sábado, 28 de junho de 2008

As letras perdidas


Reparei há pouco tempo que já perdi o treino de escrever com caneta e papel. Fico meia atarantada a olhar aquela brancura, impaciento-me com o tempo que é preciso para que as palavras encham as páginas, desespero-me se me engano.
No computador é tudo mais fácil, as teclas já mexem quase sozinhas e o acto de escrever deixou praticamente de exigir atenção. Sem um teclado e um écran, a escrita já é um atraso de vida.
O resultado é que quase já não se encontram manuscritos, cartas onde se alinhe uma letra bem desenhada ou uns gatafunhos que mostram o mau humor de quem os escreveu. A caligrafia espelha a personalidade nas letras redondinhas ou bicudas, pretensiosas ou escorreitas, correndo certinhas em linhas invisíveis ou a trepar oblíquas, a mostrar ambição. Dantes aprendia-se caligrafia para se domar a letra ao mesmo tempo que se disciplinava o espírito.
As vezes que eu e as minhas amigas nos entretivemos a “analisar” a letra das cartas de amor que umas e outras recebiam! Pela letra ou pelo vinco das palavras imaginávamos a intensidade dos sentimentos ou detectávamos hesitações, captava-se a mensagem muito antes de ler as palavras e estas, às vezes, não chegavam para apagar a primeira impressão... A primeira podia dar logo “morte súbita”, troçávamos da letra feia ou torta, desconfiávamos da arrevesada ou indecifrável, outras vezes apaixonávamo-nos logo pelo arabesco, nem era preciso ler as frases, os olhos ficavam a vaguear perdidos no endereço do envelope, "que bela letra, já viste?"
Além disso a letra era a antecipação da presença, chegava a carta e sabia-se logo de quem era, não era preciso ver o remetente para o coração começar a saltar…
Agora comunica-se depressa, um mail a correr, um telefonema, uma mensagem cifrada só com consoantes para caber no minúsculo écran. Já não sabemos como é a letra dos colegas, nem dos amigos, nem mesmo a dos filhos adultos, tão mudada desde que foi registada nos arcaicos cadernos de escola ou nos bilhetinhos ternos a assinalar o dia da mãe.
A padronização da vida moderna apagou o rasto das palavras manuscritas e reduziu ao anonimato cada mensagem, até à assinatura impressa no final do texto. Nem temos a noção do que perdemos!

6 comentários:

  1. Cara Dra. Suzana Toscano:
    Parece que essa perda de jeito está a alastrar.
    De facto, escrever fora do ecrã, parece coisa já do passado.
    Eu não sabia que esses manuscritos, muitas vezes tão singelos, eram interpretados e vistos com tanta acuidade e, no extremo, podiam ditar a “taluda” ou a “morte súbita” do artista!. Bem…há-de haver pessoas de “consciência pesadíssima” pelo elevado número de mortes súbitas que provocaram, involuntariamente, claro…
    Mas permita-me que lhe gabe a simplicidade, a beleza, e até a intimidade deste texto, porquanto, nos revela um espírito jovem e aberto que partilha sem preconceitos com a blogosfera.
    Mas, voltando ao tema, o que mudou foi apenas o suporte da escrita.
    Na realidade, o bilhetinho de ontem, é o e-mail, é o sms, é o Messenger ou o chat de hoje.
    Mas é curiosa a semelhança das coisas. Dizia-me uma amiga ligada a estas novas formas de comunicação que tudo o que se escreve (aqui), analisado letra a letra, palavra a palavra, dá para formular o perfil da pessoa, e até descortinar o que se quer significar nas entrelinhas…
    Confesso que não tenho esta capacidade, a não ser que os bites e os bytes me cheguem a cores muito bonitas, sei lá…talvez num azul céu especial…
    :))))

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  2. Caro Jotac, não é só a letra que denuncia a caracteristicas inconfundiveis de cada pessoa, a escrita tem sempre uma marca muito pessoal, a sua amiga tem toda a razão. Sò é pena que as msg, os chats e tudo isso se apague com um clic,não ficam a amarelecer na gaveta para um dia nos enternecermos com tudo o que foi escrito. As cartas escritas - as que sobreviveram a essa análise crítica que o impressionou - já começam a ser uma antiguidade!:)

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  3. Caro Jotac, não é só a letra que denuncia a caracteristicas inconfundiveis de cada pessoa, a escrita tem sempre uma marca muito pessoal, a sua amiga tem toda a razão. Sò é pena que as msg, os chats e tudo isso se apague com um clic,não ficam a amarelecer na gaveta para um dia nos enternecermos com tudo o que foi escrito. As cartas escritas - as que sobreviveram a essa análise crítica que o impressionou - já começam a ser uma antiguidade!:)

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  4. Não posso deixar de lhe dar toda a razão. Paralelamente ao caso especifico que descreveu, existem muitos outros. Queremos viver *tudo* numa só vida, fazer existir todos os momentos no *momento*.
    Estamos a deixar de saber *saborear*.
    O frenesim da *produtividade* (sentido lato) faz-nos querer concentrar no parco espaço-tempo das nossas vidas a maior quantidade do maior prazer do Homem: a novidade.
    Querer viver agora o sempre, é como querer respirar de uma vez o ar de uma vida.

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  5. Escreve o poeta António Ramos Rosa "Quando já não escrever não poderei dar a minha mão...o mundo já não será o mundo mas a violência...a palavra é o desejo do espaço...para que tudo o que em nós é confuso e vago se transforme em leve arquitectura..." bem, o melhor é sugerir-lhe que leia o livro "As Palavras" desse magnífico poeta.
    Como será o mundo futuro sem manus-critos , tudo escrito em "arial" ou "verdana"?
    Bom Domingo.
    Alberto Lobo

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  6. Suzana
    O progresso quando ganha adesão impõe-se pela evidência das vantagens que introduz. Há sempre coisas que se perdem, mas há outras que se ganham.
    Reconheço que sem um teclado e um ecrã não poderia escrever tanto como escrevo hoje. Não há necessariamente perda de qualidade na escrita. Embora em fonte arial, itálico, sublinhado ou negrito, conseguimos encontrar no texto assim composto um carácter e uma personalidade de escrita. Nesta escrita há como que uma nova "caligrafia" que necessáriamente encerra traços da nossa maneira de ser.
    Ainda assim, sempre que posso, arranco de uma caneta e de uma folha de papel. Sempre que o faço fico satisfeita por constatar que as formas das letrinhas não se têm alterado. O que se tem alterado é a forma como escrevo. Aqui, sim, há uma evolução que tanto é verdade com caneta como com teclado.

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