terça-feira, 19 de novembro de 2013

Este País de fingidores

   O poeta é um fingidor.
    Finge tão completamente
    Que chega a fingir que é dor
    A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa, Autopsicografia)

O Diário de Notícias deu destaque à frase dita na entrevista :"A maior parte dos pensionistas não são pobres e estão a fingir que são pobres." Lido no contexto, parece que o exemplo pretende ilustrar o caso dos que resistem às medidas de redução de rendimentos invocando situações de limite mas que na verdade "em nome dos pobres querem defender o seu. Estão a defender o seu e a fingir que são pobres!" Deduz-se, portanto, que em Portugal só quando se cai na situação de pobreza é que há direito de defender "o que é seu" ou seja, nada. Nessa altura, e só então, é que os gritos de desespero devem merecer misericórdia e ser ouvidos por quem pode acudir à desgraça. Até lá, é tudo fita. Se a tese é assustadora, o exemplo é muito ilustrativo de uma certa mentalidade que se instalou e que estala por todos os poros quando se fala com mais entusiasmo. A tese de que os pensionistas devem ser pobres e, até que o sejam, façam o favor de deixar que lhes tirem o que "é seu" ou seja, não é seu, pelos vistos, uma vez que pode ser "tirado" sem que seja legítimo defendê-lo. De outra forma, para que precisariam de fingir? Quando se finge, é porque se tem a consciência de que a sua situação real não é bem aceite, ou o torna vulnerável. Ficámos assim a saber que um pensionista, ou é pobre, ou tem que fingir que o é para merecer alguma consideração quanto à sua situação financeira. Podemos exportar o mesmo raciocínio para outras situações, por exemplo, os empregados não têm nada que se opor à legislação liberalizadora do desemprego, invocando as taxas elevadas, porque o que estão é a defender o seu trabalho, e a fingir que estão em risco de perder o emprego! Ou então os saudáveis, que têm que fingir que têm pouca saúde para não acharem lá muito bem que lhes aumentem as taxas moderadoras! Ou mesmo, quem sabe, um dia, depois de já haver poucos fingidores reformados e poucos fingidores empregados, chegue a vez dos fingidores pagadores de impostos, esses mentirosos que andam aí a fingir que a carga fiscal é excessiva mas o que querem é que não revejam as tabelas do IRS! Ai, aí, com este país de fingidores, mas já com raros poetas, como poderemos progredir?

6 comentários:

  1. à expressão do senhor economista César das Neves, não se oferece comentar mais nada, para além do essencial que o post da cara Drª Suzana, já diz.
    Acrescento-lhe somente um pouco de música:
    http://www.youtube.com/watch?v=n_T9Drn0lv0

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  2. Não devemos ter ouvido a mesma entrevista.
    César das Neves não critica ninguém por defender o que é seu, critica sim o uso da pobreza de terceiros para justificar a defesa dos interesses próprios (pelo meio usa uma frase factualmente errada, a de que a maioria das pensionistas não são pobres, mas é evidente, para quem ouve a entrevista, que está a falar dos pensionistas que sofreram cortes, não dos outros).
    henrique pereira dos santos

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  3. Concordo com o comentário anterior; apesar da premissa errada, o entrevistado refere-se, obviamente, aos que não são pobres, mas alegam passar necessidades para justificar que não devem sofrer cortes.
    Um caso: proprietário de 3 casas, duas em Lisboa centro, 2 carros, divorciado a viver sozinho, reforma de quase 2500€ limpos (ex professor do secundário), rendimentos mensais extra: cerca de 2000€ e "vive com dificuldades".
    Haverá alguém, na mesma situação, que se reforme dentro de 10 anos, que tenha a expectativa de receber mais de1500€ de reforma? Esta é a famosa solidariedade entre gerações que nos querem impingir.
    Por favor, deixem de lhe chamar estado social, porque de social não tem nada.

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  4. Suzana
    “Fingir a pobreza”: 1,9 milhões de reformados (70%) – CGA + RGSS – auferem pensões de montante inferior a 500 euros.

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  5. 1,9 milhões de reformados (70%) – CGA + RGSS – auferem pensões de montante inferior a 500 euros.
    Esta é para o Henrique.

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  6. Muito bem Dra. Suzana, querem à viva força um estado sem ética, esta estória das pensões é um nojo...

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