sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Que mundo tão estranho!

Há histórias que não sendo originais acabam sempre por nos fazer refletir sobre a condição e a pretensa superioridade dos seres humanos que, segundo alguns, foi definida por interesses divinos, o que é de desconfiar.
Descanso na esplanada, junto à ribeira, que chora de tristeza pela forma como a têm tratado ultimamente. Nota-se que perdeu a alegria, já não consegue elevar-se com o seu habitual cheiro de água fresca. Está envergonhada, e eu também. Conseguimos partilhar o mesmo sentimento, vergonha.
A minha mulher senta-se a meu lado, depois de ter ido assinar um documento qualquer. Conta-me que encontrou uma pessoa conhecida. - Está velho. - Sim? - É verdade. - Disse-me que estava no advogado para tratar uns assuntos nada agradáveis por causa dos irmãos. - Mas vocês, os setes, eram tão amigos, tão juntos. - Pois éramos. Continuei no meu silêncio de espanto para a estimular a contar mais pormenores. - A mãe morreu-lhe e antes de morrer foi um corrupio, doente, esteve em sua casa e depois teve que a colocar num lar. Continuei com o meu silêncio. - Sabes? Contou-me que nenhum dos irmãos foi ver a mãe, nem quando esteve na casa dele, nem ao lar e nem foram ao funeral. - Às tantas vivem no estrangeiro. Avancei. - Não! Vivem todos no país. - E não foram ao funeral da mãe? Que estranho. Ripostei. Não me foi particularmente difícil de analisar tão estranho comportamento o qual contrastava de forma perfeita com mais um relato emocionante. Tinha acabado de ler que um cidadão espanhol, aos dez anos, se viu envolvido no meio da maior manifestação da perversidade humana, a guerra sem tréguas e sem honra, se é que há ou tivesse havido alguma digna desse epíteto. Conheceu o sabor amargo das sevícias praticadas contra a sua mãe e irmãos e viu desaparecer alguns que foram fuzilados sem piedade apenas por terem ideias diferentes, como se os homens fossem obrigados a pautar pelo mesmo credo ou ideologia. Quando pensar de forma diferente é "crime", os homens acabam, muitas vezes, por se entreterem a exterminar-se uns aos outros. Nestas ocasiões, os cães têm mais sorte e são mais respeitados. Passados tantos anos sobre a guerra civil, e depois de uma vida atribulada, conseguiu finalmente recuperar os restos mortais de um dos irmãos. Falta-lhe ainda resgatar ao anonimato ofensivo da humanidade um outro. Ao fim de mais de setenta anos de separação, deu a devida sepultura ao irmão junto do pai, também fuzilado. No ato levou consigo uma velha caixa de engraxar sapatos, que conseguiu obter um dia, após a guerra, e que o irmão utilizava aos domingos. Presumo que deveria ser o único bem herdado. Este homem, de oitenta e oito anos, está feliz, ou qualquer coisa que isso possa significar. Agora anda à procura do outro, perdido numa vala dos desafortunados da vida e da morte. Não desiste. Ainda bem que há quem não consiga deixar os seus mortos em valas desconhecidas e desprezadas, homens e mulheres violados em nome da maior perversidade humana, matar em nome de credos ou ideologias. Em contrapartida, há quem consiga esquecê-los em vida e humilhados aquando da morte.
Que mundo tão estranho!

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Caro Professor Massano Cardoso,

    Lamento que as águas pouco pressurosas da sua ribeira lhe estejam a causar tanto desconforto, esperemos que rapidamente os serviços competentes cumpram com a sua obrigação!...

    Permita-me dizer-lhe que acho excelente a forma como enquadrou a história deste "desafortunado" no seu remanso junto à ribeira...

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