Era injusto não escrever sobre ela. Seria, de resto, o que ela esperaria, que a deixassem na sombra, ela que sempre viveu anulada na poeira das tempestades que as irmãs foram pródigas em desencadear.
Ao contrário das outras mulheres da família, Virgínia não era bonita, nem vistosa, apesar da sua pele muito branca e lisa, um pouco rosada, como se estivesse sempre a corar de vergonha. Era magra, no tempo em que gordura ainda era formosura, e usava uns óculos grossos de míope que lhe ocultavam a candura dos olhos. “- Os meus irmãos chamavam-me “Tábua de Engomar” para me arreliar “ – contava ela anos mais tarde, como que a desculpar-se das formas generosas que foi ganhando com a idade.
Era muito tímida, em contraste com o génio exaltado e teimoso das irmãs, por isso foi sempre protegida e acarinhada a troco de um estatuto que autorizava a que todos interferissem na sua vida, como se nunca tivesse deixado a infância. Não se interessou por política, ao contrário de Gertrudes, a irmã mais velha, e as paixões que ia alimentando calava-as bem caladas, bem bastavam os dramas que todos viviam por causa de Palmira, a irmã do meio, que acabaria louca de amor, no Rilhafoles.
Virgínia olhava o mundo como se tivesse tudo a temer dele, as discussões e zangas deixavam-na atordoada e doente, ficava sentada na sua cadeira horas a fio, tecendo finíssimos bordados, tão perfeitos que custava a acreditar que tivessem saído de mãos humanas. Tirava os óculos, curvava-se sobre o pedaço de linho, e os seus dedos seguiam laboriosos uma ordem invisível, ponto atrás de ponto, os ajours, os pé-de-flor, o ponto cheio, o ponto sombra. Aquelas obras primas enriqueciam os enxovais das irmãs, depois os das sobrinhas, mais tarde os das filhas destas, cada uma planeada e elaborada como se fosse uma dedicatória.
Sempre viveu sob o domínio asfixiante da irmã mais velha, que lhe estragou o primeiro namoro por causa de uma intriga de família e a fazia crer que era incapaz de se orientar sem ela.
Aos vinte anos, passada a 1ª guerra mundial, casou com um amigo dos irmãos, fingindo ignorar os negócios de que foi contrapartida, e dispôs-se a fundar uma família pacífica e feliz, onde a doçura dos gestos e a sua arte de cuidar das pequenas coisas lhe permitissem ter o seu espaço e marcar o seu modo de vida. Amou António com uma paixão sem reservas, admirava-lhe as gargalhadas soltas e a liberalidade dos gestos, iam ao teatro, ele incitava-a a cortar o cabelo à moda e apresentava-a aos amigos.
Ao contrário das outras mulheres da família, Virgínia não era bonita, nem vistosa, apesar da sua pele muito branca e lisa, um pouco rosada, como se estivesse sempre a corar de vergonha. Era magra, no tempo em que gordura ainda era formosura, e usava uns óculos grossos de míope que lhe ocultavam a candura dos olhos. “- Os meus irmãos chamavam-me “Tábua de Engomar” para me arreliar “ – contava ela anos mais tarde, como que a desculpar-se das formas generosas que foi ganhando com a idade.
Era muito tímida, em contraste com o génio exaltado e teimoso das irmãs, por isso foi sempre protegida e acarinhada a troco de um estatuto que autorizava a que todos interferissem na sua vida, como se nunca tivesse deixado a infância. Não se interessou por política, ao contrário de Gertrudes, a irmã mais velha, e as paixões que ia alimentando calava-as bem caladas, bem bastavam os dramas que todos viviam por causa de Palmira, a irmã do meio, que acabaria louca de amor, no Rilhafoles.
Virgínia olhava o mundo como se tivesse tudo a temer dele, as discussões e zangas deixavam-na atordoada e doente, ficava sentada na sua cadeira horas a fio, tecendo finíssimos bordados, tão perfeitos que custava a acreditar que tivessem saído de mãos humanas. Tirava os óculos, curvava-se sobre o pedaço de linho, e os seus dedos seguiam laboriosos uma ordem invisível, ponto atrás de ponto, os ajours, os pé-de-flor, o ponto cheio, o ponto sombra. Aquelas obras primas enriqueciam os enxovais das irmãs, depois os das sobrinhas, mais tarde os das filhas destas, cada uma planeada e elaborada como se fosse uma dedicatória.
Sempre viveu sob o domínio asfixiante da irmã mais velha, que lhe estragou o primeiro namoro por causa de uma intriga de família e a fazia crer que era incapaz de se orientar sem ela.
Aos vinte anos, passada a 1ª guerra mundial, casou com um amigo dos irmãos, fingindo ignorar os negócios de que foi contrapartida, e dispôs-se a fundar uma família pacífica e feliz, onde a doçura dos gestos e a sua arte de cuidar das pequenas coisas lhe permitissem ter o seu espaço e marcar o seu modo de vida. Amou António com uma paixão sem reservas, admirava-lhe as gargalhadas soltas e a liberalidade dos gestos, iam ao teatro, ele incitava-a a cortar o cabelo à moda e apresentava-a aos amigos.
Quando ficou à espera do primeiro filho, julgou que não era possível conhecer maior alegria, mas a gravidez não foi bem sucedida e Virgínia vestiu luto pelo feto de 4 meses. A segunda gravidez durou ainda menos, dessa vez já lhe foram tirando as ilusões, mas não quis acreditar. Quando perdeu o terceiro filho pensou que mais valia morrer, que não era justo ela querer tanto e não poder, entrou num desespero tão grande que exigiu que lhe conservassem o feto num frasco com formol e guardou-o em casa anos a fio, como uma relíquia, tapado com um pano preto.
Mas um mal nunca vem só, talvez porque o mal é isso mesmo, o arrastar de uns acontecimentos pelos outros. O facto é que António não sofreu o desgosto da mesma forma e foi-se afastando do clima tétrico que pairava em sua casa. Virgínia tinha vergonha da sua impossibilidade de lhe dar filhos, dizia-lhe que saísse, que fosse ele distrair-se, ela não podia. (continua)
Mas um mal nunca vem só, talvez porque o mal é isso mesmo, o arrastar de uns acontecimentos pelos outros. O facto é que António não sofreu o desgosto da mesma forma e foi-se afastando do clima tétrico que pairava em sua casa. Virgínia tinha vergonha da sua impossibilidade de lhe dar filhos, dizia-lhe que saísse, que fosse ele distrair-se, ela não podia. (continua)
Para nos dar a conhecer os exímios bordados de Virginia, a finíssima filigrana literária de Suzana Toscano.
ResponderEliminar"os seus dedos seguiam laboriosos uma ordem invisível, ponto atrás de ponto, os ajours, os pé-de-flor, o ponto cheio, o ponto sombra. Aquelas obras primas enriqueciam os enxovais das irmãs, depois os das sobrinhas, mais tarde os das filhas destas, cada uma planeada e elaborada como se fosse uma dedicatória"
Como se fosse uma dedicatória... é isso cara Suzana, que em minha opinião distingue a obra.
É essa dedicatória que falta nos nossos dias à obra que é feita só porque sim.
No caso de Virginia... ha realmente quem tenha a pouca sorte de nascer fora do tempo, arrastando pela vida fora o desejo de nem sequer terem nascido.
Espero atentamente a continuação...
Na expectativa, Suzana, da continuação...
ResponderEliminarPara começar o dia nada melhor do que a leitura de uma deliciosa crónica que promete.E muito...
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarInforma-se que a vossa barra lateral foi parar lá abaixo. É normal nestes templates. Basta reduzir ligueiramente o tamanho de algumas fotos que fica tudo bem novamente.
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarUma história de vida muito triste deliciosamente contada.
Há vidas como que condenadas na sua essência pelo desgosto brutal de acontecimentos que não são normais. Alguns deles irreparáveis e não compensáveis! Mas a vida ainda assim tem que se viver. Como é possível? Só cada um poderá dar a resposta pois não há uma resposta.
Quanto tempo vamos ter que esperar para lermos mais sobre a Virgínia?
Obrigada, cmonteiro, já "encolhemos" algumas imagens, acho que ficou resolvido.
ResponderEliminarCaros amigos, fico muito iludida com esses comentários. Arriscam-se a que continue...:)))
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCara Dra. Suzana Toscano:
ResponderEliminarSubscrevo inteiramente o lindo comentário da Dra. Margarida Aguiar e atrevo-me a acrescentar o seguinte: esta narrativa da história de vida da sua Virgínia, passou a ser também, a partir deste momento, a narrativa da história de vida de muitas outras Virgínias.
Neste sentido, este belo e “límpido” texto é uma justa homenagem a todas elas...
Agora está bem, cara Suzana. Detesto ver um blog desconfigurado.
ResponderEliminarCaro cmonteiro, sempre atento à boa ordem das coisas!:)
ResponderEliminarCaro Invisível, o 4r, espaço aberto à liberdade e à iniciativa, arrisca agora uma pequena "série" mais romântica, só para quebrar a linha editorial emocionante do relato e comentário político! Prometo não repetir,é só desta vez!