sábado, 10 de abril de 2010

Palavras cruzadas

Dois indivíduos de meia-idade, com aspeto de reformados prematuros, competiam silenciosamente, fazendo palavras cruzadas, à mesa de um café. Descobrir palavras para preencher os vazios dos pequeninos quadrados é uma forma de esconjurar a morte que também faz palavras cruzadas com os humanos, só que é muito mais eficaz e rápida do que estes. Na mesa ao lado, um casal de meia-idade um pouco mais avançada, mas não muito, entretinham-se, cada um à sua maneira, a matar o tempo, ele, com umas pálpebras que pareciam mais uns para-sóis amarelados pelo tempo, daqueles que se colocam nas varandas no estio, lia com os lábios as notícias, esforçando-se para que as cortinas não corressem totalmente, enquanto ela, de negro, feia, inexpressiva e gorda, fixava o olhar num vazio indiferente, bocejando e sem germinar uma ideia ou pensamento. Outro, um pouco mais novo, mas, decerto, com pensão também garantida para os próximos trinta a quarenta anos, lia, ou fingia que lia, um livro, com tédio de morte, uma forma de não chatear muito essa grande cabra que se entretém a fornicar os outros quando lhe apetece. À minha frente uma senhora jovem, com dois desengonçados sacos das compras, conversava com uma outra, enquanto mastigavam pasteis e bebericavam o café. Falavam, de quê?, não me interessou, mas não lhes passava pela cabeça, pelo menos naquele momento, nem pelo estômago que ela, a morte, anda por aí meia doida sem freio nos dentes. Mas anda. Logo pela manhã, ainda entorpecido pelo novo dia, a notícia de uma morte súbita numa rotunda ao volante do automóvel chamou-me a atenção. Deve ter-se sentido mal, parou o carro e parou de existir. Sorte. A gaja faz o que quer e como quer. Brinca e goza com o pessoal. Para alguns, não sei por que razão, começa a avisá-los com anos e anos de antecedência, atormentando-os, avisando-os constantemente de um fim, permanentemente adiado, como se tirasse prazer dessa terrível angústia que sabe como ninguém semear. Para outros é mais tolerante, mas mesmo assim cínica, avisando de que está para breve, indo momentaneamente para férias, num ataque de capricho, mas regressando sempre para a grande final, e à maneira. Perfeita exibicionista. Para alguns, não sei se por desprezo ou por amor, nem lhes dá tempo para saberem da sua existência. Uma perfeita cabra que tem a melhor memória que alguma vez existiu. Até hoje não se esqueceu de ninguém, nem daquele que, dizem, ressuscitou.
Afinal a vida não é mais do que um conjunto de pequeninos quadrados que a morte utiliza para fazer as suas palavras cruzadas na entediante eternidade. Por cada palavra que completa, enquanto coça a cabeça, chupa um cigarro na esplanada, bebe um café, ou olha para o mar no seu estúpido e sem sentido volteio, apaga, aos bochechos, prolongando no tempo a sua fria presença, um ser humano, e, quando já sabe a palavra certa, é tão rápida a escrevê-la como o indivíduo a apagar-se, nem consegue aperceber-se da sua presença.
Cabra manhosa para uns e meiga por esquecimento para uns poucos.

3 comentários:

  1. Está a esquecer-se, caríssimo Amigo, de mencionar uns gnomos laboriosos, soldados resistentíssimos, que lutam incansávelmente, aplicam estratégias, desenvolvem métudos, erguem armadilhas e lançam ataques cada dia mais fortes e eficazes, capazes de não deixar que a cabra ganhe terreno a seu bel-prazer.
    Chamam-lhes médicos...
    Não fossem esses gnomos, e o macacal já tinha mudado todo de dimensão.
    Pior para a cabra... que não tinha com que se alimentar...
    Estou cá a pensar... (hmmm... isto quando o Bartolomeu se põe a pensar, sai asneira pela certa)
    E se o pessoal se fingisse todo de morto, assim de um momento para o outro?
    Como nos campos de futebol, quando se orquestra um minuto de silêncio em memória de alguem...
    Íamos pregar uma bela partida à cabra, não acha caro Professor Massano Cardoso?
    ;)))

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  2. Caro Massana Cardoso,

    Mais do que viver revoltado com a morte, há que perceber que a nossa morte é o imperativo categórico da nossa vida.

    Cumprimentos,
    Paulo

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  3. Sim, todos nos sentimos derrotados quando a morte leva a melhor nas suas incursões pelo "nosso" território apesar dos esforços dos guardas pretorianos que são os médicos a quem pedimos socorro. Mas é assim mesmo, e essa certeza deve-nos dar um gosto especial pela vida, enquanto a temos e podemos gozar tudo o que nos proporciona. Uma vez o meu pai esteve muito doente, tão doente que perdemos a esperança de o ver vivo no dia seguinte, Mas ele salvou-se e ainda viveu mais uns (sempre poucos) anos e lembro-me de um comentário da minha irmã quando o trouxémos para casa e lamentávamos o seu estado de fraqueza: "Nada de lamentos. Ele está vivo e o tempo que viver podemos encará-lo como um bónus". Um bónus precioso que nos ensinou a apreciar cada minuto dos anos que ainda durou.Como me ensinou aqui, na altura em que ele morreu, o meu amigo Massano, celebremos a vida!

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