quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Jejuns

Afirmar que fazemos parte da primeira ou da segunda geração que não passa fome traduz uma realidade aplicada apenas ao mundo ocidental. A fome foi - embora, infelizmente, continua ainda em muitas partes do globo - um dos principais, senão mesmo o principal determinante de adaptação do homem ao meio ambiente. Tanto é assim, que a nossa fisiologia, assim como a de outras espécies, estão preparadas para viverem na penúria e não na abundância, estando esta última na base de muitos e graves problemas que afectam a nossa saúde. Também é conhecida as privações extremas de alimentos, que ocorriam com maior ou menor periodicidade, revelando a essência da mais pura animalidade humana ao não se coibir de práticas horríveis.
Se a produção de alimentos não era suficiente para prever os períodos de carência, a sazonabilidade dos mesmos contribuía para os agravar. Em determinados momentos do ano, a falta de mantimentos coincidia com o período do desenvolvimento das culturas, facto que, segundo alguns autores, poderia estar na origem de algumas formas de jejuns.
Fazer jejum não é muito convidativo. Só através da “força” religiosa é que é possível impô-lo. De facto, rara é a religião que não exige certas medidas purificadoras, nas quais está perfeitamente contemplado. Deste modo, evitam-se conflitos e, ao mesmo tempo, não deixa de ter um efeito positivo na saúde. Há elementos que revelam que a alternância da abundância com a penúria origina importantes modificações metabólicas. Estes “choques” podem ser salutares, ao contrário da fome permanente, como é óbvio, e da ininterrupta abundância.
Os portugueses eram muito dados aos jejuns. Não os “obrigatórios”, por falta de alimentos, mas os determinados pela religião. Apesar de hoje terem perdido muitas das tradições, mesmo assim, continuam a ser o povo da Europa que mais peixe consome. Já consumiram mais, sem sombra de dúvida. As épocas em que não se podia comer carne eram numerosas, e nem numa vulgar sexta-feira se podia comer. Recordo perfeitamente essa época em que a minha avô cumpria escrupulosamente as determinações. Acontecia que algumas pessoas, devido a doença, eram aconselhadas a comer carne por imposição médica. Neste caso, os mais velhos aceitavam violar as regras, mas com alguma relutância, e se o dia fosse mesmo santo não a comiam mesmo, uns ovitos e vá lá!
O jejum, desde que não seja prolongado, nem muito restrito, não faz mal, até pode ser muito útil.
Não estou a ver os publicitários a fazer reclames a esta prática! Onde é que iam buscar clientes? O governo também não o faz, porque está entretido com outros tipos de jejuns!
Desde que uma pessoa seja saudável, nada impede a sua prática. Mas não é preciso ser extremista. Os muçulmanos fazem-no durante o Ramadão e não vem mal ao mundo. A imposição levada ao extremo, como aconteceu com o presidente turco que teve a “infelicidade” de beber um copo de água durante o dia, com as câmaras da TV a testemunhar a falta, vai obrigá-lo a fazer um dia extra para compensar a distracção! Mas o pior são os doentes, caso, por exemplo, dos diabéticos que obedecem a esta regra, embora estejam dispensados de a cumprir. Um estudo recente revela sérios problemas, sobretudo nos que tomam insulina, os quais podem confrontar-se com graves crises de hipoglicémia. O facto desta doença estar a aumentar, também, nos povos muçulmanos, vem levantar algumas interrogações sobre como tratar e evitar as descompensações. Neste caso, o jejum pode ser perigoso e não se limita somente à diabetes.
Um convite à prática do jejum pode ser benéfico, desde que o indivíduo não apresente contra-indicações. Mas pode ser perigoso se for “aceite” por doentes que não deviam.
Desaparecidas, praticamente, as razões religiosas, que as impunham nesta parte do globo, também, não vejo quaisquer possibilidades em as manter ou promover. Brilhantes nutricionistas, e outros profissionais, estão mais preocupados em alardear os vários tipos de dietas, desde a mediterrânica até à paleolítica(!), passando por outras verdadeiramente mirabolantes, do que propriamente focar alguma atenção nesta técnica. Não esquecer que muitos consideram-na mesmo despropositada e contrária aos desejos dos seres humanos, excepto em situações médicas muito restritas, caso de uma operação, por exemplo. Passar um ou dois dias, de tempos a tempos, a comer frugalmente poderia ser uma solução para alguns problemas. O mais difícil é dar-lhe corpo! Falta de suporte sociológico face à mais poderosa força que nos move: o medo da fome.

5 comentários:

  1. Caro Professor Massano Cardoso
    O jejum "religioso" em Portugal já não é o que era. É certo que os portugueses comem mais peixe e porventura à sexta-feira, mas já não será tanto por razões de disciplina ou convicção religiosa mas antes porque se alteraram os hábitos alimentares. As preocupações com a saúde e com a beleza conduzem muitas pessoas à "penitência" forçada. Mas fazem-no por necessidade ou por puro capricho.
    Preocupante é o "jejum" que muitos portugueses são obrigados a fazer por causa das dificuldades económicas em que vivem. Esta nova "tradição" parece que veio para ficar...

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  2. Este jejum forçado, como bem diz a Drª. Margarida, que muitos portugueses são obrigados a fazer por causa das dificuldades económicas em que vivem, é mesmo preocupante e veio mesmo para ficar!

    Há dias, o Drº Alfredo Barroso (sobrinho e chefe da casa civil do ex PR Mário Soares), escrevia mais ou menos isto:
    "Há uns anos apertávamos o cinto, mas sabiamos que era temporário. Agora sabemos que é definitivo".

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  3. O problema que estão a descrever é um pouco diferente do que queria abordar. O facto dos portugueses estarem a apertar o cinto é uma realidade que não discuto. Quando acontece um fenómeno desta natureza a tendência é para procurar alimentos mais baratos ( o peixe nem vê-lo!) mas que se caracterizam por elevados valores calóricos e, por isso mesmo, muito perigosos para a saúde. Há uma fome “qualitativa” mas não quantitativa. Não esquecer que as pessoas de mais baixa condição social e económica são mais obesas, mas muito! O conceito de apertar o cinto tem que ser revisto. Pobreza, num pais como o nosso, leva, paradoxalmente à obesidade. Não esquecer que somos os mais obesos da Europa e não é por sermos os mais ricos, mas sim por sermos um dos mais pobres.

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  4. Caro Professor Massano Cardoso
    Também há fome quantitativa. Conheço bem esta realidade e posso adiantar - aliás a informação é pública - que só o Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa, que opera na zona da grande Lisboa, alimenta diariamente 53 mil pessoas.
    A situação é muito complicada.

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  5. Senhor Profesor Massano Cardoso,

    Abordando, desta forma, o tema deste seu post é até muito mais interessante…
    O curioso é que, em tantos artigos publicados na imprensa, relativos às inúmeras causas da obesidade, nunca encontrei esta relação, causa / efeito, que explicada desta maneira faz muito sentido!
    E mais, vem deitar por terra aquela expressão de cariz popular, usada quando se quer ofender muitas vezes, por inveja, o vizinho: “está nutrido que nem um porco”; Pelos vistos, nem sempre corresponde à verdade!
    No entanto há, também, fome no sentido literal do termo.
    Obrigado.

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