sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Cortar ou reformar?

Ninguém sabe quais vão ser as opções do governo em matéria de cortes na despesa social. Em textos que anteriormente aqui escrevi sobre a questão da “refundação” do Estado Social coloquei grande ênfase na necessidade de se fazer um debate prévio sobre o Estado que queremos ter, a sua dimensão, em que sectores deve estar e como deve exercer as suas funções. Falta uma estratégia de organização e funcionamento do Estado. Mas este debate não é um debate totalmente livre no sentido de que estamos a construir de raiz algo de novo, muito pelo contrário não podemos ignorar quem somos, a nossa história e a nossa cultura, o estado de desenvolvimento em que nos encontramos, os problemas estruturais que temos tido manifesta dificuldade em ultrapassar. Mas é necessário fazê-lo, o Estado Social não é independente do Estado que podemos e queremos ter, tendo em conta a realidade presente e o futuro que queremos para a nossa sociedade.
Tudo indica que esse debate prévio não vai ser feito, o que é, a meu ver, uma oportunidade de ouro perdida para nos encontrarmos a nós próprios como país. Mas é também um obstáculo à manutenção do consenso institucional e coesão social. Arrumar as contas públicas e baixar os défices públicos é uma necessidade em que o país em geral se revê e aceita, mas não é suficiente para dar a volta. O desenvolvimento económico sendo o grande desafio não é independente do grau de mobilização das pessoas e dos agentes económicos para a necessidade e benefícios das reformas estruturais.
Mas se não vamos ter esse debate, então que tenhamos um debate sobre o que queremos e podemos ter nos sectores que vão ser atingidas pelo corte dos 4 mil milhões de euros. Analisemos e discutamos que modelo queremos ter para a saúde, como queremos que funcione e como deve ser financiado, que papel está reservado ao Estado, ao sector privado e ao sector social e que modelo queremos ter para a segurança social – pensões e prestações sociais – qual o papel do Estado, que partilha de responsabilidades e riscos entre o Estado, a economia e os cidadãos, que modelos de financiamento são mais adequados e exequíveis. As mesmas questões se colocam em relação à educação. Esta discussão não está feita, também não sabemos o que pensam neste momento os nossos responsáveis políticos.
O polémico relatório do FMI apresenta um “cardápio de cortes” mas não apresenta modelos de reforma para os sectores em questão, assim como não avalia os impactos em termos económicos e sociais dos cortes propostos. Quantificar não é a mesma coisa que avaliar. Não vale a pena procurarmos uma explicação para a ausência desta componente, mas não haverá decisão política estruturante sem o fazer.
As reformas - que esperamos que sejam apresentadas para que se percebam as alternativas que se colocam e o seu impacto no futuro, isto é, que país vamos “desconstruir” ou “reconstruir” – colocam normalmente dilemas de trade off entre o curto prazo e médio/longo prazos, quer em termos de custos quer em termos de benefícios. Os cortes calculados em função do preço e quantidade têm efeitos instantâneos, normalmente guiados por necessidades de tesouraria, e podem não ser sustentáveis, isto é, podem não perdurar no tempo se não mais mudar. As reformas têm uma lógica diferente, as mudanças que se pretendem fazer levam tempo a implementar, os efeitos esperados não são automáticos, o gradualismo é uma característica que normalmente lhes está associada. Por exemplo, uma reforma da segurança social, designadamente no sistema de pensões, poderá ter impactos no curto prazo, mas os seus efeitos são geracionais. O plano dos cortes constantes do relatório do FMI – falo destes porque não se conhecem outros – não se confunde com o plano das reformas, isso mesmo se retira de uma leitura atenta do relatório. São planos distintos. Podemos continuar, por exemplo, a cortar nas pensões, como tem vindo a acontecer nas últimas décadas, mas o problema da não sustentabilidade do sistema de pensões não está resolvido se não olharmos para os fundamentos que estão na base do difícil equilíbrio das suas contas financeiras. É perigoso deixar tudo como está, não temos demografia nem economia e finanças capazes de sustentar o sistema e já sabemos que o Estado é o primeiro a não honrar os seus compromissos, quebrando o contrato de confiança. Mas quanto aos cortes nas pensões propostos no “cardápio” é, também, conveniente não esquecer os indicadores que nos dizem que antes de quaisquer transferências sociais a taxa de risco de pobreza se situava em 2011 em 42,5% e que cerca de 80% dos pensionistas do regime geral de segurança social auferem pensões de montante inferior a 500 euros. São indicadores de um retrato económico e social que não pode ser ignorado.
Não entendo porque não foi aproveitada a capacidade de conhecimento, estudo e investigação que está instalada no país – universidades, instituições independentes de elevada reputação em research e estudos económicos, etc. - para apoiar tecnicamente o governo na decisão política, através de estudos, análises e avaliação de impactos. Portugal não tem tradição neste campo, nem tão pouco na avaliação das políticas públicas. Teria sido um bom momento para alterar alguma coisa neste caldo político. Tratava-se afinal de aproveitar e mobilizar a “inteligência” da sociedade civil.
A discussão inquinada à volta do corte dos 4 mil milhões de euros acabou por transmitir a ideia errada de que o Estado Social é o culpado da crise, o mesmo será dizer que com os cortes no Estado Social a crise fica resolvida, o país é salvo. Não é assim. Precisamos de economia, com economia os problemas do Estado Social não assumem a dimensão que alguns lhe querem atribuir.

6 comentários:

  1. Concordo consigo, Margarida, é uma excelente análise. É curioso pensarmos que, de certo modo, vivemos sempre entre dois extremos, ou tudo ou nada, em ciclos que se alternam subitamente sempre invocando crises, emergências e tudo o que possa reduzir o espaço para pensar a mais longo prazo.Já que olham para dados comparados, também podiam olhar para esse caminho, as séries longas, a evolução e os factores que a determinaram nos países que gostamos de dizer que tiveram sucesso nas reformas que promoveram e nos seus efeitos benéficos para as respectivas sociedades.A grande despesa social e pública começou muito mais cedo nos países com que agora nos comparamos, a Europa do Norte, a Alemanha ou a Bélgica e a Holanda. Quando nós ainda sustentávamos uma guerra e não havia hospitais nem escolas e havia grande percentagem de analfabetos e de famílias com 12 filhos, já essa "europa" gastava uma parte importante do seu PIB a organizar o estado social. A Suécia, por exemplo, há quantos anos é que era o exemplo da falta de crianças, na época atribuído à "liberdade" das mulheres suecas e à recusa dos modelo tradicional de família. Tiveram, durante muito tempo, os níveis de natalidade mais baixos da Europa. Agora já recuperaram e voltaram a querer famílias maiores. São ciclos, as pessoas ajustam-se, o que é saudável, custa-me a entender este sistema de "tirar um retrato" à situação e levar as mãos à cabeça a dizer que hoje, aqui e agora, está tudo mal para todo o sempre.

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  2. Mais do que nunca, existem actualmente condições propícias para que os jóvens da Europa, e do mundo, criem um novo sistema socio-económico, universal.
    A generalidade dos problemas fundamentais, que hoje afectam as sociedades e as suas economias, são comuns à quase totalidade dos países do mundo.
    Esta evidência, deixa-me pensar que, embora a descoberta de uma fórmula única para resolver esses problemas não seja o ideal, é seguramente, na facilidade de interacção, tanto a nível cultural como a nível intelectual e ainda de meios de comunicação que poderá conduzir e propiciar a que os jovens do mundo encetem acções que visem globalizar efectivamente as sociedades, numa perspectiva de intercâmbio total de conhecimentos, de descobertas, de produções, etc. Com base na "maxima partilha", obtendo em troca, a "máxima sutentabilidade universal".
    Pode ser uma utopia, no entanto, é isto que me é dado entender e perspectivar;"mundo novo" cuja formação, estou a começar a ver ganhar velocidade, possibilitando o surgimento de uma nova "ordem social".
    Veremos...

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  3. Cara Dr. Margarida,
    Excelente! Eu comentei aqui em tempo que não entendia porque carga de água se pedia um estudo de natureza tão intrínseca ao país a uma entidade estrangeira com demérito da inteligência nacional, mas agora sei, o objetivo era, mais uma vez, assustar os portugueses com o papão da troika. Enfim, uma desonestidade completa para com o país...

    Mas é tal qual como diz: -"A discussão inquinada à volta do corte dos 4 mil milhões de euros acabou por transmitir a ideia errada de que o Estado Social é o culpado da crise, o mesmo será dizer que com os cortes no Estado Social a crise fica resolvida, o país é salvo. Não é assim. Precisamos de economia, com economia os problemas do Estado Social não assumem a dimensão que alguns lhe querem atribuir."

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  4. "Precisamos de economia, com economia os problemas do Estado Social não assumem a dimensão que alguns lhe querem atribuir."

    Quem é que pode dizer o contrário?
    Penso que ninguém. Há não muito tempo atrás reconhecia-se, geralmente, que deveriam ser adoptadas medidas que privilegiassem a produção de bens e serviços transaccionáveis contrariando a influência dos factores que tinham reforçado o encaminhamento dos recursos materiais e humanos para as actividades protegidas das leis do mercado.

    Que foi feito desde então de verdadeiramente decisivo para alterar a tendência perversa?
    Para onde se dirigiram as poupanças e o crédito, para onde se encaminhou o investimento, para onde se dirigiu, por exemplo, o crédito da Caixa Geral de Depósitos, o banco do Estado?
    Ouvi ontem o presidente da comissão executiva declarar que a Caixa registará prejuízos em 2012 e 2013!, e não há responsáveis?, e que a partir de agora passarão a apoiar mais as PME! Vêm dizendo o mesmo há largos meses. A intervenção da Caixa no financiamento da economia tem sido um logro de lesa pátria.

    E a que preço vão conceder esse crédito? As empresas não podem financiar as suas operações apenas com capitais alheios mas é impensável que o possam fazer sempre apenas com capitais próprios. E o preço que pagam pelo crédito é mais um factor que lhes retira competitividade no mercado.

    Que medidas de apoio e bonificação de taxas estão a ser concedidas pelos bancos às actividades que têm de competir nos mercados externos?

    O crédito bancário continua em grande parte envolvido no financiamento do Estado. A recapitalização dos bancos é o exemplo mais flagrante disso. A troica empresta ao Estado e manda o Estado emprestar aos bancos e aos bancos emprestar ao Estado. Quem sabe quanto da dívida pública está nos activos dos bancos portugueses?

    Não há recuperação económica possível se as contas do Estado sugam a parte maior das poupanças e do crédito disponível. Não haverá reequilíbrio das contas públicas possível se a economia não despertar. O reequilíbrio das contas, reduzindo drasticamente o défice, não inverterá só por si continuação do crescimento da dívida relativamente ao PIB se a economia continuar em recessão por falta de crescimento potencial. O objectivo nacional, que parece ser comungado pelo governo e pelo líder da oposição, de voltar aos mercados ainda este ano será uma miragem de inverno se não acontecer nada de novo antes da troica retirar o chapéu que nos tem abrigado.

    Para garantir que não haverá recaída depois da saída da troica é fundamental negociar as condições pós-troica antes da troica sair. Se não o objectivo nacional – meramente instrumental porque não é um objectivo em si mesmo – não chegará a levantar-se. Mas para que isso aconteça é forçoso que o Governo seja capaz de congregar um consenso nacional que intervenha internamente de modo mobilizador e determinado junto da União Europeia, sem exibição de diferenças no que é essencial entre as forças partidárias que agora se digladiam.

    Em resumo, é condição sine qua non que o senhor primeiro-ministro seja capaz de fazer aquilo em que até agora tem falhado completamente: negociar com o PS e os parceiros sociais um entendimento sobre as posições a tomar nas negociações com a troica a partir da próxima reunião de avaliação, abandonando de vez a atitude de auto suficiência, idêntica à do seu antecessor, completamente despropositada numa situação de crise gravíssima. Uma negociação que não pode passar, evidentemente, nem pela discussão na praça pública nem pela exibição nos directos ou diferidos das tiradas demagógicas no parlamento.

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  5. Suzana
    Essas comparações que se fazem com a Europa e com países da OCDE deveriam ser prudentemente utilizadas porque os estados de necessidade e de desenvolvimento económico são muito diferentes. Comparações feitas em média são perigosas. Os retratos que se tiram num determinado momento omitem percursos e o que de bom e de mal resultou. É como quando nos tiram uma fotografia num dia em que estamos doentes!
    Ainda ontem ouvia alguém dizer num debate uma coisa é que muito verdadeira: não somos capazes de nos organizar e planear. É um problema que nos acompanha e que não conseguimos corrigir. De novo estamos confrontados com o problema. O que mais terá que nos acontecer para acordarmos para a necessidade de planearmos, fixar objectivos e definir os meios para lá chegar. Muitas empresas fazem-no, de contrário não sobreviveriam ou não teriam sucesso, porque não o fazemos como colectivo?
    Caro Bartolomeu
    Não me parece que seja assim tão utópico. Os jovens com a sua criatividade e energia, dispondo de meios de comunicação como nunca existiram, confrontados com a pobreza económica e social que atravessa o mundo ocidental, vão ter um papel importante numa nova "ordem". Iremos assistir a novas formas de organização económica e social, a novas formas de encarar o trabalho e a ocupação do tempo, de modo a que todos - jovens e velhos - sejam incluídos na vida económica e social. Será utopia?
    Caro jotaC
    Porque havemos de ser apenas figurantes? No meio de todo este alvoroço do corte dos 4 mil milhões em que toda a gente se queixa e crítica, os verdadeiros actores vão fazendo o seu trabalho. Estou a pensar que de um momento para o outro, enquanto o desalento e desentendimento vai ganhando expressão, poderemos ter a notícia da decisão final do corte.
    Caro Rui Fonseca
    Agradeço a chamada deste meu texto no seu "Aliás".
    Partilho das suas preocupações:
    "Não há recuperação económica possível se as contas do Estado sugam a parte maior das poupanças e do crédito disponível. Não haverá reequilíbrio das contas públicas possível se a economia não despertar. O reequilíbrio das contas, reduzindo drasticamente o défice, não inverterá só por si continuação do crescimento da dívida relativamente ao PIB se a economia continuar em recessão por falta de crescimento potencial. O objectivo nacional, que parece ser comungado pelo governo e pelo líder da oposição, de voltar aos mercados ainda este ano será uma miragem de inverno se não acontecer nada de novo antes da troica retirar o chapéu que nos tem abrigado".

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  6. O Estado Social em Portugal é barato, o que é caro é o Estado Não Social.

    Educação - 4% do PIB contra 5,6% da UE

    Saude - 5% do PIB contra 6,5% da UE

    S. Social - 15% do PIB contra 15% do PIB da UE

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