Como por aí vai grassando a ideia de que não vem mal ao mundo em entusiasmar a bufaria anónima, transcrevo um texto que bem gostaria de ter escrito. Com a devida vénia ao seu autor:
«A Inquisição foi extinta a 31 de Março de 1821, há quase duzentos anos. Mas deixou trabalho para outros duzentos. Durante a sua existência, o país dividiu-se em acusados, acusadores e denunciantes, a maior parte deles anónimos. Se há categoria de gente reles é essa – a que vive feliz com a pequena denúncia, o rumor, a suspeita permanente, a ‘teoria da conspiração’, a insídia moral, o riso escarninho.Junto com essa categoria há a outra, a dos que se ajoelham e se especializaram em justificações para agradar aos poderes – aos grandes e aos pequenos, aos gerais e aos particulares. Passados estes anos, a Inquisição ainda resiste. Só faltam as fogueiras. O povo gosta de ver. Os juízes, o melhor que têm a fazer, é exigir que se legalize a denúncia anónima. Aliás, já o fizeram» - Francisco José Viegas, Correio da Manhã, 30.03.09.
Não é muito importante, mas se calhar quer dizer "grassando".
ResponderEliminarPS - Isto dito, concordo inteiramente com o texto...
ResponderEliminarNenhuma ditadura se aguentava durante 40 anos num estilo tão exteriormente "soft", sem um povo bufo, caro Ferreira de Almeida. Está-nos nos genes.
ResponderEliminarEm tempos li declarações de um ex-agente da PIDE em que este dizia que se fossem prender toda a gente que era denunciada anonimamente (ou não) por tudo e por nada, metade do país ia parar à prisão.
Isto é dito por um "especialista", não há volta a dar.
O Francisco José Viegas escreveu um bom texto.
MC
Como penso que este post é também uma resposta à minha pergunta sobre qual é o problema de aceitar uma denúncia anónima (ou de dizer para a fazer a quem quer prestar uma informação mas não quer correr riscos) talvez valha a pena realçar a falta de rigor histórico que aqui vai.
ResponderEliminarUma coisa é condenar com base em denúncias anónimas e sem respeito pelos direitos dos visados à sua defesa. Isso foi o que a Inquisição (e muitos outros poderes, antes e depois) fez.
Outra coisa é o trabalho das polícias: investigar denúncias anónimas, mesmo as mais soezes, respeitando todas as regras estabelecidas.
A classificação moral da bufaria que aqui é feita coincide com a minha. Mas tanto quanto percebo o que está em causa não é classificação moral de quem faz a denúncia mas sim a de quem a aceita por dever de ofício.
O que as polícias têm a obrigação de fazer é analisar os factos, não é discutir a proveniência das denúncias.
henrique pereira dos santos
Irra! Não há modo de me livrar destes embaraçosos erros. Obrigado Luis Serpa.
ResponderEliminarDe nada, caro Ferreira de Almeida.
ResponderEliminarUma das coisas às quais nunca me habituei na Suiça - ou melhor, habituei-me, mas não aceitei - é que naquele país a delação é vista como uma obrigação social.
Por vezes penso nisso, quando vejo carros mal estacionados em tudo quanto é canto - na Suíça, ao fim de cinco minutos a polícia estaria lá, chamada por uma pessoa qualquer.
E devo confessar que a cada dia que passa a resposta à minha interrogação é menos límpida, menos clara, menos firme.
Meu caro Luis Serpa:
ResponderEliminarEspero não errar agora ao dizer que a denúncia, entre nós, só é obrigatória para quem exerce poderes de polícia e para os funcionários quanto aos factos de que tomem conhecimento por causa do exercício de funções. A denúncia para os restantes sujeitos é facultativa. O que não significa que não corresponda a um dever de cidadania dar notícia de um crime. Por isso não espanta que nos países mais evoluidos a notícia das infracções chegue às autoridades pela informação dos cidadãos cumpridores. A evolução civilizacional depende, em boa parte, desta consciência colectiva que censura quem não conforma os seus comportamentos com as regras essenciais de convivência social.
Mas essa, meu caro, é a denúncia saudável, com cara e com nome. Só excepcionalmente (por legitimas razões de auto-defesa do denunciante) é que se tolera o anonimato.
Outra coisa é a denúncia anónima porque cobarde. E pior do que ela é o estímulo à cobardia, seja quem for que estimule. Na sombra do anonimato esconde-se quase sempre a mais torpe das insídias. O anonimato é, por norma, a forma mais eficaz de caluniar, quando não de aniquilar o carácter do denunciado que vê a sua capacidade de se defender extraordinariamente diminuida por não saber a fonte da atoarda. E mesmo que a atoarda não conduza à condenação do inocente, tem sempre, para além do incómodo e tantas vezes do vexame, uma consequência terrível: fica a pairar no mundo da suspeita eterna, esse mundo que alimenta os burburinhos, os disse-que-disse, os pequenos escândalos que renascem sempre que é conveniente que renasçam!
Numa sociedade, como a portuguesa, em que a responsabilidade individual não campeia e a propensão para a bufaria é endémica, a meus olhos é ainda mais criminoso alimentá-la.
Meu caro Henrique Pereira dos Santos, este post é uma reacção a várias manifestações que ouvi no sentido de não se ver nada de mal na denúncia-anónima-a-pedido-de-quem-tem-o-dever-de-investigar. O texto de FJV que reproduzi, contém o que sinto sobre isso.Compreendo porém o seu último comentário. Mas deixe-me acrescentar que só vivendo perto da insídia é que se percebe o que ela pode representar na vida de um homem ou de uma mulher de bem.
ResponderEliminarTem razão quanto ao anonimato. É um distinguo importante. Na realidade já me aconteceu deixar cartões de visita nos automóveis a reclamar, mas sou totalmente incapaz de fazer as coisas sob anonimato.
ResponderEliminarAcho que devia haver um meio termo, entre a pressão social levada aos extremos da Alemanha e da Suíça, e a total falta de respeito pelo outro da nossa sociedade. Não me parece é que seja possível, infelizmente - e em espaços como numa cidade a vida é mais agradável para todos quando o outro existe.
Percebo que diz sobre a insídia.
ResponderEliminarMas a insídia tem o peso que tem em Portugal porque a justiça dá espaço para que se mantenha a dúvida demasiado tempo.
Uma justiça rápida e compreendida pelas pessoas reduz em muito a capacidade de alguém ser insidioso.
Há bastante tempo que acho que mais que a educação, que o politicamente correcto refere como a base de uma melhoria social em Portugal, é a justiça que deveria ser a prioridade das prioridades em Portugal.
E justiça não é sinónimo de tribunais. Começa na polícia e na confiança que se deposita nela.
henrique pereira dos santos
Li há anos um livro chamado "A Inquisição em Évora", não me lembro do autor mas creio que era uma tese de mestrado transformado em livro, e que era interessantissimo. Cito de cor, mas aí explicava-se, com abundante ilustração de factos, como séculos de Inquisição, activa ou apenas ameaçadora, conseguiu destruir o espírito criativo, o gosto pela aventura e pela descoberta, o respeito pelo pensamento livre e crítico,habituando um povo inteiro a usar subterfúgios para não abdicar dos seus hábitos e convicções, a fingir-se atento e obrigado, a pretender venerar o poder, ao mesmo tempo que o teme e detesta, seja ele qual for apenas porque tem sempre, no imaginário colectivo, uma ameaça implícita. A denúncia terá, a meu ver, relação com esta memória persistente, ao denunciar "prova-se" também a fidelidade, deixa-se que o poder acredite que o denunciante é um leal servidor e assim desvia-se a atenção para o vizinho e fica-se sossegado. Os portugueses são um povo pacífico e amistoso, somos cordiais e generosos, não somos malvados nem cruéis. É, a meu ver, uma espécie de sentido de conservação, de defesa contra um perigo difuso que se tornou firme como uma rocha na nossa memória, que nos comprazemos na devassa dos pecados e pecadilhos alheios, assim como quem diz que enquanto se entretêm com os outros deixam-nos em paz. Será um problema de fraqueza, de falta de coragem colectiva, não de carácter.
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