Um artigo de opinião, publicado hoje, sobre a encíclica “Humanae Vitae”, que vai fazer 40 anos no próximo dia 25 de Julho, despertou-me muitas lembranças e uma certa estupefacção face a certos comentários.
O cronista considera que se trata de um dos “gestos mais corajosos do nosso tempo”, revelando a clarividência de um grande Papa e que “a Igreja não foi a autora dessa lei... mas somente depositária e intérprete, sem nunca poder declarar lícito aquilo que o não é...”.
Subentende-se que o controlo de natalidade através da pílula (e outros meios, menos o dito “natural”) continua a ser considerado como contrário à vontade divina!
É curiosa a comparação que o autor faz entre os casais praticantes que não seguem a encíclica com os “que ao longo dos séculos milhões de católicos disseram mentiras, faltaram à missa ou desviaram fundos”. Ficamos a saber que tomar a pílula é idêntico a mentir, a não praticar e a roubar! Nada mau! Mas não fica por aqui. Afirma que o Papa antecipou e viu as consequências da regulação artificial da natalidade, que estariam abertos os métodos para a infidelidade conjugal, à degradação da moralidade, à perca de respeito pela mulher que acabaria por ser considerada como simples instrumento de prazer! Ficamos a saber que a pílula é responsável pela baixa taxa de natalidade, pela degradação dos costumes e pela falta de respeito com as mulheres. Nada mau! Mas não fica por aqui. Porquê? Porque na sua opinião a pornografia em massa, a promoção do aborto, o divórcio, o deboche, a perversão, o descalabro da educação, a traição, a solidão, a depressão e o suicídio têm a ver com a tal modernidade pós revolução sexual que se estende também à sida e ao insucesso escolar! É de bradar aos céus. Como é possível tamanha catilinária? Antes da “contracepção artificial” o divino céu era na terra! Após a “contracepção artificial” o inferno! Como é que ninguém viu isto até hoje?
Recordo que tinha 17 anos e na esplanada do Café Arcada discutia-se muito sobre a nova encíclica. Ouvia os comentários dos mais velhos. Ouvia e calava, porque naquela altura não nos era autorizado a debater certos assuntos. De qualquer modo, ouvia com muita atenção o que diziam. Segundo eles o Papa fez muito bem, porque com essa coisa da pílula as mulheres passariam a “encornar” os maridos a torto e a direito. Diziam que iam apanhar graves doenças. Que quem tomasse a pílula não podia comungar, que seria excomungada, nem teria funeral cristão, porque era um pecado muito grave e Deus castigaria todas que a tomassem e iam para o inferno. Ouvia e pensava com os meus botões: Ora aqui está a melhor solução do mundo para que as desgraçadas das mulheres não tenham filhos uns atrás dos outros, não terem que fazer desmanchos, alguns dos quais eram fatais, e não serem vítimas das borracheiras orgásticas de maridos, mais que brutos, cuja violência não se esgotava na violação sexual, como ainda lhes cascavam forte e feio.
Nunca consegui habituar-me a ver mulheres com muito filhos na ordem dos seis, sete, oito, nove, dez, doze... Uns atrás dos outros. Todos os anos pariam. A fome e a miséria era tal que ainda hoje recordo ver crianças descalças em pleno Inverno, algumas delas sem calções, com os rabos azuis de frio, com o recto a balancear tipo torcida, sem testículos, porque estes com o frio deviam “subir” para o pobre aconchego da parede abdominal, raquíticos, sujos, olhos esbugalhados de fome, a mendigarem pão. A solidariedade dos pobres levava-os a partilharem o pouco que tinham com os ainda mais pobres, sobretudo crianças. Levei muitas vezes pequenos caixões para o cemitério. Outras vezes já nem perguntava por quem é que o sino tocava! Quantas e quantas vezes a mulher engravidava, queixando-se da sua má sorte, amaldiçoava a besta do homem e tentava, obtendo uns escudos de empréstimo, ir a uma mulher para fazer um desmancho. Nem sempre resultava e às vezes resultava mesmo muito mal.
Enquanto pensava nisto, na futura “libertação” das mulheres, os “machos” dos cafés continuavam a dissertar sobre os perigos da contracepção, profetizando dias horríveis para a Humanidade. Quarenta anos depois, as palavras que hoje li fizeram reviver os velhos “profetas” que, sob a arcada, protegendo-se do sol, teciam conceitos diabólicos sobre o futuro das mulheres.
Viva a pílula! Viva a contracepção! Viva a libertação das mulheres!
Graças a Deus, também dei o meu contributo, ensinando, prescrevendo e esclarecendo...
Quanto aos que não fazem “contracepção artificial”, sendo uma questão de opção individual, não tenho nada a dizer, nem a comentar.
Subentende-se que o controlo de natalidade através da pílula (e outros meios, menos o dito “natural”) continua a ser considerado como contrário à vontade divina!
É curiosa a comparação que o autor faz entre os casais praticantes que não seguem a encíclica com os “que ao longo dos séculos milhões de católicos disseram mentiras, faltaram à missa ou desviaram fundos”. Ficamos a saber que tomar a pílula é idêntico a mentir, a não praticar e a roubar! Nada mau! Mas não fica por aqui. Afirma que o Papa antecipou e viu as consequências da regulação artificial da natalidade, que estariam abertos os métodos para a infidelidade conjugal, à degradação da moralidade, à perca de respeito pela mulher que acabaria por ser considerada como simples instrumento de prazer! Ficamos a saber que a pílula é responsável pela baixa taxa de natalidade, pela degradação dos costumes e pela falta de respeito com as mulheres. Nada mau! Mas não fica por aqui. Porquê? Porque na sua opinião a pornografia em massa, a promoção do aborto, o divórcio, o deboche, a perversão, o descalabro da educação, a traição, a solidão, a depressão e o suicídio têm a ver com a tal modernidade pós revolução sexual que se estende também à sida e ao insucesso escolar! É de bradar aos céus. Como é possível tamanha catilinária? Antes da “contracepção artificial” o divino céu era na terra! Após a “contracepção artificial” o inferno! Como é que ninguém viu isto até hoje?
Recordo que tinha 17 anos e na esplanada do Café Arcada discutia-se muito sobre a nova encíclica. Ouvia os comentários dos mais velhos. Ouvia e calava, porque naquela altura não nos era autorizado a debater certos assuntos. De qualquer modo, ouvia com muita atenção o que diziam. Segundo eles o Papa fez muito bem, porque com essa coisa da pílula as mulheres passariam a “encornar” os maridos a torto e a direito. Diziam que iam apanhar graves doenças. Que quem tomasse a pílula não podia comungar, que seria excomungada, nem teria funeral cristão, porque era um pecado muito grave e Deus castigaria todas que a tomassem e iam para o inferno. Ouvia e pensava com os meus botões: Ora aqui está a melhor solução do mundo para que as desgraçadas das mulheres não tenham filhos uns atrás dos outros, não terem que fazer desmanchos, alguns dos quais eram fatais, e não serem vítimas das borracheiras orgásticas de maridos, mais que brutos, cuja violência não se esgotava na violação sexual, como ainda lhes cascavam forte e feio.
Nunca consegui habituar-me a ver mulheres com muito filhos na ordem dos seis, sete, oito, nove, dez, doze... Uns atrás dos outros. Todos os anos pariam. A fome e a miséria era tal que ainda hoje recordo ver crianças descalças em pleno Inverno, algumas delas sem calções, com os rabos azuis de frio, com o recto a balancear tipo torcida, sem testículos, porque estes com o frio deviam “subir” para o pobre aconchego da parede abdominal, raquíticos, sujos, olhos esbugalhados de fome, a mendigarem pão. A solidariedade dos pobres levava-os a partilharem o pouco que tinham com os ainda mais pobres, sobretudo crianças. Levei muitas vezes pequenos caixões para o cemitério. Outras vezes já nem perguntava por quem é que o sino tocava! Quantas e quantas vezes a mulher engravidava, queixando-se da sua má sorte, amaldiçoava a besta do homem e tentava, obtendo uns escudos de empréstimo, ir a uma mulher para fazer um desmancho. Nem sempre resultava e às vezes resultava mesmo muito mal.
Enquanto pensava nisto, na futura “libertação” das mulheres, os “machos” dos cafés continuavam a dissertar sobre os perigos da contracepção, profetizando dias horríveis para a Humanidade. Quarenta anos depois, as palavras que hoje li fizeram reviver os velhos “profetas” que, sob a arcada, protegendo-se do sol, teciam conceitos diabólicos sobre o futuro das mulheres.
Viva a pílula! Viva a contracepção! Viva a libertação das mulheres!
Graças a Deus, também dei o meu contributo, ensinando, prescrevendo e esclarecendo...
Quanto aos que não fazem “contracepção artificial”, sendo uma questão de opção individual, não tenho nada a dizer, nem a comentar.
Se tomarmos em conta o comportamento sexual pelo qual o clero católico começa a ser conhecido, compreende-se que não veja grande utilidade na contracepção.
ResponderEliminarA "Leste"(Vaticano), nada de novo!
ResponderEliminarVão chegar lá, nem que leve mais 500 anos...como com Galileu, a inquisição ou Copérnico - só para citar alguns!
No decorrer do curso de medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Adolfo Correia Rocha, antes ainda de adoptar o pseudónimo de Miguel Torga, escreveu:
ResponderEliminar"A caneta que escreve e a que prescreve revezam-se harmoniosamente na mesma mão"
Lembro-me que em criança me foi oferecido um caleidoscópio. Lembro-me ainda, de passar tempos infindos a agitar o tubo mágico de cartão e a observar extasiado as luminosas e coloridas figuras geométricas que se formavam, sempre com uma configuração diferente, mas, sempre confiandas ao mesmo espaço e sujeitas à mesma ordem e ao mesmo procedimento.
É verdade caríssimo professor, cada um de nós tem por "defeito" o habito de observar, analisar e concluir acerca da vida, da sociedade das suas condições e condicionantes, olhando sempre através do minúsculo orifício do caleidoscópio.
Mas... tal como Torga escreveu... a mão, é sempre a mesma, deem-se as voltas que se derem.
Um grande abraço caríssimo professor.
Caro Massana Cardoso,
ResponderEliminarFazendo de advogado do diabo, que não sou nenhum doutor da igreja, mas por mero prazer intelectual.
Há que esclarecer que a igreja defende uma sexualidade responsável. Defende que o sexo tem como objectivo a procriação, que é a realização humana de um mistério divino.
(O sexo não serve para sermos mais saudáveis, a salvação eterna não é o mesmo que saúde.)
Logo todo o acessório (e.g. pílula) serve apenas para desviar a atenção dos intervenientes do essencial (o mistério) para o acessório (o prazer).
Tratando-se de um ideal é natural que o pagode o não atinja. Esse facto não deve levar aqueles que acreditam no ideal a deixarem de o fazer e defender. Os tempos são de pragmatismo, e de alguma ética utilitarista, mas não nos esquecemos que o catolicismo é deontológico e por isso é natural que não faça concessões.
Os temas de saúde pública e miséria humana não ligam com o que é defendido, simplesmente porque não se enquadram no ideal defendido. Ninguém que siga o ideal será um miserável como acima descreveu.
Nos tempos que correm esse ideal servirá um número cada vez mais reduzido de fiéis. Mas não sendo ninguém obrigado a segui-lo não se percebe a razão da crítica.
Votos ateus de uma santa terça-feira,
Paulo