Há cerca de três anos tive o grato prazer de apresentar um livro de um colega sobre “Bioética, reflexões a propósito”. Uma pequena obra seleta e profunda para quem anda nas andanças da saúde. A capa era bela, representando a chegada de Ulisses ao palácio de Alcínoo. Fui obrigado a especular sobre o porquê da sua escolha, qual o simbolismo que o autor pretenderia transmitir debaixo daquela representação.
No canto VII, Homero descreve a entrada de Odisseu no palácio. Atena, disfarçada de garota, informa-o onde procurar ajuda para regressar à sua Pátria.
No fundo, ao selecionar a figura de Odisseu ou Ulisses, o autor pretendeu, com toda a certeza, dizer que o ser humano está em contínua transformação e que há forças misteriosas que podem ajudar a vencer as barreiras e os perigos, mesmo aqueles que consideramos intransponíveis e que a “nossa aparência, a maneira como nos veem ou nos vemos a nós próprios, é subjetiva, transforma-nos conforme o olhar que sobre nós incide” (Frederico Lourenço). Fiquei seduzido pela beleza da capa e pelo miolo da obra.
De vez em quando, surgem a boiar no meu córtex lembranças dos meus comentários e análises. Os gatilhos são, habitualmente, palavras, imagens, cheiros, calor, frio, vento, e muitos mais. Agora, ao passear entre livros, chamou-me a atenção a capa de um romance, A Síndrome de Ulisses, de Santiago Gamboa, que despertou da letargia a minha apresentação de há três anos. Por hábito, tenho o estranho condão de me deixar apaixonar à primeira olhadela. Fisguei-o sem o folhear, sem ler algumas linhas. A capa era sedutora. Uma estátua de mármore de uma mulher sentada, costas nuas e róseas a olhar para a Torre Eiffel. Um romance sobre as atribulações dos emigrantes, que, longe das suas terras e famílias, sofrem no corpo e na alma as amarguras do exílio. Tal como Ulisses, desejam chegar aos seus destinos, às suas origens. Mas penam. Muitos penam e até morrem. Os psiquiatras e antropólogos chamam-lhe a Síndrome de Ulisses. Mas, em medicina, também pode ter um outro significado. Refere-se às “viagens” que um desgraçado tem que dar até acabar por ser declarado “oficialmente” como saudável, e que, afinal, nunca tinha sido doente! Começa a ser inquietante a fabricação, a rotulagem e a suspeita de doenças em pessoas que são perfeitamente saudáveis. Os casos de falsos positivos, o excesso de preocupação por parte dos pais, avós, amigos e familiares, aliados à medicina defensiva, alimentam a procura de cuidados e exames cada vez mais sofisticados para situações ditas normais. Alguns casos são caricatos, embora, noutras ocasiões, as consequências das “viagens homéricas” sejam bastante gravosas. O suspeito entra numa jigajoga estonteante, numa jornada cujo fim não sabe qual vai ser. Um verdadeiro Ulisses, ansioso por conhecer o caminho até casa, até à segurança dos seus, até à desejada tranquilidade. Palpita-me que andam por aí muitos a sofrer desta síndroma. É notória a ausência de Atena, que poderia ajudar a encurtar a viajem e até mesmo impedi-la. Mas esta coisa dos deuses já não é o que era. É preciso muita força e muita coragem, próprias de um Odisseu, para transpor as barreiras e os perigos que alguns se entretêm a construir para dificultar a vida aos seus semelhantes. O que é certo é que deste modo vão ganhando a vidazinha...
No canto VII, Homero descreve a entrada de Odisseu no palácio. Atena, disfarçada de garota, informa-o onde procurar ajuda para regressar à sua Pátria.
No fundo, ao selecionar a figura de Odisseu ou Ulisses, o autor pretendeu, com toda a certeza, dizer que o ser humano está em contínua transformação e que há forças misteriosas que podem ajudar a vencer as barreiras e os perigos, mesmo aqueles que consideramos intransponíveis e que a “nossa aparência, a maneira como nos veem ou nos vemos a nós próprios, é subjetiva, transforma-nos conforme o olhar que sobre nós incide” (Frederico Lourenço). Fiquei seduzido pela beleza da capa e pelo miolo da obra.
De vez em quando, surgem a boiar no meu córtex lembranças dos meus comentários e análises. Os gatilhos são, habitualmente, palavras, imagens, cheiros, calor, frio, vento, e muitos mais. Agora, ao passear entre livros, chamou-me a atenção a capa de um romance, A Síndrome de Ulisses, de Santiago Gamboa, que despertou da letargia a minha apresentação de há três anos. Por hábito, tenho o estranho condão de me deixar apaixonar à primeira olhadela. Fisguei-o sem o folhear, sem ler algumas linhas. A capa era sedutora. Uma estátua de mármore de uma mulher sentada, costas nuas e róseas a olhar para a Torre Eiffel. Um romance sobre as atribulações dos emigrantes, que, longe das suas terras e famílias, sofrem no corpo e na alma as amarguras do exílio. Tal como Ulisses, desejam chegar aos seus destinos, às suas origens. Mas penam. Muitos penam e até morrem. Os psiquiatras e antropólogos chamam-lhe a Síndrome de Ulisses. Mas, em medicina, também pode ter um outro significado. Refere-se às “viagens” que um desgraçado tem que dar até acabar por ser declarado “oficialmente” como saudável, e que, afinal, nunca tinha sido doente! Começa a ser inquietante a fabricação, a rotulagem e a suspeita de doenças em pessoas que são perfeitamente saudáveis. Os casos de falsos positivos, o excesso de preocupação por parte dos pais, avós, amigos e familiares, aliados à medicina defensiva, alimentam a procura de cuidados e exames cada vez mais sofisticados para situações ditas normais. Alguns casos são caricatos, embora, noutras ocasiões, as consequências das “viagens homéricas” sejam bastante gravosas. O suspeito entra numa jigajoga estonteante, numa jornada cujo fim não sabe qual vai ser. Um verdadeiro Ulisses, ansioso por conhecer o caminho até casa, até à segurança dos seus, até à desejada tranquilidade. Palpita-me que andam por aí muitos a sofrer desta síndroma. É notória a ausência de Atena, que poderia ajudar a encurtar a viajem e até mesmo impedi-la. Mas esta coisa dos deuses já não é o que era. É preciso muita força e muita coragem, próprias de um Odisseu, para transpor as barreiras e os perigos que alguns se entretêm a construir para dificultar a vida aos seus semelhantes. O que é certo é que deste modo vão ganhando a vidazinha...
Esse é de facto um dos síndromes que ataca cada vez mais os "saudáveis sob suspeita" que tende a ser uma categoria universal. Gordos, magros, ascéticos ou viciados, ricos ou pobres, por herança ou por aquisição todos são capturados pelas ameaças constantes que pesam sobre a preciosa saúde. Resta-nos confiar no bom senso, sabedoria e, muitas vezes, simples humanidade dos médicos que ponderam a penosidade dos exames e das dúvidas sobre os doentes, deixando-os gozer a precária boa saúde que tenham.
ResponderEliminarÉ verdade, caro Professor Massano Cardoso... os deuses, não perderam ainda o caprichoso "defeito" de brincar com os humanos... devem considerar-se seres especias, concerteza...
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