhado com admiração e, o que é pior, às vezes com condescendência.Enfim, nada que as quotas resolvam, de certeza, mas que a verdadeira paridade, que é a está na cabeça das pessoas e sobretudo dos jovens, homens e mulheres, que hoje estão a iniciar as suas vidas familiares e profissionais, vai ultrapassar.Este "entorse poítico", como lhe chama just-in-time, só prejudica, e muito, um caminho que se devia fazer com determinação e mérito, não com pretensas facilidades.

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  6. Cara Suzana Toscano
    Neste seu último comentário, com que aprofunda a sua nota, num sentido em que encontrei resposta a algumas das interrogações que a questão me coloca, leio fundamentadas justificações, com as quais concordo, em absoluto, para o afastamento das mulheres da política. Sem dúvida que, para muitas mulheres, grandes bloqueios terão a sua origem nos constrangimentos da exposição pública, na necessidade da dupla afirmação pessoal que é exigida às mulheres, nas responsabilidades "domésticas" e familiares, que tradicionalmente se esperam asseguradas pela componente feminina da família, nos potenciais "estragos" que o exercício de cargos governativos pode fazer à imagem, quando não à harmonia, conjugal. Mas, apesar de reconhecer a importância destas condicionantes, espanta-me que tenham sido, e continuem a ser, as mesmas tão determinadamente enfrentadas, para vencer barreiras nos percursos académicos e de formação, na vida profissional, na arena social, nos costumes e na cultura, e não se encontre o mesmo élan para a intervenção política activa. Então, o que tem, ou não tem, a actividade política que tão pouco motiva as mulheres (como se percebe, não acredito que os bloqueios, que existem, fossem suficientes para impedirem um massivo ataque de hordas femininas aos centros do poder político, estivessem elas verdadeiramente interessadas em chegar "lá"!)? Será uma questão de tradição, como faz notar? Será porque não lhes está no "código genético", como dizem alguns cáusticos? Será porque a actividade política, tal como hoje generalizadamente se desenvolve, é, efectivamente, pouco atraente para a capacidade empreendedora e para o pragmatismo feminino?
    Parece-me que aceitar apenas a tese dos bloqueios pode, de alguma forma, "legitimar" a imposição de quotas e todo o discurso algo paternalista das condições que importa criar para facilitar o acesso das mulheres à política. Pelo contrário, parece-me que as quotas se tornam uma ridícula necessidade e uma espúria oportunidade quando confrontadas com o desinteresse efectivo das mulheres por uma actividade que não identificam como suficientemente atraente, para nela investirem o esforço de afirmação que tem caracterizado o percurso feminino na história da humanidade. Neste caso, estabelecer quotas poderia, no limite, ter um efeito muito perverso: "forçadas" a uma actividade que não as atrai, rapidamente as mulheres a caracterizarão à medida dos seus talentos. Olhando para o estado actual de esgotamento (há quem lhe chame o fim) da política, esta eventualidade não deixa de ser irónica, mas apelativa.

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  7. Caro Crack, a maior parte das actividades profissionais onde a questão já está mais que ultrapassada tem virtualidades de realização que a política também tem, mas sem a exposição pública e a transitoriedade desta. Ou seja, há um ónus grande sem perspectiva de que se chegue a realizar o que quer que seja.O que eu tenho visto, e conversado inúmeras vezes com outras mulheres, é que a maior parte detesta ou não vê especial atractivo na notoriedade e não está para entrar nas lutas políticas só para ter isso. Se podem trabalhar com igual gosto e êxito no escritório, no consultório, no Tribunal, como dirigentes ou como empresárias, porque hão-de fazê-lo na praça pública? Não sei se é genético, isso não será certamente, mas também não vejo qualquer interesse em forçar isso pelas quotas, sobretudo quando estas surgem com esse tal insuportável paternalismo de que fala.De certa forma, as mulheres "dessacralizam" o poder, têm uma visão mais utilitária dos cargos,não é uma qualidade ou um defeito, é uma característica.Se é geracional ou não, é o que veremos. A política vive muito desse espectáculo, mesmo quando se faz com seriedade e rigor, faz parte, talvez por isso não tem sido tão atractiva para as mulheres como têm sido os mais diversos sectores,e nunca foram precisas quotas para nada...

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