Quando a sobrinha mais velha voltou de África com as filhas, tornou-se de alma e coração numa avó dedicada e zelosa. Encobria as tropelias das crianças, tentava sossegá-las ensinando os rudimentos dos bordados a troco de uns pacotinhos de caramelos que tirava da carteira e, mais tarde, era a ela que confidenciavam os primeiros desgostos de amor. Nessas alturas, ouvia em silêncio e só pela velocidade com que a agulha de bordar se movia é que se percebia como se afligia, temendo que as suas meninas não viessem a ser felizes. E ria-se perdidamente nos momentos de alegria, como se através delas recuperasse um pouco da sua juventude.
Mas a grande paixão da sua velhice foi António, o sobrinho neto mais novo. Sussurrava-lhe o nome, vigiava-o, embalava-lhe o berço horas e horas, olhando-o com devoção. Seria o filho nunca conseguido?, seria o nome?, Virgínia nunca falava dela própria, das suas dores de corpo ou de espírito, quando se interessavam encolhia-se, como se quisesse desaparecer, e desviava logo o assunto, mas com ele ganhou uma alegria tranquila.
Chamava-lhe “o meu menino”, marcando a diferença com este possessivo num gesto cúmplice, como se só os dois pudessem entender. Nunca lhe regateou mimos nem atenção e defendia-o com unhas e dentes, como se ele fosse território interdito a outros.
Assim correu a sua vida, discreta, sempre atenta aos outros, procurando tornar-se útil como quem pede desculpa de estar ali, sem nunca reparar como o seu ombro acolhedor e as suas teimas sensatas eram essenciais ao equilíbrio e à harmonia da família.
Morreu já perto dos 90 anos, após uma doença breve e secreta, que suportou sem alarde, aceitando apenas os desvelados cuidados da velha Chica. Não queria preocupar ninguém, como sempre, mas não resistiu a suspirar dizendo que receava já não ver a primeira filha do seu amado sobrinho António, cujo nascimento estava previsto para daí a dois meses. Foi então que ele teve aquele impulso de lhe contar o segredo, antecipando a surpresa que lhe tinha destinado: “- Sabe, tia, decidimos que a menina se vai chamar Virgínia”.
E ela estendeu a mão, acariciou-lhe a cara e disse, muito baixinho: “Que ideia a tua, filho, eu não mereço essa alegria!”. Já tinha a maleta ao lado da cama, aberta, o lençol engomado e o vestido de seda desabotoado, pronto a vestir.
E é assim que eu me lembro dela, a sorrir docemente, de olhos fechados, aceitando serena a morte, no embalo daquela homenagem.
Há pouco tempo, numa reunião de trabalho, uma mulher apresentou-se com um apelido familiar, o mesmo que o marido de Virgínia usava. Uma sobrinha neta estava presente e teve um pressentimento, qualquer coisa soou que a fez abordar a outra num impulso insensato e ansioso. “_ O seu apelido… por acaso é alguma coisa a António….?” A outra olhou-a, intrigada. “_ Sou filha, como é que o conhecia?” Um momento de hesitação, o acaso prega muitas partidas!, mas resolveu esclarecer o mistério. “_ A minha tia avó, Virgínia, foi mulher dele durante vinte anos. Até ele a deixar de vez, para casar com a sua mãe. Mas esperou sempre por ele, esperou cada momento, a vida toda”.
Foi então que a mulher a olhou, como se através dela quisesse espreitar a imagem da outra, reconhecer-lhe os traços, o timbre da voz, qualquer coisa que lhe desvendasse a sombra que sempre tinha estado presente na sua vida.
Mas a grande paixão da sua velhice foi António, o sobrinho neto mais novo. Sussurrava-lhe o nome, vigiava-o, embalava-lhe o berço horas e horas, olhando-o com devoção. Seria o filho nunca conseguido?, seria o nome?, Virgínia nunca falava dela própria, das suas dores de corpo ou de espírito, quando se interessavam encolhia-se, como se quisesse desaparecer, e desviava logo o assunto, mas com ele ganhou uma alegria tranquila.
Chamava-lhe “o meu menino”, marcando a diferença com este possessivo num gesto cúmplice, como se só os dois pudessem entender. Nunca lhe regateou mimos nem atenção e defendia-o com unhas e dentes, como se ele fosse território interdito a outros.
Assim correu a sua vida, discreta, sempre atenta aos outros, procurando tornar-se útil como quem pede desculpa de estar ali, sem nunca reparar como o seu ombro acolhedor e as suas teimas sensatas eram essenciais ao equilíbrio e à harmonia da família.
Morreu já perto dos 90 anos, após uma doença breve e secreta, que suportou sem alarde, aceitando apenas os desvelados cuidados da velha Chica. Não queria preocupar ninguém, como sempre, mas não resistiu a suspirar dizendo que receava já não ver a primeira filha do seu amado sobrinho António, cujo nascimento estava previsto para daí a dois meses. Foi então que ele teve aquele impulso de lhe contar o segredo, antecipando a surpresa que lhe tinha destinado: “- Sabe, tia, decidimos que a menina se vai chamar Virgínia”.
E ela estendeu a mão, acariciou-lhe a cara e disse, muito baixinho: “Que ideia a tua, filho, eu não mereço essa alegria!”. Já tinha a maleta ao lado da cama, aberta, o lençol engomado e o vestido de seda desabotoado, pronto a vestir.
E é assim que eu me lembro dela, a sorrir docemente, de olhos fechados, aceitando serena a morte, no embalo daquela homenagem.
Há pouco tempo, numa reunião de trabalho, uma mulher apresentou-se com um apelido familiar, o mesmo que o marido de Virgínia usava. Uma sobrinha neta estava presente e teve um pressentimento, qualquer coisa soou que a fez abordar a outra num impulso insensato e ansioso. “_ O seu apelido… por acaso é alguma coisa a António….?” A outra olhou-a, intrigada. “_ Sou filha, como é que o conhecia?” Um momento de hesitação, o acaso prega muitas partidas!, mas resolveu esclarecer o mistério. “_ A minha tia avó, Virgínia, foi mulher dele durante vinte anos. Até ele a deixar de vez, para casar com a sua mãe. Mas esperou sempre por ele, esperou cada momento, a vida toda”.
Foi então que a mulher a olhou, como se através dela quisesse espreitar a imagem da outra, reconhecer-lhe os traços, o timbre da voz, qualquer coisa que lhe desvendasse a sombra que sempre tinha estado presente na sua vida.
“_ Sabe, o meu pai morreu era eu muito jovem, teve uma doença terrível e sofreu muito. Nos últimos dias, já aloucado, gritava Virgínia! Acode-me Virgínia… Incrível como ele não a esqueceu. Mas ela nunca soube”.
A sobrinha ficou em silêncio. Num instante, reviu-a com a sua inseparável gola de raposa, lembrou-se de como os brincos de brilhantes baloiçavam junto à pele branca e luminosa, pensou nos seus gestos carinhosos e serenos, na felicidade que transmitia com a sua presença leve e atenta.
Não era verdade,Virgínia sempre soube que António não a tinha esquecido.
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ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarA vida dá realmente muitas voltas e revela muitas surpresas. Há coisas extraordinárias!
Agora que conheço um bocadinho a Tia Avó Virgínia lembro-me da sua vida com muito respeito e muito carinho.
A Tia Avó Virgínia viveu a tristeza dos seus desgostos na alegria de ver crescer as suas "meninas" e o seu sobrinho António, dedicando-lhes a ternura que a outra vida rejeitou. Aqui está a resposta da Tia Avó Virgínia para a vida que viveu. Ganhou uma Família que nunca a esquecerá.
Parabéns Suzana pela bonita homenagem à Virgínia!
Pois foi, Margarida, ela foi uma´avó "adoptiva" tão dedicada que mesmo os da geração "bisneta" que a conheceram ainda se lembram dela com muita ternura. E a Virgínia II já tem 20 anos...
ResponderEliminarUm autor que aprecio muito, Cat Stevens abre o seu album Foreigner, com o tema "Foreigner Suite". Este poema, petence a esse tema:
ResponderEliminarThere are no words, I can use
Because the meaning still leaves for you to choose
And I couldn't stand to let them be abused, by you
...
Dreams I had just last night
Made me scared White with fright
But I'm over to that Sunnyside Road
Over to that Sunnyside Road
Fortunes come and and fortunes go
But things get better babe, that's one thing I know~
And I'm over to that Sunnyside Road
Over to that Sunnyside Road
Dra. Suzana Toscano,muito sinceramente: gostei da sua “Virgínia”.
ResponderEliminarJá li romances (considerados êxitos), cujo modo narrativo era menos apelativo. Daí, reitero o meu comentário aposto em “Vírginia II”, que diz:
-"Agora tem a "obrigação" de continuar e repetir...
Esta história de vida da "sua" Virgínia seria, se o quisesse, o mote bastante para o início de um belo romance que, estou certo, teria muito êxito...
Pense nisso!"
Caros Bartolomeu, lindo poema, também conheço essa música "Fortunes come and fortunes go" é geralmente o balanço de uma longa vida, como a da nossa heroína V.
ResponderEliminarCaro Invisível, ainda bem que gostou desta "novela", foi uma brincadeira para testar a resistência dos fiéis do 4r. Depois, se eu me convencer mesmo, não se aceitam reclamações!