Eu, que sempre fui uma grande fã de contos infantis, banda desenhada, e todo o tipo de histórias de encantar, nunca consegui gostar da Alice no País das Maravilhas. Confesso mesmo que não li o livro de fio a pavio, sempre desisti a meio, e evitei cobardemente inclui-lo no reportorio das histórias que desfiava para entreter ou adormecer as crianças. Quando penso nisso, acho que essa história sempre me meteu medo.
Do lado de lá do espelho, Alice encontrou personagens que reconhecia enganosamente, porque tinham a aparência de simpáticos coelhos ou de cartas de jogar, mas afinal eram loucas ou perversas criaturas que entornavam o chá a ferver pela gola do casaco sem se queimarem, ou rainhas que queriam cortar a cabeça à menina. Na sua fuga por territórios desconhecidos, ou transfigurados, ela encontrava-se gigante ou minúscula, ora não cabia nas casas ou via inundações provocadas pelas próprias lágrimas, ora tinha a perspectiva da formiga.
Do lado de lá do espelho, a realidade era inversa mas parecia a mesma coisa. Ganhava uma vida absurda e incontrolável aos olhos de Alice, perdida no seu sono, impedida de gritar que não era nada disso, que todos estavam enganados e ela era só uma criança que queria voltar para casa. Mais ou menos isto, como disse, nunca li o livro de fio a pavio, se calhar uma parte disto é mais o que me aterrorizou do que propriamente o que está lá escrito.
Leio os jornais e penso na Alice no País das Maravilhas, do lado de lá desse espelho de papel o que é pequeno transforma-se num gigantão, o que devia ser grande reduz-se a um cantinho perdido, a um registo de nada, a um detalhe. E é preciso fazer um grande esforço para perceber se uns pais cuja filha desapareceu da cama onde dormia – desapareceu? Dormia? duvida o espelho – são pessoas destroçadas que lançaram mão de tudo o que se lembraram para recuperar a garota que amavam ou se são assassinos tortuosos, criaturas abomináveis capazes de germinar um plano que só não é diabólico porque nem o diabo era capaz de ir tão longe quanto o que o espelho nos quer mostrar. Um dia do lado de cá, os médicos pais são pessoas como nós, sentimos um arrepio gelado a pensar se alguma vez os nossos filhos ficaram sozinhos um segundo que fosse. Outro dia do lado de lá do espelho e o sorriso era afinal um esgar hediondo, uma máscara de cinismo cruel. Um dia do lado de cá e a polícia é distraida e lenta, um segundo do lado de lá e esses homens afinal descobrem indício insuspeitos, cabelos e células num carro que não existia, invocam farejos caninos de cheiros que se agarram como lapas quando do lado de cá do espelho os cheiros se diluem em pouco tempo sem deixar rasto. O mesmo se diga dos heróis um dia, bandidos noutro, team lideres num jogo, agressores a murro no outro. Amores perdidos numa página, ai onde é que eu deixei a revista do mês passado!, agora batalhas campais em vez das brancas grinaldas...
Folheio e lembro-me de Alice no País das Maravilhas, nada é o que parece, todas as formas são disformes, todos os tamanhos invertidos, todas as emoções enganosas. Leio os jornais, vejo a televisão, e só vejo a rainha de copas -mas não tem um coração?- a gritar “cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça!”
Leio os jornais e penso na Alice no País das Maravilhas, do lado de lá desse espelho de papel o que é pequeno transforma-se num gigantão, o que devia ser grande reduz-se a um cantinho perdido, a um registo de nada, a um detalhe. E é preciso fazer um grande esforço para perceber se uns pais cuja filha desapareceu da cama onde dormia – desapareceu? Dormia? duvida o espelho – são pessoas destroçadas que lançaram mão de tudo o que se lembraram para recuperar a garota que amavam ou se são assassinos tortuosos, criaturas abomináveis capazes de germinar um plano que só não é diabólico porque nem o diabo era capaz de ir tão longe quanto o que o espelho nos quer mostrar. Um dia do lado de cá, os médicos pais são pessoas como nós, sentimos um arrepio gelado a pensar se alguma vez os nossos filhos ficaram sozinhos um segundo que fosse. Outro dia do lado de lá do espelho e o sorriso era afinal um esgar hediondo, uma máscara de cinismo cruel. Um dia do lado de cá e a polícia é distraida e lenta, um segundo do lado de lá e esses homens afinal descobrem indício insuspeitos, cabelos e células num carro que não existia, invocam farejos caninos de cheiros que se agarram como lapas quando do lado de cá do espelho os cheiros se diluem em pouco tempo sem deixar rasto. O mesmo se diga dos heróis um dia, bandidos noutro, team lideres num jogo, agressores a murro no outro. Amores perdidos numa página, ai onde é que eu deixei a revista do mês passado!, agora batalhas campais em vez das brancas grinaldas...
Folheio e lembro-me de Alice no País das Maravilhas, nada é o que parece, todas as formas são disformes, todos os tamanhos invertidos, todas as emoções enganosas. Leio os jornais, vejo a televisão, e só vejo a rainha de copas -mas não tem um coração?- a gritar “cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça!”
Não li o livro até ao fim, repito. Não gosto daquelas maravilhas, até o título é terrível. Creio que a Alice acabou por acordar debaixo da árvore onde se tinha deixado adormecer, muito tranquila. Mas nunca mais deve ter podido olhar as coisas mais simples sem um sorriso amargo de profunda desconfiança.
Cada vez mais este caso se assemelha à "Divina Comédia" de Dante Alighieri, inclusivé na forma simétrica como é escrito, utilizando uma técnica original conhecida como terza rima, onde as estrofes de dez sílabas, com três linhas cada, rimam da forma ABA, BCB, CDC, DED, EFE.
ResponderEliminarOu seja... pais, midia, polícia... a diferença é que ainda não encontraram a forma correcta de rimar.
Este comentário foi removido pelo autor.
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ResponderEliminarDrª. Suzana Toscano,
ResponderEliminarQuero dizer-lhe:
-Este post, é um daqueles momentos raros em que os "artistas" se revelam.
Bom seria que fosse divulgado para além deste espaço.
Obrigado.
Peço desculpa à cara Suzana Toscano, por utilizar este espaço com um fim diferente aquele a que se destina, para comunicar a todos que irá realizar-se em Alenquer, durante os próximos dias 22,23 e 24 a XIV Feira do Vinho e do Cavalo, e a VI Feira do Artesanto. São feiras já com tradição, sobretudo a do vinho e do cavalo, esta realiza-se no Parque de Exposições da Horta d'El-Rei. O certame também conta com a participação de quintas produtoras de vinhos de qualidade, adegas cooperativas e empresários individuais, que irão vender directamente ao público os seus produtos, para além de provas de vinhos. Em paralelo, irá decorrer a VI Feira de Artesanato, no Fórum Romeira, onde estarão também patentes as tasquinhas com petiscos e pratos regionais e tradiccionais.
ResponderEliminarInformo ainda que o dia forte é o Sábado, podendo quem desejar visitar a feira, assistir durante a tarde aos espectáculos equestres, visita aos stand de vinhos e artesanato e finalmente jantar na tasquinha cujo menu lhe agradar.
Garanto até aos mais exigentes que irão encontrar excelentes vinhos regionais, a preços bastante convidativos.
Desejo-lhes um bom fim de semana.
Cara Suzana:
ResponderEliminarAntológico texto o seu. Uma verdadeira maravilha!...
O tratamento do caso pela comunicação social mostra que esta está cheia de inquisidores, que chamam novos inquisidores para lançar novas acusações e suspeitas.Não se olha a meios para lançar novos factos imaginados,dando-lhes a aparência da mais pura e cristalina das verdades.
Se fosse ainda possível haver inquisição, muita comunicação social condenaria os Mc Cann à fogueira, para que pudesse noticiar o facto!...
Cara Suzana
ResponderEliminarCompreendo perfeitamente o facto de não ter lido o livro. O seu texto veio provar algo que eu poderia sintetizar da seguinte maneira: A vida é absurdamente semelhante ao livro de Lewis Carrol… Os últimos acontecimentos e milhares de outros são perfeitos testemunhos!
A sua abordagem é rica, profunda e dramática, pondo a descoberto um mundo louco povoado de seres muito parecidos com as do livro. Era bom que um dia pudéssemos acordar…
Caro Bartolomeu, o 4r agradece a divulgação que faz da Feira do Vinho e do Cavalo e da Feira de Artesanato, tenho a certeza que merecem bem a ida a Alenquer.
ResponderEliminarQuanto ao caso que continua a alimentar as mais delirantes suposições, é como diz o Massano Cardoso, a vidaé muito parecida com aquela história terrível. Por mais elaborados e civilizados que sejam os contextos, no fundo os instintos condenatórios e impulsivos são os mesmos.