sábado, 22 de janeiro de 2011

A nova barbárie

"O desparecimento do privado, que nada respeite a intimidade alheia e que esta se tenha convertido num espectáculo que excita o interesse geral e que haja uma indústria informativa que alimente sem tréguas nem limites esse voyeurismo universal é uma manifestação de barbárie". Mario Vargas Llosa, in El País de 16 de Janeiro

Há dias liguei a televisão e lá estava aquele homem-sem-cor-e-sem-idade cujo nome se dilui em sons fechados ou nasalados mas que se tornou um ícone da modernidade tecnológica e da novissima liberdade de informação ao divulgar documentos secretos aos milhares, que obteve por métodos que dantes se chamavam roubar mas que hoje são geniais. Lá estava ele, na sua figura sempre esquiva e olhar branco, cabelos de velho e cara sem vincos, boca sumida, sem traço ou expressão, ombros descaídos, uma figura estranha e intimidatória, a lembrar aqueles fantasmas dos filmes que aparecem por todo o lado mas que se imaterializam quando os querem agarrar. Ao seu lado um homenzinho rotundo, visivelmente excitado com o momento mediático, a entregar-lhe com ar triunfante um cd com os registos de contas bancárias, na Suiça e off shores, dizem eles, é sempre preciso começar por qualquer coisa que pareça justiceiro, logo a seguir virão todas as outras, nunca perceberei por que estranha ingenuidade se aplaude um bandido a contar que ele se contenha a actuar no terreno que nos convém, diz a experiência que essas fronteiras só existem na cabeça dos tolos, na dos que se servem deles não haverá fronteira nenhuma.
Não deixa também de me deixar perplexa a chocante contradição de tantos opiniadores mediáticos, que esfregam as mãos perante a promessa de tanto “material” que alimentará essa fonte de tão largo filtro, a fonte da liberdade informativa. Pasmo que muitos deles se tenham indignado, (eu pensava que bem), ainda há bem pouco tempo, com a divulgação de alguns kilómetros de gravações de conversas privadas, pasmo que tantos deles tenham mesmo gritado contra quem se serviu delas para acusar este e aquele, para fazer juízos e tirar conclusões. Pois agora esses mesmos, ou outros parecidos, entendem que há toda a legitimidade em divulgar tudo isso, em fazer juízos e pedir explicações, ai se fossem escutas já era outra coisa!, pois claro, mas se forem documentos privados ou secretos entre as diplomacias ocidentais já é bem diferente, não há vozes, só há transmissões e registos cibernéticos. A distinção estará, pois, não no que deve ser preservado pela sua natureza, mas na via pela qual se transmitem, registam e se obtêm. E nas vantagens imediatas de quem se aproveita, há que reconhecer. Estranhos critérios, os deste império do relativismo.
Sobre este tema sugiro que leiam o notável artigo de Mario Vargas Llosa, no El País, onde explica com clareza porque é que “a libertinagem informativa não tem nada que ver com a liberdade de expressão”. Provavelmente será tarde demais para que ressurja a consciência da liberdade e se imponha inexoravelmente o império da libertinagem, mas é sempre um consolo saber que há quem resista...

6 comentários:

  1. Notável texto, cara Suzana.
    Em matéria informativa, está a valer tudo, um fartar vilanagem. Em nome de um indefenido critério apenas geneticamente concedido aos jornalistas, tudo se torna possível: esquadrinhar a vida privada, espiar, roubar, intimidar. Julgando cde imediato, substituem-se aos tribunais. Havendo veredicto judicial contrário, difama-se a sentença e o juíz. Em muitos casos, só não são inquisição, porque não há fogueira, ou só não são PIDES, porque não há Salazar.

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  2. Suzana
    O artigo que recomenda é uma excelente análise do espectáculo "mórbido" da libertinagem informativa. Mas, também, uma ameaça para a liberdade de expressão, a grande conquista das democracias e do mundo globalizado, que encontra nas tecnologias da comunicação um campo fértil para o seu aprofundamento.
    De facto, a libertinagem informativa nada tem que ver com o valor inalienável da liberdade de expressão que encontra limites na segurança e defesa que o exercício da própria liberdade impõe.
    É preocupante que este desrespeito seja tolerado, talvez porque a barreira que separa a liberdade da libertinagem seja cada vez mais ténue.

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  3. Se calhar, foi por falta de mais libertinagem desta que não houve acção preventiva contra os crimes de guerra de Bush/Blair/Barroso/Aznar.
    oscar maximo

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  4. Excelente texto, sobre um assunto que faz parte dos conceitos definidores da nossa época. A barbárie vem com a cultura de massas nivelada pelo mais baixo, a coscuvilhice em vez de informação, a leviandade em vez da substância, os “15 minutos de fama” gratuita em vez do mérito. Tudo isto potenciado pela tecnologia da comunicação instantânea e fugaz. A traição das sociedades liberais pela desgenerescência dos seus próprios filhos, espúrios e confusos, que não se apercebem que vendem o seu futuro às crescentes ditaduras mafiosas. Pinho Cardão não podia estar mais correcto quando menciona o “fartar vilanagem”, uma vilanagem cobarde que estaria na prisão ou morta se vivesse na Rússia, na China, no Irão, ou na maior parte do mundo fora das verdadeiras democracias.
    Fico à espera de mais textos desta qualidade, if you please...

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  5. Anónimo21:39

    Excelente o artigo de Vargas Llosa. Clarividente, apesar de contrário ao politicamente correcto que faz com que à esquerda e á direita se pense que a publicização do privado é essencial à democracia.
    Excelente a sintese e as considerações que a Suzana, muito a propósito, aqui trouxe.

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