(…) o edifício de Rilhafoles foi destinado para o hospital de alienados, isto é destinado a doentes mentais, transformando-se no antigo manicómio de Lisboa. A instituição evoluiu entretanto para o actual Hospital de Miguel Bombarda, sendo contudo conhecido durante muito tempo por Hospital de Rilhafoles.
Durante muitos anos não percebi o que era o Rilhafoles, termo que era usado na família como uma ameaça terrível que pairava sobre o destino dos amores infelizes. Era assim como um castigo divino, sem existência concreta ou lugar permanente, uma condenação vergonhosa, ou uma fatalidade, que perseguia quem se desviasse do caminho sensato e previsível.
Esse código familiar teve origem na história de uma tia avó, de seu nome Maria Palmira, a única que já não conheci mas cuja sombra ficou para lição e temor das rebeldias dos mais novos. A sua vida tormentosa ficou também gravada na única fotografia que lhe tiraram, já apagados os traços da vontade de viver, uma sombra triste nos olhos grandes e as mãos abandonadas no regaço, numa lassidão comovente.
Teve o azar de nascer bonita, teimosa e rica, e nesses atributos confiou para poder escolher a paixão da sua vida.
Vicente era um caçador de dotes, aventureiro e mulherengo, que lhe fez o rapapé sem grande empenho, enquanto farejava o que melhor lhe convinha para financiar a tão cobiçada viagem para África, terra de oportunidades onde contava fazer fortuna com o seu estilo atrevido e pouco escrupuloso. Não reparou na paixão que despertou, ou levou à conta de capricho de menina mimada, e deixou criar a ilusão de que vinha para casar, ignorando as ameaças da família dela para que se fizesse ao largo antes que fosse tarde para a reputação da rapariga.
Quando anunciou que queria casar com outra, já ela tinha bordado o enxoval, tecendo elaborados monogramas com as suas mãos de fada, deixando por uma vez as cores berrantes com que gostava de fazer as rendas, num sinal de protesto agreste contra o branco e os matizes pálidos, que não iam com o seu feitio peremptório e desafrontado.
Tarde demais. Maria Palmira fez uma cena ao pai e aos irmãos, gritando que se matava se não casasse com o Vicente. Ele foi chamado à pedra para reparar o dano, vão-se os anéis fiquem os dedos, talvez com o tempo e o dote o mariola entrasse nos eixos.
Logo no dia do casamento lhe deu uma sova mestra e reduziu a cacos o lindo serviço de porcelana que integrava o enxoval. Partiu pouco depois para África, com o que pôde levar do dote, sem deixar morada nem destino, convencido de que estaria a salvo da vingança da família.
Mas a sorte não lhe sorriu e em breve escrevia à mulher, pedindo perdão e mandando-a ir, que podiam recomeçar tudo, que agora é que ele via o erro imperdoável de que a queria compensar sem mais demoras.
Não houve forma de a dissuadir. Meteu-se no barco e lá foi, apesar das ameaças dos irmãos e dos pais, que escusava de voltar porque para eles estava morta.
Muitos meses passaram até que chegou a carta. Escrevia ela, numa letra miúda e nervosa, que o Vicente tinha desaparecido no mato, levando tudo o que ela tinha, deixando-a à mercê da caridade dos poucos brancos que viviam naquele ermo. Tinha apenas o suficiente para embarcar no próximo navio, só pedia que a fossem esperar ao cais e a acolhessem como faziam aos pobres.
Chegou miserável, em frangalhos de corpo e de espírito, depois da travessia em 3ª classe, num amontoado de gente desvalida.
Nem assim lhe passou a cisma. Pouco tempo depois meteu-se-lhe na cabeça que ele lhe escrevia, mas que lhe escondiam as cartas. Começou a ouvi-lo chamar por ela, imaginava-o doente e sem abrigo, culpava-se de não ter sabido entender o seu espírito aventureiro e brigão, uma forma como outra qualquer de lhe provar o seu amor, dizia ela, a culpa era de não lhe poder dar um filho, a culpa era dela.
Ele não escreveu, mas apareceu um dia a bater à porta, pimpão e insolente, a pedir o regresso da mulher “que mantinham cativa”. Os cunhados dispararam a caçadeira, quis a sorte que não o matassem, foi pena, assim ficou o relato na família.
O certo é que ela voltou para ele, vindo em breve a reclamar o resto do dote, que prudentemente tinha sido retido pelo pai.
A outra carta chegou muito tempo depois, de outro ponto de África. Aí, já ela se despedia de todos, “que pena tenho de não os poder abraçar”, contava as agruras de novo abandono, de mais miséria, por fim da saúde precária que “o Vicente não pode suportar”.
Compraram-lhe um bilhete de volta e começaram a tratar do divórcio, fazendo saber a Vicente que se se atrevesse a por o pé em Lisboa, seria preso e condenado pelas patifarias que todos lhe conheciam.
Maria Palmira quase deixou de falar, numa tristeza profunda, alheando-se de todos, agarrada aos bordados berrantes que tecia sem parar, metros e metros de renda inútil e monótona com que entretinha a esperança de ele voltar. Nunca assinou os papéis para a separação, nem ele deu sinais de vida durante muito tempo.
Viram-no um dia na Baixa, a rondar a casa, todo bem posto, mas notaram-lhe os sapatos velhos e o bigode descuidado, acentuando o olhar manhoso de predador traiçoeiro.
Até que um dia ela desapareceu, levando as rendas inacabadas e algumas jóias de família. O pai tinha morrido entretanto e destinara-lhe em testamento alguns prédios de rendimento, Vicente sabia disso e assim se explicou o seu regresso.
Dessa vez ele não a deixou voltar. Começou a soar na cidade que Maria Palmira era louca, que o marido não a podia ter em casa, que gastava em médicos o que tinha e o que não tinha, ah!, se ele tivesse ficado em África tinha uma fortuna, mas por causa dela, coitado, o que não pode o amor!
Internou-a no Rilhafoles, onde nunca a foi ver e, mal soube da sua morte, meteu um advogado para se apresentar como único herdeiro dos bens que não tinha conseguido vender.
Diziam que voltou para África, onde morreu de má morte numa rixa de taberna, alcoolizado e meio louco.
Durante muitos anos, de Maria Palmira nem se ouvia o nome, só o Rilhafoles era invocado como destino tenebroso das meninas desobedientes e teimosas, presas fáceis de aventureiros sem escrúpulos que as encantavam com a canção do bandido.
Mas a palavra escrita não deixou apagar a memória, e um dia encontrei as duas cartas de África, guardadas num velho baú da minha avó, que me contou a história com raiva e ódio, lamentando a falta de pontaria dos irmãos no dia em que se disparou a caçadeira…
Durante muitos anos não percebi o que era o Rilhafoles, termo que era usado na família como uma ameaça terrível que pairava sobre o destino dos amores infelizes. Era assim como um castigo divino, sem existência concreta ou lugar permanente, uma condenação vergonhosa, ou uma fatalidade, que perseguia quem se desviasse do caminho sensato e previsível.
Esse código familiar teve origem na história de uma tia avó, de seu nome Maria Palmira, a única que já não conheci mas cuja sombra ficou para lição e temor das rebeldias dos mais novos. A sua vida tormentosa ficou também gravada na única fotografia que lhe tiraram, já apagados os traços da vontade de viver, uma sombra triste nos olhos grandes e as mãos abandonadas no regaço, numa lassidão comovente.
Teve o azar de nascer bonita, teimosa e rica, e nesses atributos confiou para poder escolher a paixão da sua vida.
Vicente era um caçador de dotes, aventureiro e mulherengo, que lhe fez o rapapé sem grande empenho, enquanto farejava o que melhor lhe convinha para financiar a tão cobiçada viagem para África, terra de oportunidades onde contava fazer fortuna com o seu estilo atrevido e pouco escrupuloso. Não reparou na paixão que despertou, ou levou à conta de capricho de menina mimada, e deixou criar a ilusão de que vinha para casar, ignorando as ameaças da família dela para que se fizesse ao largo antes que fosse tarde para a reputação da rapariga.
Quando anunciou que queria casar com outra, já ela tinha bordado o enxoval, tecendo elaborados monogramas com as suas mãos de fada, deixando por uma vez as cores berrantes com que gostava de fazer as rendas, num sinal de protesto agreste contra o branco e os matizes pálidos, que não iam com o seu feitio peremptório e desafrontado.
Tarde demais. Maria Palmira fez uma cena ao pai e aos irmãos, gritando que se matava se não casasse com o Vicente. Ele foi chamado à pedra para reparar o dano, vão-se os anéis fiquem os dedos, talvez com o tempo e o dote o mariola entrasse nos eixos.
Logo no dia do casamento lhe deu uma sova mestra e reduziu a cacos o lindo serviço de porcelana que integrava o enxoval. Partiu pouco depois para África, com o que pôde levar do dote, sem deixar morada nem destino, convencido de que estaria a salvo da vingança da família.
Mas a sorte não lhe sorriu e em breve escrevia à mulher, pedindo perdão e mandando-a ir, que podiam recomeçar tudo, que agora é que ele via o erro imperdoável de que a queria compensar sem mais demoras.
Não houve forma de a dissuadir. Meteu-se no barco e lá foi, apesar das ameaças dos irmãos e dos pais, que escusava de voltar porque para eles estava morta.
Muitos meses passaram até que chegou a carta. Escrevia ela, numa letra miúda e nervosa, que o Vicente tinha desaparecido no mato, levando tudo o que ela tinha, deixando-a à mercê da caridade dos poucos brancos que viviam naquele ermo. Tinha apenas o suficiente para embarcar no próximo navio, só pedia que a fossem esperar ao cais e a acolhessem como faziam aos pobres.
Chegou miserável, em frangalhos de corpo e de espírito, depois da travessia em 3ª classe, num amontoado de gente desvalida.
Nem assim lhe passou a cisma. Pouco tempo depois meteu-se-lhe na cabeça que ele lhe escrevia, mas que lhe escondiam as cartas. Começou a ouvi-lo chamar por ela, imaginava-o doente e sem abrigo, culpava-se de não ter sabido entender o seu espírito aventureiro e brigão, uma forma como outra qualquer de lhe provar o seu amor, dizia ela, a culpa era de não lhe poder dar um filho, a culpa era dela.
Ele não escreveu, mas apareceu um dia a bater à porta, pimpão e insolente, a pedir o regresso da mulher “que mantinham cativa”. Os cunhados dispararam a caçadeira, quis a sorte que não o matassem, foi pena, assim ficou o relato na família.
O certo é que ela voltou para ele, vindo em breve a reclamar o resto do dote, que prudentemente tinha sido retido pelo pai.
A outra carta chegou muito tempo depois, de outro ponto de África. Aí, já ela se despedia de todos, “que pena tenho de não os poder abraçar”, contava as agruras de novo abandono, de mais miséria, por fim da saúde precária que “o Vicente não pode suportar”.
Compraram-lhe um bilhete de volta e começaram a tratar do divórcio, fazendo saber a Vicente que se se atrevesse a por o pé em Lisboa, seria preso e condenado pelas patifarias que todos lhe conheciam.
Maria Palmira quase deixou de falar, numa tristeza profunda, alheando-se de todos, agarrada aos bordados berrantes que tecia sem parar, metros e metros de renda inútil e monótona com que entretinha a esperança de ele voltar. Nunca assinou os papéis para a separação, nem ele deu sinais de vida durante muito tempo.
Viram-no um dia na Baixa, a rondar a casa, todo bem posto, mas notaram-lhe os sapatos velhos e o bigode descuidado, acentuando o olhar manhoso de predador traiçoeiro.
Até que um dia ela desapareceu, levando as rendas inacabadas e algumas jóias de família. O pai tinha morrido entretanto e destinara-lhe em testamento alguns prédios de rendimento, Vicente sabia disso e assim se explicou o seu regresso.
Dessa vez ele não a deixou voltar. Começou a soar na cidade que Maria Palmira era louca, que o marido não a podia ter em casa, que gastava em médicos o que tinha e o que não tinha, ah!, se ele tivesse ficado em África tinha uma fortuna, mas por causa dela, coitado, o que não pode o amor!
Internou-a no Rilhafoles, onde nunca a foi ver e, mal soube da sua morte, meteu um advogado para se apresentar como único herdeiro dos bens que não tinha conseguido vender.
Diziam que voltou para África, onde morreu de má morte numa rixa de taberna, alcoolizado e meio louco.
Durante muitos anos, de Maria Palmira nem se ouvia o nome, só o Rilhafoles era invocado como destino tenebroso das meninas desobedientes e teimosas, presas fáceis de aventureiros sem escrúpulos que as encantavam com a canção do bandido.
Mas a palavra escrita não deixou apagar a memória, e um dia encontrei as duas cartas de África, guardadas num velho baú da minha avó, que me contou a história com raiva e ódio, lamentando a falta de pontaria dos irmãos no dia em que se disparou a caçadeira…
7 comentários:
Suzana
Belo conto, pena ter sido verdadeiro. Mas é assim mesmo, há mulheres que estão dispostas a tudo por amor, a morrerem por amor. E há homens que sem escrúpulos passam toda uma vida a viver à custa das mulheres que enganam e mal tratam, como se este fosse um modo legítimo de viver.
Não constroem nada de bom à sua volta, para depois chegarem ao final da vida e acabarem mal. Sim porque a vida também é madrasta e não lhes perdoa. Mas pelo caminho deixam um rasto de infelicidade e desgraça sem remendo.
Os Vicentes continuam por aí e as Maria Palmiras também! Há coisas difíceis de entender. O amor tudo permite!
E hão-de continuar sempre, Margarida, para o bem e para o mal, o mundo seria banal e insuportável sem a paixão, foram as paixões que causaram grandes viragens na História, por elas muitos se revelaram ou foram destruídos. Há tempos li um artigo girissimo da Rosa Montero,na revista do El Pais,chaamado "Hablemos del amor" em que dizia que "a paixão é uma loucura admitida, um delírio que não está socialmente castigado". Faltará pouco para que também as paixões sejam "formatadas" mas, até lá, vamos contando as conhecemos para as manter vivas. Para o bem e para o mal.
Sem dúvida uma história cuja beleza só é equiparada pela fatalidade que encerra.
Concordo que há por aí muitos Vicentes e muitas Marias Palmiras, só eu conheço dois ou três casos e por curiosidade no caso mais grave o nome do pintas não é original ... curioso!
Há algo que não entendo, pareceme que as mulheres têm tendência a apaixonar-se pelos homens que não dignificam o ser humano.
Felizmente conheço excelentes raparigas, mas com muita pena minha vejo que acabam por se envolver com pessoas que nada lhes dão para além de trágicas vidas.Nota importante, são elas que procuram e criam a relação e têm dificuldades em cortar, mesmo quando a coisa toma contornos de tragédia biblica.
Por outro lado já vi essas mesmas raparigas a serem galateadas, por rapazes decentes, apaixonados. Mas estes têm uma dificuldade terrível para captar a sua atenção e para despertar os mesmos sentimentos.
A explicação pode estar nos instintos primários, na procura de um macho forte? ... ou não!
Será que este fenómeno social existe ou é só devaneio meu?
"Teve o azar de nascer bonita, teimosa e rica" ... curioso como o que à partida parece uma benção divina, acaba por ser uma maldição!
Caro Houdini
Há algumas explicações de carácter bio-evolutivo que levam muitas mulheres a deixarem-se envolver com os “Vicentes”. São predadores naturais e, por esse motivo, capazes de sobreviver em determinadas condições. São favorecidos a propagar os seus genes. Mas, curiosamente, as mulheres preferem os “outros” (Não Vicentes) para cuidar dos seus filhos. Procriar com uns e aproveitar dos cuidados de outros. Lá no fundo (cérebro profundo) estão certas “regras” que muitas vezes escapam à evolução cultural e social…
O amor é o sentimento mais estranho e mais complexo que emerge das profundidades…
"O coração tem razões que a razão desconhece", como diz o povo explicando a irracinalidade de algumas escolhas. O meu pai chamava-lhe simplesmente "tendência para a asneira", quando se falava neste caso de família ou noutros que corriam o risco de se tornar réplicas. Mas a explicação do Prof. Massano Cardoso resume bem as duas, há várias personalidades que coabitam em cada um de nós, e os estímulos vão determinar a resposta, às vezes vindas do tal "cérebro profundo" de que nem o próprio suspeita. Aqui, tal como em muitos factos da vida, muitas vezes é uma questão de sorte, de fases da vida, de excesso de confiança quanto à capacidade de contornar as dificculdades. Nas mulheres há também aquela esperança secreta de se ser "a única",a que consegue cativar o incorrigível conquistador ou converter o bandido, tornando-se a eleita. Enfim, uma teia muito complexa, de facto, com a agravante de ser contraproducente ou, na melhor das hipóteses, inútil, tentar contrariar frontalmente...
A paixão levada ao seu extremo, tem mesmo destas coisas.
É uma história do passado, do presente e certamente também o será do futuro. Como diz a própria autora no seu comentário, "o coração tem razões que a razão desconhece".
Enviar um comentário