domingo, 30 de outubro de 2011

Nivelem tudo...e depois queixem-se!...

Ganhar dinheiro em Portugal, mesmo que à custa da prestação de trabalho independente ou para outrem, está a tornar-se matéria odiosa. Paralelamente, está em marcha uma verdadeira perseguição ao mérito, através da devassa injustificada e inquisitorial aos vencimentos de quem exerce funções públicas ou em empresas ou organismos do Estado. Creio que nem com os desvarios do PREC se chegou a uma situação como a actual. Claro que, com este ambiente, pouca gente séria e com valor se predisporá a exercer uma função pública, deixando o caminho livre aos medíocres, boys e aparelhistas.
Ainda hoje o DN diz que um quarto dos Deputados tem segundo emprego pago.
Eu diria que são muito poucos, pois eles serão dos que, tendo alternativa, não precisam absolutamente da política para viver. E, não vivendo dependentes da política e das chefias partidárias, podem desempenhar muito melhor a sua missão. Desconfio mesmo que há muitos Deputados com um só ordenado que não têm qualquer ideia de serviço público. Saber quem cumpre melhor essa ideia, independentemente de ter um ou dois ordenados era o que devia interessar.
Por este andar, não tarda muito que as funções de Deputados, Ministros, Presidente da República ou dirigentes de organismos ligados ao Estado só possam ser desempenhadas por desempregados ou por funcionários públicos liofilizados. Porque todos os outros são gente inquinada e suspeita. Sobretudo se tiverem passado ou presente profissional remunerado, sinal óbvio de impureza bactereológica genética. Aí, são apontados a dedo, para gáudio da populaça.
Nivelem,nivelem tudo...e depois queixem-se!
Declaração de interesse: Não exerço, nem conto exercer, funções políticas, nem em organismos do Estado ou aparentados.

A obra inacabada do "famoso José"...

1.Segundo a imprensa de hoje, o “famoso José” andará por estes dias numa roda viva de telefonemas e outros contactos para os seus apaniguados com assento na AR, procurando convence-los a votar contra a proposta de OE/2012.
2.Serei talvez das não muitas pessoas com disponibilidade para compreender esta azáfama patriótica do “famoso José”: considero que a rejeição da proposta do OE/201 - para a qual os votos dos apaniguados não serão certamente suficientes, mas fica a mensagem – seria o corolário lógico da estratégia de política económica e financeira que o ”famoso José” tentava prosseguir quando, em Maio do corrente ano, se viu obrigado a deitar a toalha ao chão...
3. Para melhor explicar o raciocínio, permito-me remeter para o Post que aqui editei em 25 do corrente, intitulado “Resgate Financeiro: o ex-PM estava cheio de razão?”, no qual recordei que o “famoso José” só muito contrariado acedeu a solicitar a ajuda internacional à EU e ao FMI…
4.Esse pedido de ajuda, em estilo SOS, terá sido preparado pelo ex-Ministro das Finanças quase à revelia do ex-PM, sob forte pressão da banca – que pressentia a aproximação do abismo – e apresentado ao ex-PM como “fait accompli”, deixando-o superiormente irado segundo rezam algumas crónicas de próximos de S. Bento…
5.Não lhe tendo assim sido possível prosseguir até ao termo final o arrojado projecto de conduzir o País à ruína financeira e à bancarrota, apesar de nele ter empenhado todo o seu reconhecido talento e força de vontade, o “famoso José” tenta agora, quase em desespero de causa, convencer os seus apaniguados a dar um sinal, apesar de não eficaz, de que esse seria o caminho certo para resolver os problemas com que o País se defronta…
6.O “famoso José” não descansa na Sorbonne pelos vistos, continuando a dedicar uma parcela do seu precioso tempo a curar dos nossos interesses, pedindo aos seus apaniguados uma atitude de grande coragem e do mais abnegado patriotismo…
7.Tal como as capelas imperfeitas do Mosteiro da Batalha, será que a obra inacabada do “famoso José” ficará para sempre por terminar, ou conseguirá ele um dia ver o seu projecto realizado? À cautela, mais vale prevenir, para que a nossa ruína final não passe de sonho do "famoso José"...

Um domingo à moda antiga

Hoje dediquei esta linda tarde de Outono a actividades domésticas à moda antiga. De manhã fui à piscina, nadei uma hora e foi uma beleza, aquele solzinho morno, a água transparente e pouca gente a competir pela faixa que tem bóias de um lado e de outro, a única que permite treinar de costas sem chocar com outros campeões. Soube-me muito bem e tenho que reconhecer que é um exercício fantástico, sobretudo quando não sou obrigada a ir de madrugada!
Regressei a casa retemperada e disposta a arrumar os armários, trocar as roupas de Verão pelas de Inverno e dar uma volta às gavetas, uma tarefa que exige determinação. Gosto imenso de fazer esta troca quando acaba o Inverno, ir buscar as roupas leves de Verão é uma espécie de antecipação dos dias de calor, do tempo mais livre, dos fins de semana a jardinar ou a pôr a mesa para o jantar no alpendre, a ouvir as cigarras. Mas agora é arrumar os dias bons e trazer de volta as roupas pesadas e quentes, prepararmo-nos para o Inverno é sempre mais tristonho, mas pronto, o tempo frio também tem os seus encantos. Um dos encantos do Outono é que é a altura de tirar rendimento dos magníficos marmelos que, uma vez mais, chegaram ali dos lados de Colares, o meu amigo Pinho Cardão tem a generosidade de partilhar com os amigos aqueles belos frutos e há que fazer-lhes justiça. Como ficar horas em arrumações é um bocado aborrecido, resolvi alternar a tarefa e tratar também de dar destino aos marmelos que ainda ali estavam à espera de oprtunidade para serem transformados, já tinha feito marmelada há uns dias e até já a distribui por vários fãs. Hoje, para variar, fiz quartos de marmelo e geleia, que levam mais tempo mas não precisam de assistência permanente ao fogão. No sei se foi da azáfama de virar os armários do avesso enquanto o doce ia seguindo o seu caminho, mas a verdade é que não me saí nada mal, já tenho ali uma porção de frasquinhos bem recheados, alguns para seguirem viagem para Londres, ao encontro das jovens emigrantes da família.
E pronto, entre desporto, cozinha e limpezas assim se passou um domingo de Outono, e estive tão distraída com os meus afazeres domésticos que nem tive tempo de ler o jornal… mais uma vantagem!


E.T. foi a fotografia que ficou escura, não foi o doce, se clicarem têm a prova! :)

"Vidas erradas"

Ninguém pede para nascer, nem pode, mas pode questionar porquê lhe coube tal sorte ou tamanho castigo, e no fim apenas sabe que vai ficar eternamente sem resposta. Como em muitas outras coisas, somos peritos em fazer perguntas, mas ignorantes em dar respostas, e quando conseguimos encontrar uma explicação o seu valor é relativo aguardando pacientemente que a substituam por outra, e assim o mundo vai girando, crescendo em conhecimento e agigantando-se em angústia.
As novas tecnologias permitem produzir novos seres, contrariando a "má vontade" da natureza ao não permitir a realização da mater(pater)nidade. As novas tecnologias permitem, igualmente, detetar "erros" da natureza levando à não produção de seres com "defeitos". Os humanos querem produtos de elevada qualidade. São educados nesse conceito, tornando-se, cada vez mais, em consumidores muito exigentes.
O setor da saúde cresce, talvez desmesuradamente, ofertando meios de diagnóstico ultra sofisticados. Uma criança nasce com "defeito". Fugiu ao controlo rigoroso dos meios que a tecnologia põe ao dispor da sociedade. Consequências? Como a criança não nasceu perfeita pedem-se responsabilidades. Alguém tem de pagar o "prejuízo"; os pedidos de indemnização começam a chover, montantes mais do que chorudos.
Este fenómeno está em crescendo nalguns países, "vidas erradas", caso de crianças que processam os médicos por terem nascido com "defeitos". Em Israel, o assunto preocupa as autoridades, reportando-se mais de 600 casos de pedidos de indemnização nos últimos vinte e cinco anos. Atendendo às características genéticas do povo judeu, elevada taxa de consanguinidade, são muitas as afeções deste cariz que atingem sobremaneira a comunidade. A classe médica, consciente das consequências desta atitude, passou a jogar à defesa, e, deste modo, está a contribuir para a eliminação de "produtos" (fetos) desde que haja suspeita de doença ou problema, originando falsos positivos, ou seja, contribuindo para a eliminação de fetos saudáveis!
Os pais das crianças que nascem com problemas de saúde, escapando às maravilhas dos testes de diagnóstico, têm conseguido indemnizações avultadas. Há, também, indícios de que, mais tarde ou mais cedo, serão as próprias crianças, talvez nem seja necessário chegarem a adultos, a exigirem responsabilidades por terem vindo ao mundo com "defeitos" que escaparam ao controlo médico, tornando-as "inferiores" e com menos possibilidades "concorrenciais" nas vivências do mundo moderno.
A procura da perfeição é um tremendo disparate, pela simples razão de os seres humanos terem evoluído à custa de erros, no fundo não somos mais do que um somatório deles. Um dia destes ainda vão passar um certificado de qualidade aos nascituros ou uma "garantia" semelhante à de um veículo automóvel ou eletrodoméstico.
Ninguém pede para nascer, nem pode, mas um dia destes pode questionar por que é que o deixaram nascer com defeito, e não vai ficar sem resposta e sem indemnização...

Por caminhos perigosos...

No Expresso deste fim-de-semana pode ler-se um apontamento que quase passa despercebido que reza o seguinte:
Na Eslováquia, o salário dos políticos está indexado ao salário nacional e ao défice. Se o salário médio dos eslovacos subir, o salário dos políticos também sobe; se a meta do défice não for atingida, o salário dos políticos desce”. Esta indexação, muito embora não esteja isenta de efeitos perversos tal como é apresentada de forma tão simplista, só funciona em culturas que premeiam o desempenho e o mérito, em culturas que valorizam a qualificação e apostam e confiam nas pessoas e que acima de tudo acreditam e não têm medo da transparência. Tudo o que por cá não temos e o pouco que tínhamos foi sendo destruído.
Nas últimas semanas voltou a ser palco de opinião e discussão a questão das remunerações dos nossos políticos. Logo se ouviram vozes a defender a propósito das remunerações dos membros do governo que estes não precisam de ganhar mais porque quem vai para o governo deve fazê-lo por razões patrióticas, por devoção e empenhamento, para logo outros chamarem a atenção que deveriam ser mais bem pagos porque a não ser assim não há condições para atrair os melhores, de os ir buscar ao mercado, lá onde os resultados do seu trabalho são valorizados e compensados. E ainda outros se apressaram a dizer esta coisa formidável, quem vai para o governo é porque quer.
Mas nada disto é novo. Em tempos de austeridade em que são pedidos sacrifícios às pessoas, a própria classe política, a comunicação social e alguma opinião pública fazem demagogia e tendem a não separar o trigo do joio e a esquecerem-se de que se há abusos inaceitáveis e incompreensíveis na classe política - com ou sem crise digo eu - e geradores de iniquidades em relação ao restante da população, é perigoso fazer suspeições generalizadas e tratar a classe política como se de um grupo de bandidos e vigaristas se tratasse.
O exercício de cargos políticos tem custos e benefícios que não se esgotam nas remunerações, mas tem que haver um ponto de equilíbrio que assegure dignidade e afaste a imoralidade e a injustiça dos excessos. Desconfio que a discussão que está em marcha não permitirá o distanciamento suficiente para que com lucidez e bom senso fosse possível encontrar o dito ponto de equilíbrio que restaurasse a confiança na classe política e a sua credibilidade e permitisse que o país em cada momento pudesse contar com os melhores.

sábado, 29 de outubro de 2011

Na procura da verdade...

Um discurso de tolerância à procura da paz num mundo de violência e cheio de discórdias. Uma reflexão sobre a decadência do homem, em que “a adoração do dinheiro, do ter e do poder, revela-se uma contrarreligião, na qual já não importa o homem, mas só o lucro pessoal”...

(…) Mas, que aconteceu depois? Infelizmente, não podemos dizer que desde então a situação se caracterize por liberdade e paz. Embora a ameaça da grande guerra não se aviste no horizonte, todavia o mundo está, infelizmente, cheio de discórdias. E não é somente o facto de haver, em vários lugares, guerras que se reacendem repetidamente; a violência como tal está potencialmente sempre presente e caracteriza a condição do nosso mundo. A liberdade é um grande bem. Mas o mundo da liberdade revelou-se, em grande medida, sem orientação, e não poucos entendem, erradamente, a liberdade também como liberdade para a violência. A discórdia assume novas e assustadoras fisionomias e a luta pela paz deve-nos estimular a todos de um modo novo.
Procuremos identificar, mais de perto, as novas fisionomias da violência e da discórdia. Em grandes linhas, parece-me que é possível individuar duas tipologias diferentes de novas formas de violência, que são diametralmente opostas na sua motivação e, nos particulares, manifestam muitas variantes. Primeiramente temos o terrorismo, no qual, em vez de uma grande guerra, realizam-se ataques bem definidos que devem atingir pontos importantes do adversário, de modo destrutivo e sem nenhuma preocupação pelas vidas humanas inocentes, que acabam cruelmente ceifadas ou mutiladas. Aos olhos dos responsáveis, a grande causa da danificação do inimigo justifica qualquer forma de crueldade. É posto de lado tudo aquilo que era comummente reconhecido e sancionado como limite à violência no direito internacional. Sabemos que, frequentemente, o terrorismo tem uma motivação religiosa e que precisamente o caráter religioso dos ataques serve como justificação para esta crueldade monstruosa, que crê poder anular as regras do direito por causa do «bem» pretendido. Aqui a religião não está ao serviço da paz, mas da justificação da violência.
(…)
Se hoje uma tipologia fundamental da violência tem motivação religiosa, colocando assim as religiões perante a questão da sua natureza e obrigando-nos a todos a uma purificação, há uma segunda tipologia de violência, de aspeto multiforme, que possui uma motivação exatamente oposta: é a consequência da ausência de Deus, da sua negação e da perda de humanidade que resulta disso. Como dissemos, os inimigos da religião veem nela uma fonte primária de violência na história da humanidade e, consequentemente, pretendem o desaparecimento da religião. Mas o «não» a Deus produziu crueldade e uma violência sem medida, que foi possível só porque o homem deixara de reconhecer qualquer norma e juiz superior, mas tomava por norma somente a si mesmo. Os horrores dos campos de concentração mostram, com toda a clareza, as consequências da ausência de Deus.
(…)
Ao lado destas duas realidades, religião e antirreligião, existe, no mundo do agnosticismo em expansão, outra orientação de fundo: pessoas às quais não foi concedido o dom de poder crer e todavia procuram a verdade, estão à procura de Deus. Tais pessoas não se limitam a afirmar «Não existe nenhum Deus», mas elas sofrem devido à sua ausência e, procurando a verdade e o bem, estão, intimamente estão a caminho d’Ele. São «peregrinos da verdade, peregrinos da paz». Colocam questões tanto a uma parte como à outra. Aos ateus combativos, tiram-lhes aquela falsa certeza com que pretendem saber que não existe um Deus, e convidam-nos a tornar-se, em lugar de polémicos, pessoas à procura, que não perdem a esperança de que a verdade exista e que nós podemos e devemos viver em função dela. Mas, tais pessoas chamam em causa também os membros das religiões, para que não considerem Deus como uma propriedade que de tal modo lhes pertence que se sintam autorizados à violência contra os demais. Estas pessoas procuram a verdade, procuram o verdadeiro Deus, cuja imagem não raramente fica escondida nas religiões, devido ao modo como eventualmente são praticadas. Que os agnósticos não consigam encontrar a Deus depende também dos que creem, com a sua imagem diminuída ou mesmo deturpada de Deus. Assim, a sua luta interior e o seu interrogar-se constituem para os que creem também um apelo a purificarem a sua fé, para que Deus – o verdadeiro Deus – se torne acessível.
(...)

(Discurso de Bento XVI no encontro inter-religioso de Assis, 27.10.2011)

Valha-nos então a literatura, bem precisados estamos




"A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com a sua sorte, a quem agrada a vida tal como a vivem. Ela é o alimento dos espíritos indóceis e propagadora de inconformismo, um refúgio para aquele a quem sobra ou falta algo na vida, para não ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem realizar as suas aspirações. Sair a cavalgar junto do esquálido Rocinante e do seu desgovernado ginete pelos descampados de La Mancha, percorrer os mares atrás da baleia branca com o capitão Ahab, engolirmos o arsénico com Emma Bovary ou transformamo-nos num insecto com Gregor Samsa é uma maneira astuta que inventámos com o fim de nos desagravarmos a nós próprios das ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a ser sempre os mesmos, quando queríamos ser muitos, tantos quantos seriam necessários para aplacar os ardentes desejos de que estamos possuidos". (Vargas Llosa, "La literatura y la vida", citado por António Rego Chaves no Jornal de Negócios de 28 de Outubro, Livros).

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Cristo de Elqui

Há tempos, entrei na livraria, peguei num livro e sem o abrir levei-o para casa. Um impulso como qualquer outro. Não sei o que é que me deu naquela noite, foi o título, sem dúvida, falava de comboios e purgatório, duas coisas com as quais tenho uma estreita relação, adoro comboios e abomino o purgatório, e o título dizia: "Os comboios vão para o purgatório". Como é que algo que faz parte da minha vida vai para aquele espaço esquisito onde as almas têm de penar até poderem subir ao céu. Não sei se ainda existe ou se já sanearam aquele conceito, o que eu sei é que em pequeno incutiram-me de tal modo aquele espaço cinzento e intemporal que cheguei a preferir o inferno, sempre é mais colorido e menos insípido.
Foi nesta obra que ouvi pela primeira vez falar do Cristo de Elqui, uma personagem real que marcou a primeira metade do século passado o Chile. Chamou a atenção dos clérigos, dos governantes e sobretudo de muito povo que o via como o Messias. Ao chegar a Santiago foi detido e enviado para o manicómio. Diagnóstico: delírio místico crónico. Passados poucos meses foi libertado e considerado são, continuando na sua delirante missão. Não havia ninguém naquela parte do mundo que não conhecesse tão estranha pessoa, de barbas longas e unhas compridas, apenas as das mãos, envolto por uma grosseira aniagem, e que pregava de maneira muito original, muitos ouviam-no. Esta poderosa personalidade estimulou a criatividade de alguns autores e poetas. Na obra de Letelier há uma passagem que não esqueço. Uma pobre mãe verifica que a sua esquálida e doente criança acaba de morrer. No tumulto, alguém se lembra de que o Cristo de Elqui tinha entrado na última paragem com os seus apóstolos vadios. Correm à sua procura e trazem-no perante a criança para que a ressuscitasse. Todos esperavam ver o milagre. O Cristo de Elqui debruça-se, concentra-se, esperando que a alma volte ao corpo. Passados uns momentos, dá-se conta de que não consegue miracular, dizendo em voz alta, e tristemente, não consigo, só o meu Pai é que consegue. Voltou a aparecer noutra obra do mesmo autor, "A arte da ressurreição", mas aqui com o estatuto central, ao redor do qual orbitam figuras fortes, estranhas e profundamente humanas.
Nicanor Parra, poeta chileno, criador da "antipoética", escreveu também obras apócrifas de Cristo de Elqui, delírios poéticos, como alguém as rotulou. Deu-me para ler "Serones y predicas del Cristo de Elqui". E porquê tudo isto? Por ter ouvido a notícia da acusação de homicídio de uma figura pública, por causa de uma outra em que um casal perdeu a guarda da filha por serem velhos demais, ele com setenta anos, ela com cinquenta e sete e que, graças a óvulos doados, acabaram por "produzir" uma menina. O tribunal considerou que "os pais foram egoístas e narcisistas", além da "aplicação distorcida das enormes possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias". Mas o rol de notícias não ficou por aqui, crianças metidas em gaiolas de cães, outras abusadas por adultos, e sempre que olhava para o quer que fosse surgia sinais evidentes de delírios e desvarios. Durante uma consulta, um jovem, que não tinha transposto os trinta anos, apresentava uma extensa tatuagem no braço esquerdo, abstrata, dita "biomecânica". Perguntei-lhe: - Qual a razão desta tatuagem? - Nada de especial. Gostei. Ao retirar a camisa, vi que também tinha mais três no braço direito, duas figuras e uma palavra desenhada com letras góticas, Micas. - Micas? - Sim. - É o nome da sua namorada? - Não. É da minha cadela! E estas duas são símbolos de, não percebi bem, mas fiquei a saber que eram de bandas heavy metal. Ficou muito surpreso por não conhecer as bandas! E eu fiquei surpreendido por ver tatuado o nome de uma cadela. Empatados. Chego a casa, e antes de almoçar, vejo um pouco do programa "Praça da Alegria". Qualquer coisa sobre uma mama, cancro, operação, reconstrução, algo que não terá corrido bem, acusação de negligência, chamada da televisão, queixas e mais queixas, exploração patética dos apresentadores, confusão, mais confusão, opinião de um cirurgião plástico, entrevista em direto ao diretor do hospital em questão, posição do diretor, sensata, correta, exaltação da entrevistada, refutação, acabando por mostrar ao público a mama direita com as tais alterações dérmicas. Nem queria acreditar, delírio televisivo. Tantos delírios e tantos desvarios! Delírio por delírio prefiro o delírio místico do Cristo de Elqui, o delírio poético de Letelier ou o delírio lírico de Nicanor Parra, sempre evito ser atingido por certos delírios e ter de acabar os meus dias no purgatório...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

É preciso calma: lá chegarão!...

"A Tunísia ainda não está preparada para a poligamia".

Rachid Ghannouchi, líder do Partido Islamita, que vai à frente na contagem dos votos nas eleições da Tunísia (lido no DN de ontem)

Helmut Schmidt - "nós, europeus, estamos a encolher e a envelhecer"

Na cerimónia de despedida de Jean Claude Trichet como Presidente do Banco Central Europeu, o ex chanceler alemão Helmut Schmitd proferiu um notável discurso sobre a Europa e os problemas de hoje e o que prevê no futuro.
HS afirma que o BCE foi a única instituição capaz de dar alguma resposta à crise financeira de 2008, - recusando-se a dar ouvidos a alemães e a franceses – e só por isso foi possível evitar uma depressão global. Na altura, os Governos do G7, a China e outros, aceitaram, conscientemente, a inevitável consequência do aumento excepcional dos níveis de endividamento e os líderes dos bancos centrais tomaram medidas excepcionais para assegurar a liquidez dos mercados financeiros.
Este facto, diz, torna ainda mais dramático o falhanço político das instituições europeias, incapazes por sua vez de agir, e a discussão sobre a “crise do euro” é apenas conversa fiada de políticos e jornalistas.
Esta crise de capacidade política europeia para agir é uma ameaça muito maior para o futuro da EU do que os níveis de endividamento dos países na zona euro. É certo que não se criaram, ao longo destes 20 anos desde Maastricht, as regras económicas e jurídicas necessárias à moeda única. Foi também a ausência de regras adequadas que permitiu à Alemanha e à França violar o Pacto de Estabilidade e Cumprimento muito antes da Grécia.
Não será possível, diz, modificar estas questões estruturais mudando os Tratados, mas tal não significa que se possa, de forma alguma, usar essa desculpa para incumprir as obrigações de mútua solidariedade e subsidiariedade com as quais estamos moral e juridicamente comprometidos através dos Tratados.
Lembrou o Plano Marshal, o Plano Shuman e a Conferência de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, todos dos anos 50, e não deixou de referir que, “curiosamente”, a Alemanha só no ano passado é que acabou de pagar ou seja, beneficiou então de um longo prazo na sequência da reestruturação da sua dívida!
Quanto à perspectiva de longo prazo, Helmut Schmidt avisa que será mais efectiva a cooperação entre o BCE, a Reserva federal e o Banco Central da China e que, dentro de duas décadas, haverá três divisas globais: o dólar americano, o euro e o renminbi chinês. Com ironia, diz esperar que, por essa altura, já a Europa tenha sido capaz de tornar efectivo o que acertou há 3 anos quanto à transparência e regulação das instituições financeiras, porque não se pode permitir os políticos continuem reféns da classe financeira.
Salienta que a Europa está a encolher e a envelhecer. A longo prazo, a Europa será cada vez mais irrelevante do ponto de vista demográfico e, em 2050, toda a EU pesará apenas 10% do valor acrescentado global. Não se entende como é que, perante isto, ainda haja países que considerem que podem valer alguma coisa sozinhos, com base na sua moeda própria ou contando com o seu prestígio nacional. Se o fizerem, estão a actuar contra o seu interesse estratégico e ficarão marginalizados na arena global.
Por isso, diz HS, o sucesso da Europa é do interesse nacional de todos, e os que estão agora temporariamente mais fortes devem, com certeza, ajudar os que são mais fracos.

Vale bem a pena ler atentamente este discurso.

O discurso clarividente contra os líderes europeus...

1.Existe entre nós um respeitável grupo de personalidades, de brilhantismo variável mas em geral bem-falantes e acérrimos defensores da (sua) Europa que, seguidos de perto por uma numerosa corte de comentadores mediáticos, se têm entregue nos últimos tempos à nobre missão de desancar os líderes europeus – por vezes mesmo lançando sobre estes algumas farpas de sonante agressividade.
2.Consideram suas excelências que estes líderes europeus não são como os anteriores, ou os anteriores dos anteriores, faltando-lhes uma “visão da Europa”, uma “noção estratégica” do projecto europeu, não têm modo de captar o verdadeiro “interesse europeu”, sucumbindo ao “império do mercado”, vergados a uma agenda “neo-liberal”...sem estatura, em suma, para responder ao desafio para que o projecto europeu os “convoca”...tudo muito lamentável, certamente!
3.Na clarividente análise destes “teólogos” da Europa, os líderes europeus actuais, exactamente pela falta dos atributos atrás mencionados, têm demonstrado uma confrangedora inabilidade para ultrapassar um problema cuja solução se afigura, afinal, de “lana caprina”: a constatação de que a zona Euro deixou de funcionar adequadamente, decorridos 12 anos da sua fundação, em resultado da manifesta e reiterada incapacidade de alguns dos seus membros em adoptar políticas económicas e financeiras consistentes com as exigências duma zona monetária de moeda forte...
4.Para estes mesmos “teólogos” da Europa, é inexplicável que um problema destes, cuja solução é de grande simplicidade, não tenha sido já resolvido e de uma penada: emitiam-se eurobonds para financiar os défices dos países mais endividados e mais deficitários, estes apresentavam uns programinhas de correcção das políticas, “home-made”, repletos de referências estratégicas e prometendo um excelente ritmo de crescimento económico...e pronto, assunto resolvido, como não pode deixar de ser entre amigos!
5.Se daqui a 2 anos se viesse porventura a verificar que estava tudo na mesma ou ainda pior, que era necessário repetir a dose, qual o problema? Emitiam-se mais uns eurobonds, fazia-se uma revisão dos programas “home-made” e a caravana seguia em frente, tudo muito europeu e muito estratégico!
6.Quando finalmente se concluísse que nada resultava, que a situação se agravava cada vez mais e já não havia outra solução que não fosse a implosão da zona euro, os nosso “teólogos” da Europajá cá não estariam, teriam procurado refúgio nalguma economia emergente, onde as suas virtudes oratórias e a sua visão estratégica seriam certamente muito bem acolhidas!
Em complemento do post anterior do Ferreira de Almeida À atenção do PS, sobre as PPPs, aqui se deixa imagem elucidativa

À atenção do PS

No Parlamento, ouvido na qualidade de antigo secretário de estado das obras públicas, Paulo Campos afirmou ontem que as Parcerias Público-Privadas não custam ao País um cêntimo em vista dos benefícios que geram. Não me surpreendem estas afirmações, aliás corroboradas pelo também inenarrável ex-ministro das obras públicas na mesma sede. São afirmações de quem há muito revelou pertencer ao clube daqueles que, à beira do abismo, aconselham a dar um passo em frente.
Para lá da inconsequência destas audições parlamentares, não deixa - isso sim - de me surpreender que a atual direção do PS, que necessita como pão para a boca de afirmar a sua credibilidade, não se sinta incomodada com afirmações destas perante tudo o que instituições independentes já disseram sobre o desastre das PPP. Ou, se se sente incomodada, não o manifeste pelo menos de forma igual à que exigiu que a liderança do PSD tomasse em reação a desmandos de gente sua.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A fixação de máximos para as Taxas dos Depósitos

Com a fixação de limites para as taxas de juro dos Depósitos, o Banco de Portugal veio hoje agravar, objectivamente, o maior problema da economia portuguesa, que é o bloqueamento do financiamento às empresas. Este bloqueamento existe por força da obrigação imposta aos Bancos de reduzirem o rácio Crédito Concedido/Depósitos dos actuais 145% para 120% até ao fim de 2013. Trata-se de uma redução violenta, atendendo a que é difícil actuar nos dois termos do rácio. Com efeito, uma diminuição do numerador só é atingível, para além de não concessão de crédito adicional, por um reembolso significativo dos financiamentos concedidos, uma verdadeira impossibilidade; e o aumento do denominador, nas actuais condições de poupança, só é viável através de uma melhor remuneração dos Depósitos, que alicie novos capitais ou seja de molde a restringir consumos supérfluos.
Ora o Banco de Portugal veio hoje penalizar os Bancos pelos depósitos que excedam a taxa euribor e um 'spread' de 300 pontos base. Não interessa entrar em linguagem muito técnica, mas a penalização consiste na dedução de parte de tais depósitos aos fundos próprios dos Bancos, afectando-lhes os rácios de solvabilidade, já de si muito exigentes, e exigindo mais capital accionista, neste momento escasso, para não dizer nulo.
Com esta medida, o Banco de Portugal pode melhorar os rácios financeiros bancários, mas dificulta sobremaneira a actividade económica, ao travar ainda mais o seu já difícil financiamento. E não são os 12 mil milhões disponíveis para recapitalização dos Bancos que vão atenuar o problema. Isso é uma falácia completa. Porque uma recapitalização, se melhora a solvabilidade, não actua nem no numerador nem no denominador do rácio crédito/depósitos, cuja diminuição drástica é objectivo que reguladores exigem que se cumpra.
Os rácios financeiros são importantes; mas sem empresas financiadas não há economia, nem há bancos e muito menos haverá rácios.

As outras crises...

Relatório da ONU revela (confirma) boas e más notícias. Primeiro as boa notícias, Portugal tem uma das mais elevadas taxas de esperança de vida a nível mundial: 83 anos para as mulheres e 77 anos para os homens. Agora as más notícias, Portugal tem a segunda mais baixa taxa de fecundidade do mundo: 1,3 filhos por mulher, apenas ultrapassado pela Bósnia-Herzegovina. Estas notícias não são, no entanto, uma novidade. Há décadas que esta evolução era previsível, sendo que do lado da perda da taxa de natalidade Portugal nada fez para reduzir ou inverter esta tendência cada vez mais negativa. O envelhecimento demográfico coloca importantes preocupações à sustentabilidade da Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde, não apenas porque havendo menos trabalhadores no activo haverá menos contribuições que não serão suficientes para fazer face às pensões em pagamento, mas também devido ao aumento da despesa com pensões por via do aumento do número de pensionistas e de maior longevidade, do aumento do valor nominal das pensões, e bem assim, pelo maior recurso a cuidados de saúde. O envelhecimento demográfico conduz, também, a uma diminuição da produtividade e competitividade económica, assim como a diminuição do espírito empreendedor, de inovação e modernização. Por outro lado, a crise financeira que se prolongou numa grave crise económica e social é geradora de abrandamentos económicos, aumento do desemprego, emprego precário, aumento da emigração e de crescimentos nulos ou mesmo negativos do rendimento, situações que estão a acontecer em Portugal.
Mas a conjuntura económica tem vindo a deteriorar a conta da Segurança Social. O Relatório do OE 2012 antecipa para 2030/2035 a falência do regime, isto é, a Segurança Social não terá dinheiro para pagar pensões. Mais tarde ou mais cedo, será inevitável aumentar a idade da reforma e reduzir o valor das pensões . A questão que se levanta é a de saber como conciliar estas medidas com a necessidade de proporcionar níveis de rendimento na reforma, garantindo bem-estar económico aos pensionistas, ou seja, precaver que as pessoas não correm o risco de se tornarem pobres na idade da reforma e que o seu nível de vida não é abruptamente quebrado devido a taxas de substituição demasiado baixas. Estamos a braços com uma crise gravíssima - financeira, económica e social – que nos consome no medo e na incerteza dos tempos mais próximos que estão para vir, mas a crise demográfica e da segurança social estão aí, embora já cá estivessem há muito tempo. Temos razões para estar muito preocupados…

"Amiga dos velhos"

- Então o J. não veio? - Não, o filho foi operado a uma apendicite. - Correu bem? - Correu, o pior foi a infeção que se seguiu! O nosso colega cirurgião disse que são cada vez mais frequentes estes casos, mas não se pode fechar o hospital... - Pois! O raio da infeção hospitalar começa a ser muito preocupante e, ainda por cima, com o aumento da resistência aos antibióticos.
A conversa parou por aqui, mas ficou a pairar na minha cabeça a problemática da resistência bacteriana aos antibióticos, os quais, quando começaram a surgir, criaram expectativas triunfantes que neste momento estão a ser fortemente abaladas. É incrível a velocidade como as diferentes bactérias estão a ficar resistentes. Algumas já adquiriram um estatuto mortífero quando, ainda, há alguns anos sucumbiam ao fim de alguns dias de terapêutica.
O esforço na descoberta e investimento de moléculas apropriadas a este fim foi uma realidade durante algumas décadas, mas nos últimos tempos tem vindo a esmorecer de forma acentuada. As razões são diversas, é preciso muito dinheiro para criar algo de novo e são precisos muitos anos para se obter o respetivo retorno que, por vezes, devido a políticas de patentes, não é garantida às farmacêuticas o prazo desejável para esse desiderato. Por outro lado, a "descoberta" da importância das doenças crónicas e a "criação" de outras fizeram com que a indústria especializada se dedicasse à produção de moléculas apropriadas. É tão fácil explicar esta viragem, um doente crónico, por exemplo, que sofra de hipertensão, de diabetes ou de colesterol elevado tem de tomar medicamentos durante toda a vida, logo está garantido o retorno do investimento, se a molécula for a original ou, então, dos comerciantes dos genéricos. O investimento em novos antibióticos tem vindo a diminuir, porque ao longo da vida não andamos a tomá-los diariamente, de um modo geral as infeções duram pouco e surgem, quando surgem, de lés a lés. A par desta realidade, juntam-se o uso indiscriminado e o mau uso dos mesmos, quer em saúde humana, quer em saúde animal. Por outro lado, as bactérias sabem defender-se e transmitir a informação a outras. São solidárias!
Entretanto é preciso fazer qualquer coisa sobre este assunto. Ouço tanta conversa sobre medicamentos, genéricos, gastos em saúde, prescrição excessiva, caso de antidepressivos e calmantes, mas pouco sobre os antibióticos. São precisas políticas adequadas, do género estimular a indústria a investir em novos fármacos, mediante o prolongamento das patentes, ou então racionalizar o uso de antibióticos através de medidas muito apertadas na prescrição. Também seria interessante modificar o sistema de comparticipação, pagando mais às farmacêuticas que vendessem menos unidades. Parece um contrassenso, mas não é, ficaria assegurado as expectativas de lucro e evitaria o sobre uso dos mesmos. Medidas utópicas? Talvez. Há uma semelhança entre a resistência bacteriana e o aquecimento global. Muitos países fazem os seus disparates ecológicos, lançando para a atmosfera gases com efeito estufa, e quem esteja a cumprir as regras acaba por comer as consequências da violação ambiental. Com as bactérias é a mesma coisa. Más práticas numa qualquer zona do planeta podem originar o aparecimento de novas espécies resistentes, as quais, usando os meios convencionais de transportes modernos, transmitem a informação às suas primas localizadas a milhares de quilómetros de distância. É assim a vida. Por este andar não deverá faltar muito para que a pneumonia volte a ser a "amiga dos velhos", a recordar os tempos pré antibióticos em que diagnosticar uma pneumonia tinha o sabor de uma morte anunciada.
A história repete-se, seja qual o for o campo em que naveguemos. Agora que começa o mau tempo, as infeções irão ocorrer com a naturalidade sazonal, mas seria conveniente que todos tivessem um pouco mais de cuidado na forma de encarar e tratar muitas delas. Infelizmente bom senso é algo que não existe, basta ver o que se diz, o que se faz e o que se promete nas esferas económicas e políticas. O disparate é o desporto preferido dos seres humanos, sobretudo se der lucro, muito lucro, independentemente daquilo que chamam princípios e valores. Ao menos as bactérias são muito melhores, mais coerentes, defendem-se e são solidárias. Imagino a gargalhada que ouviríamos se pudessem rir...
O melhor é levar as coisas mesmo a sério. Pode não resolver tudo, mas sempre ajuda.

O efémero "porreiro, pá!"


Ontem a chanceler alemã, numa intervenção no parlamento, anunciou a necessidade de reformar o tratado reformador. Anunciou o óbvio. Se a Europa sobreviver a esta crise que começou por ser financeira mas que cedo pos a nú as fragilidades do projeto europeu celebrado em Lisboa, as alterações não podem ser de circunstância, têm de ser profundas e sobretudo racionais. Diferentemente do que tem vindo a público, a solução não se reconduz somente à perda da soberania económica dos Estados a favor de uma União que se entende que neste plano se deve tornar mais federal. É o próprio modelo de governação europeia que deve ser questionado e profundamente alterado para que seja possível fazer uma verdadeira união política e económica a partir da diversidade e heterogeneidade nacionais, em vez de as ignorar ou menosprezar.

A falta de capacidade revelada pelas instituições europeias (umas criadas, outras reforçadas pelo Tratado de Lisboa) para enfrentar os momentos de dificuldade e de incerteza que os cidadãos europeus hoje vivem, diz tudo sobre a ingente necessidade de repensar o projeto europeu e não só a Europa do euro. Diz da necessidade de, tal como se exige aos Estados membros, combater a excessiva burocracia europeia, reduzir a dimensão de uma máquina que as atuais circunstâncias revelaram ser pouco competente e sobretudo pouco ágil na prognose dos problemas e no estudo de soluções. Diz da indispensabilidade de mecanismos que impeçam que os interesses de cada Estado se possam sobrepor às necessidades da União. Diz da autoridade que se tem de reconhecer a um poder europeu que não pode mais encontrar-se pulverizado por inúmeros centros de decisão e, pior do que isso, submetido aos interesses nacionais dos Estados que os podem impor.

Pode parecer paradoxal que seja precisamente a Alemanha (e o Reino Unido, após a rebelião nos conservadores a que se assiste) a reclamar por uma reforma profunda dos tratados, a mesma Alemanha que se fez surda às vozes que no dealbar da crise prognosticaram o caráter efémero do Tratado de Lisboa. Mas só parecerá paradoxal a quem, ingenuamente, acreditou na solidez do compromisso firmado em Dezembro de 2007 em Lisboa. Compromisso tão efémero quanto infantil era a satisfação do PM português traduzida naquele “porreiro, pá!” que hoje se significa algo de não risível retrata somente a leveza dos materiais com que se ergueu este edifício europeu, sobretudo após os alargamentos a leste.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Navalha de Ockham e Diabetes

Estou nos Açores, em Ponta Delgada, chove pouco e de vez em quando muito, sabe-me bem estar sentado à espera da partida. Uma visita rápida, vim ontem à noite e regresso daqui a pouco. Vim fazer uma conferência. Já se tornou um hábito, agradável e desafiante, porque tenho oportunidade de falar de "coisas" que gosto e, sobretudo, fugir à ortodoxia científica. Sabe bem. Para aproveitar o tempo, e não "perder" o texto, o que é muito comum, lembrei-me de o colocar no "Quarto da República", uma espécie de arrecadação. Vejo, agora, que ninguém coloca nada desde janeiro. É obra!
Desta vez deu-me para "embirrar" com Wiliam Ockham. Ele não se deve importar. Reconheço estar perante um notável teólogo, uma espécie de "pai" da ciência em plena idade média. Utilizei os seus conceitos para fazer uma abordagem diferente da diabetes.


Navalha de Ockham e Diabetes

Não consigo localizar com precisão o momento em que li pela primeira vez a frase “Navalha de Ockham”. Sei, apenas, que foi num artigo científico qualquer e incomodou-me, não só porque não entendi de imediato o seu alcance, mas, também, porque a própria palavra “navalha” me cortou o pensamento. Navalha? Mas a propósito de quê? Navalha serve para cortar, para matar ou para curar, o seu significado intrínseco é violento, presumo que todos comunguem desta ideia que lhe está associada. Ainda me recordei dos velhos barbeiros a afiar e a passar a lâmina pelo pescoço e pelas carótidas dos clientes, uma simples distração e o outro mundo ficava de portas escancaradas. Talvez seja por isso que sempre respeitei e temi os barbeiros, para não falar de alguns grupos étnicos cuja cultura se fazia a torto e a direito com navalhas de ponta e mola. Mas vamos ao que interessa, afinal o que é a “Navalha de Ockham” e o que é que tem a ver com a diabetes.
Começo por descrever, ainda que sucintamente, o significado da “Navalha de Ockham”. Trata-se de um princípio lógico que contribuiu de forma elegante e eficiente para o desenvolvimento da ciência. William de Ockham é um dos lógicos mais importantes da idade média, frade, viveu no século XIV e, como muitos outros da altura, deveria preocupar-se mais com a lógica, a filosofia, a matemática e a reflexão do que propriamente com as almas do seu rebanho, e ainda bem. Segundo este princípio, devemos eliminar todas as premissas exceto as absolutamente necessárias à explicação de um fenómeno, princípio também designado por Lei da Parcimónia. Parcimónia que, segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, tem como significados: Ato de poupar, de economizar, de despender moderadamente. Economia; sobriedade...

Resgate financeiro:ex-PM estava cheio de razão?

1.Ainda nos recordamos da cena “gaga” daquela noite em que o ex-PM apareceu nas câmaras da TV, com fisionomia estranha, acompanhado de uma “múmia” quase fantasmagórica, anunciando o excelente Memorando de Entendimento negociado com o FMI e a União Europeia, tendo por objecto o resgate financeiro do País...
2.Sabemos que a negociação desse resgate financeiro não foi nada pacífica, que o ex-PM resistitu até ao fim à sua negociação e que o ex-Ministro T. dos Santos concluiu a negociação praticamente à revelia do PM, pressionado pela Banca entre outros agentes compressores...
3.Por vontade do ex-PM o resgate financeiro teria pois sido adiado “sine die”, do que iriam resultar dois cenários possíveis:
- Num 1º cenário, o País continuava a cumprir o serviço da dívida pública, juros e amortizações, para que os credores não nos fechassem a porta e não entrássemos em imediata bancarrota;
- Num 2º cenário, o País deixava de cumprir o serviço da dívida pública (e outra), entrando em imediata bancarrota.
4.No 1º cenário, para pagar o serviço da dívida, o Estado teria de suspender, total ou parcialmente, (i) o pagamento dos salários da função pública, (ii) as transferências para o SNS e para a SS, além de outros serviços autónomos (Universidades, por exemplo), (iii) as transferências para as Regiões Autónomas e Municípios, (iv) os apoios financeiros às financeiramente decrépitas empresas de transporte público, etc, etc.
5.Não é difícil imaginar o que seriam as consequências do generalizado incumprimento das obrigações internas do Estado: (i) funcionários públicos na rua todos os dias, com tachos, panelas e outros utensílios reclamando pelo seu salário,(ii) hospitais semi-paralizados, (iii) transportes públicos totalmente desorganizados, (iv)greves gerais a cada 15 dias, (v)tumultos, (vi)assaltos a “hipers”, etc, etc.
6. No 2º cenário, entraríamos em imediata bancarrota, com o crédito externo totalmente cortado e sem qq ajuda dos organismos internacionais que neste momento financiam mais de 60% das Necessidades Brutas de Financiamento do Estado, corrida aos bancos que se veriam forçados a limitar os levantamentos das contas de depósito a € 100 ou €200/semana, começaríamos a ter falta de produtos importados como os combustíveis com formação de longas filas para o abastecimento e a emergência de um mercado negro...
7.Qualquer destes cenários não poderia durar mais de 2 a 3 meses pois seria acompanhado de uma violenta crise política, da tumultuosa queda do governo e...de um inevitável resgate financeiro, negociado em condições absolutamente dramáticas...
8. Quando, em tal cenário, o FMI e a U.E. viessem por hipótese informar que a tragédia em que o País tinha caído teria solução com algumas medidas de contenção como a suspensão dos subsídios de Natal e de Férias para os funcionários públicos e similares, com a redução das despesas de saúde, com a educação e outras funções do Estado bem como das transferências para as Regiões e Municípios...
9. ...Essa notícia seria recebida com alegria incontida, com enorme alívio, como se houvesse “caído do Céu”...a Troika seria aclamada como a salvadora da Pátria, o País mobilizava-se para as inadiáveis tarefas da recuperação...
10. Bastariam pois 2 ou 3 meses de experiência com a realidade que nos espera caso falhássemos - por culpa própria ou por falta de entendimento quanto ao essencial do que nos cabe fazer - o cumprimento dos objectivos estabelecidos no PAEF, para que o País considerasse o mesmo PAEF como uma solução redentora...
11. Por isso, quando agora assisto a estas intermináveis querelas e desacertos por causa dos inevitáveis cortes na despesa do Estado, concluo que estaria certo o ex-PM quando tentou até ao fim resistir ao resgate financeiro...e quem andou mal foram o ex-Min. Finanças+ bancos quando pressionaram a negociação desse resgate...

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Vae victis, ainda e sempre

Na Idade Média as execuções eram públicas, para exemplo e também para satisfação popular, pois assim o povo podia comprovar com os seus próprios olhos que fora feita “justiça” e saciar a sua sede de vingança. Muitas vezes era parte da punição deixar os cadáveres insepultos, pendurados na forca ou com as cabeças espetadas em lanças, à vista de todos, sendo esta a negação última de um tratamento humano, a falta de respeito pelos restos mortais.
Hoje, em pleno séc. XXI, as “Primaveras” chegam-nos acompanhadas de imagens que lembram, às vezes por excesso, a barbárie que há muito julgávamos intolerável. Hoje, no orgulhoso mundo global que exporta princípios de democracia e humanidade, os discursos sobre a Líbia das altas autoridades europeias e mundiais são o fundo sonoro de um filme de terror que mostra, uma e mil vezes, o linchamento de um governante derrotado.
Hoje, em pleno séc. XXI, a Europa e o mundo ocidental, do alto da sua arrogância civilizacional, vêem as imagens e mantêm o discurso, glória ao futuro de paz, vivam os vitoriosos. Não dizem, como César, “vae victis”, ai dos vencidos!, não, nem pensar, mas fazem de conta que as imagens captadas por telemóveis da turba insana que golpeava o meio-morto ditador não contam para os registos, estão mal filmadas, levantam dúvidas, a Nato diz mesmo que vai mandar abrir um inquérito para saber “as circunstâncias” da morte. Na perspectiva da Nato, portanto, é da maior relevância “esclarecer” os espíritos inquietos sobre se o homem que antes recebiam com honras de chefe de estado já estava ou não morto antes de a multidão o estraçalhar, os juízos têm que ser justos e ponderados, pois claro, é preciso pensar bem antes de condenar, alto e bom som, o modo como foi executado, à moda da Idade Média, o odioso Coronel Kadhafi. Nós ouvimos as “palavras de esperança” dos homens que guiam os destinos do mundo e ficamos aterrados com as imagens que as ilustram e nos entram pela casa dentro. E duvidamos que elas possam ser sinceras, suspeitamos fortemente que sejam ditadas pelo medo, pelo horrível medo de afrontar a barbárie, de não suscitar ódios ou retaliações em relação a futuras diplomacias.
Não há coragem para qualificar com clareza as imagens que vemos na Líbia. As câmaras de rapina fazem grandes planos do cadáver miseravelmente exposto, da cara putrefacta, das feridas, do cobertor imundo lançado às três pancadas sobre as pernas, das máscaras que defendem do cheiro. As filas e filas "do povo que quer ter a certeza de que ele morreu” não deixam acabar com este horror e as televisões passam, uma e outra vez, no mundo inteiro, o cúmulo da degradação humana. À milésima vez, já nada nos emociona, já tudo parece indiferente, já se afastou para bem longe a fronteira do inconcebível.
Que tremam, os seus sucessores e todos os poderosos do mundo que não conseguem arranjar palavras para se indignar. Que tremam e leiam os sinais. Que não são de esperança nem de redenção. São de vingança e de barbárie, o que pensávamos já não ser possível ver sem que se levantasse num coro indignado. Mas as vozes são cada vez mais fracas, o politicamente correcto é muito relativo, tão relativo quanto assustador. A Idade Média não alarma ninguém, nem abala as proclamadas esperanças. Vae victis, como sempre, afinal.

Dia sim, dia não

Dia sim, olhamos para os rankings internacionais e sangramo-nos em vida porque somos ultrapassados por este e por aquele País, dia não, decidimos com grande clamor que os enormes avanços que conseguimos no aumento de qualidade dos serviços públicos não têm qualquer reflexo no crescimento económico mas apenas na despesa. Dia sim, eliminamos com ardor “privilégios” que reduzem objectivamente capacidade técnica do sector público, dia não, escandalizamo-nos com a dimensão dos custos suportados com escritórios de advogados e consultoria.
Abri há dias o El País Semanal e havia vários artigos a queixar-se da crise e dos seus efeitos na vida das pessoas, em particular na diminuição que já se faz sentir dos serviços prestados pelo Estado aos cidadãos. Mas o que me chamou a atenção foi que o jornal decidiu mostrar, não o que já falta, mas o que ainda se tem e que poderá perder-se, com grande prejuízo para todos.

Por cá, na vozearia geral, o “Estado” é primariamente considerado uma fonte de despesa inútil, um amontoado de “privilegiados” que recebem salário sem se saber bem a que título. Por cá, incompreensivelmente, empresários que ainda há pouco tempo faziam contas sobre os “custos de contexto”, exigindo melhor educação, melhor saúde e melhor justiça, empresários que apregoam a importância das pessoas nas organizações, que fazem conferências sobre motivação, liderança e sentido de missão, vêm a público desvalorizar um sector inteiro, dispensando-se de um mínimo de sentido de justiça e reconhecimento, sem as quais as suas empresas ruiriam num ápice. Esses mesmos virão em breve interpelar o poder político sobre a perda de qualidade dos serviços, virão arrepelar os cabelos e indignar-se com a descida das nossas escolas, tribunais e outros serviços públicos nos rankings internacionais, que ainda há tão pouco tempo eram apontados como determinantes para captar investimento externo. E, nessa altura, afirmarão com dobrada veemência que “o Estado” prejudica o País, que o desinvestimento nas pessoas que nele trabalham foi um erro enorme, que temos os equipamentos e não tempos competências, que o País não pode desenvolver-se sem que o Estado recrute os melhores para garantir a defesa dos interesses públicos. Esses, que hoje falam desabridos contra o sector público, serão os primeiros a esquecer que contribuíram, de forma irreversível, para o empobrecimento do País. É só aguardar os próximos rankings e os dias sim e os dias não invertem-se de imediato…

Navegação à vista...

Alguns membros do governo têm direito a um subsídio de deslocamento por não terem residência permanente em Lisboa. Um direito que a Lei lhes confere. Entretanto, o escrutínio público revelou que alguns também têm uma segunda residência em Lisboa, logo não deveriam receber, segundo a opinião pública, embora a interpretação da Lei feita pela Procuradoria Geral da República não as considere como residência permanente mas sim ocasional. Pressionados pela divulgação dos seus casos dois deles acabam de anunciar que vão abdicar do subsídio. O secretário de estado José Cesário chegou a afirmar não querer “introduzir qualquer tipo de ruído”, pelo que prescinde do mesmo. Não consigo compreender a situação. A Lei permite que recebam o subsídio, e já o receberam, pelo menos até ao momento, e agora vão abdicar do mesmo, não porque estejam a cometer ilegalidades, mas devido a simples pressão. Acho mal esta atitude. Se não queriam receber essa quantia, por motivos éticos, por motivos de solidariedade ou por não se sentirem confortáveis face à situação que vivemos, tudo bem, nada a comentar, mas deviam ter tomado essa decisão logo de início e não agora. Afinal para que servem as Leis? Não é para regulamentar as nossas atividades e ações? Qual a vantagem desta "abdicação"? Um sinal de moralização? Qual quê! Nada disso, apenas mais um sinal de navegação à vista, andar à bolina, tão típico do portugueses, o que não é bom sinal para quem ocupa altos cargos políticos. Se não tivessem falado do assunto continuariam a receber, e não estavam a cometer nenhuma legalidade. Que mania, a dos portugueses andarem a fazer "ruído" acabando por incomodar ministros e secretários de estado!

domingo, 23 de outubro de 2011

"Labor Omnia Vincit"

- Então, não vens? A voz inconfundível do meu amigo provocou-me um baque. Olho para o relógio e vejo que ainda faltavam quarenta e cinco minutos para o evento. Recordei-lhe o facto, mas justificou-se com a missa, tinha acabado mais cedo! Atrapalhado, larguei praticamente o que estava a fazer e corri o mais depressa possível para o local. Senti um forte embaraço, porque estavam todos à minha espera para a cerimónia. Tentei desculpar-me, não em demasia, para não desrespeitar as pessoas presentes, auto interrogando-me, como foi possível acontecer uma coisa destas, a mim, um obsessivo no cumprimento dos horários? Aconteceu. Pedi desculpa aos presentes, família Moura e autoridades. De seguida, após uma pequena celebração religiosa, foi descerrada uma lápide comemorativa dos cinquenta anos da empresa FAVIR. Recordo muito bem a sua fundação. Atualmente constitui uma força e exemplo de atividade empresarial que muito honra os seus administradores e o concelho. No contexto de depressão económica em que vivemos, ver uma empresa a crescer, segura e a exportar constitui um sinal de esperança que merece destaque.
Voltando atrás, recordo a sua criação. Passava diariamente junto da Fornecedora dos Sr. Moura e do Sr. Costa quando ia para a escola. Com o tempo, e não foi preciso muito, os miúdos da época acabaram por aprender a respeitar as individualidades que marcavam o quotidiano de então, numa altura em que o "respeitinho era muito bonito".
O apelido Moura, para a geração menos nova, de que já faço parte, é símbolo de prestígio, sinónimo de trabalho e marca de sucesso, que, felizmente, ainda paira entre nós, graças aos continuadores, filhos e netos.
Hoje, no decurso das festividades, fui obrigado a conversar comigo próprio. Lembrei-me do senhor Moura, não é que tenha privado intimamente com o senhor, na altura era um mero catraio, mas conheci-o e retenho alguns episódios. Vou relatar apenas três. O primeiro tem a ver com o atrevimento da canalhada de então que, quando ia para a escola, entrava na Fornecedora para pedir amendoins. Eu também ia. Uma das vezes foi o próprio que me questionou o que eu queria, não estava à espera. Comecei a tremer e, de cabeça baixa, disse que era por causa dos amendoins. Hum! E onde é que os levas? Meti as mãos nos bolsos dos calções, como quem diz, aqui. Aí não levas grande coisa. Dá cá o boné. Atrapalhado, sem saber para que é quereria o boné, entreguei-lho. Passado pouco tempo apareceu com ele cheio de amendoins, cujo fabuloso odor precedeu a entrega. Fiquei com os olhos arregalados e agradeci como pude e sabia tão generoso gesto.
Num segundo episódio testemunhei a sua vertente dura. Ao descer a ladeira, num carro de rodados, eu e um outro colega, aproveitando a excelente inclinação, passámos à velocidade da luz em frente da porta. Provavelmente, o barulho dos rodados deverá ter-lhe chamado a atenção, e, quando viu que íamos entrar na estrada nacional, ralhou-nos com tal determinação que nunca mais repetimos tamanha façanha. Fiquei muito envergonhado e, também, com medo de nunca mais ter acesso a amendoins tão saborosos.
No terceiro episódio foi eu que me zanguei com o Sr. Moura, mas nunca soube. Na altura, depois das aulas queríamos jogar à bola, mas o professor não permitia que continuássemos a utilizar o recreio da escola. Mas não havia problema, porque precisamente ao lado, do outro lado da estrada, havia um espaço ótimo para esse efeito. Um dia a Fornecedora expandiu a sua superfície acabando por o ocupar. Um aborrecimento. E agora? Onde encontrar um espaço semelhante que permitisse aos miúdos continuar a jogar como se fosse na escola? Não havia. Fiquei zangado. Passado algum tempo a construção estava concluída. Colocaram um painel de azulejos no topo. Olhei e vi que as palavras estavam erradas. Onde é que já se viu uma palavra com um "m" seguido de um "n", e uma outra com um "t" no fim? Estão erradas. Copiei-as para a lousa e quis provar em casa os erros. Foi então que me disseram que não era erro nenhum, eram palavras em latim. Latim? Como da missa, que ninguém entende? Sim. É uma frase em latim. E o que é significa? Significa, "O trabalho vence tudo". No dia seguinte voltei a olhar para a minha primeira locução latina, "Labor Omnia Vincit". Achei-a tão bela, tão simples e tão rica que me apaixonei por ela, adotei-a, instintivamente, como o lema da minha vida, até hoje, e não me arrependo. Afinal, a minha zanga, por ter tirado o segundo recreio, foi compensada como uma das mais elegantes expressões que está na base do sucesso das pessoas e das sociedades. Passo amiúde por aquelas bandas, muitas vezes só para voltar a ler "Labor Omnia Vincit"...
Três lições de um homem, generosidade, autoridade e sapiência. Eu agradeço as três, passados cinquenta anos.

Os All Blacks e a cultura maori

O início da final do Campeonato do Mundo de Rugby, que a Nova Zelândia justamente acaba de ganhar, ficou marcado por dois factos simbólicos: enquanto os All Blaks se dedicavam ao ritual da dança maori, os jogadores da selecção francesa foram-se aproximando e alinharam firmes a ver o espectáculo.
O ritual maori, perpetuado nos costumes, vem dos primeiros habitantes da Nova Zelândia, há séculos emigrados da Polinésia. Consiste num encadeamento de danças guerreiras, sempre praticadas antes dos combates, modo de intimidar os adversários. Como agora, simbolicamente, fazem os All Blacks. A aproximação dos franceses pretendeu significar que iam à luta sem medo.
Estive há uns anos na Nova Zelândia (e também na Austrália), extensões da Inglaterra nos antípodas, mas países soberanos, embora mantenham como símbolo a Coroa de Inglaterra. A Nova Zelândia é uma nação onde convivem a cultura europeia e a cultura maori, numa integração exemplar. Ingleses e maoris constituem uma verdadeira nação, onde todos se sentem neozelandeses. A dança maori é um símbolo dos valores maoris, adoptado pelos All Blacks, neste momento maioritariamente descendentes de ingleses.
A título de curiosidade, convém dizer que, ao contrário do que muitos pensam, não há qualquer similitude entre os Maoris e os Aborígenes da Austrália. Estes chegaram lá ainda não se sabe bem como, mas não vieram da Polinésia. Aliás, as características anatómicas evidentes de um aborígene, nomeadamente o rosto e as feições, nada têm a ver com as de um maori. E embora os aborígenes sejam cidadãos australianos de pleno direito e o acesso aos serviços públicos seja idêntico (há deputados, juízes, médicos, advogados, etc, aborígenes), eles tendem a resistir a uma integração plena, guardando para si tradições e costumes, preferindo muitos uma vivência tradicional em vez do viver moderno. É por isso que a casa, que todos têm, não seja por todos usada, por não lhes verem valor útil. Nada disto acontece com a população maori.
Voltando ao rugby, a mim não me atrai muito a modalidade. Mas gosto dos All Blacks.
Nunca a identificação de uma modalidade desportiva com uma marca encontrou tal correspondência. Também por isso muitos se sentem satisfeitos pela vitória dos All Blacks no campeonato do mundo de rugby.

As exigências das decisões difícies




O que é que faz um doente quando lhe diagnosticam uma doença muito grave? Ouve várias opiniões de quem sabe,com a rapidez necessária, para decidir o que for menos doloroso e arriscado. O que faz um médico perante um caso difícil e incerto? Reune com colegas, forma equipas, confronta soluções, para decidir com a máxima segurança. O que faz uma família que tem que tomar uma decisão importante para todos? Ouve uns e outros, com a diligência possível,de modo a que todos se sintam parte da decisão e participem do esforço que lhes vai ser pedido. O que é que espera um credor do seu devedor? Que ele procure assegurar-se de que tomará as melhores decisões para poder cumprir os seus compromissos.
Oiço por aí vozes que temem melindrar a Europa com o debate interno que corre por cá sobre o Orçamento. A Europa, pelos vistos, na cabeça de alguns, esperaria silêncio e unanimidade, não admite hesitações. Eu não sei o que é que “a Europa” pensa de um País que, perante uma situação extrema que exige medidas muito difíceis das quais depende o presente de muitas pessoas e famílias e o futuro colectivo, debata as hipóteses, pondere as soluções e oiça com preocupação os riscos de cada alternativa, dando a ideia de que hesita, sim, mas que o que decidir terá possibilidades de ser aceite e compreedido pela maioria. Mas admito, porque ainda acredito alguma coisa na Europa democrática, que a Europa veria com muito mais preocupação que um País à beira do abismo não aproveitasse o debate democrático para se deter a confrontar alternativas. Não sei se um alemão, um holandês, um francês e um inglês estranhariam debates nas suas terras a propósito de decisões cruciais. Mas, pelo que vejo do que se passa na Europa, certezas é o que há menos, fórmulas únicas é o que não se vê, cada um defende os seus interesses o melhor que pode e sabe para evitar ser arrastado para o abismo de decisões mal tomadas. O que se vê na Europa é que todos querem ganhar tempo, amortecer de qualquer modo a brutalidade do que os espera, o que se vê é que olham para o chão antes de avançar o pé, e isso quer dizer alguma coisa, quer dizer que certezas há poucas e medo de errar há imenso.
Por isso, duvido muito dos que, por cá, acham que a “Europa” se irritará connosco se houver debates, se as surdinas passarem a vozes e se os argumentos forem postos em cima da mesa a tempo de serem considerados. O que a “Europa” podia estranhar, e muito, era que, uma vez mais, a emergência nos impedisse de pensar, para depois nos acusarmos uns aos outros dos erros sem remédio. Já aconteceu antes, lembram-se?

sábado, 22 de outubro de 2011

Assim vai a Europa...

Num momento em que a pobreza está a crescer e a fome é uma realidade na Europa, é deplorável o que se passou na sexta-feira passada na reunião do Conselho de Ministros da Agricultura. Alemanha, Reino Unido, Suécia, Dinamarca, Holanda e República Checa uniram-se em minoria de bloqueio para reduzir em 500 milhões de euros o Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados (PCAAC).
Com este bloqueio, em 2012 estarão apenas à disposição 113 milhões de euros, afectando gravemente a ajuda alimentar a 18 milhões de pessoas que beneficiaram este ano do apoio do PCAAC. Portugal é um dos países afectado pela decisão. Portugal passou a ter direito a apenas quatro milhões de euros, em vez dos anteriores 40 milhões de euros. Com esta decisão 400 mil portugueses terão menos apoios para comer.
A dita minoria de bloqueio justificou a decisão em razões que o cidadão comum tem dificuldade em entender, é que a ajuda alimentar não deve estar integrada na Política Agrária Comum, mas sim na Política da Acção Social. Mas como só deixa de estar em 2014, até lá o apoio é cortado. Assim vai a Europa, a mesma que se “une” para aprovar declarações e supostas políticas de combate à pobreza e exclusão social. A crise que vivemos é muito profunda, com a Europa desentendida em questões tão fundamentais. Onde está a Europa coesa e solidária?

Riccardo Muti: do gesto ao génio

O discurso do maestro italiano Ricardo Muti, que foi maestro residente no Scala de Milão e é actualmente director Musical da Orquestra Sinfónica de Chicago, ao receber o prémio de Músico do Ano, de América Musical, é uma lição magistral sobre a difícil arte de dirigir. Não percam, de certeza que vão ver uma e outra, e outra vez, admirados por ouvir dizer de uma forma tão simples o que inúmeras lições de liderança não conseguem transmitir. (Desculpem mas não consegui por aqui o video...:)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Apoios ao BPN ultrapassam a nossa imaginação?

1.Acabei de ler e custa-me acreditar...mas a fonte é pública e oficial: o montante das garantias emitidas pelo Estado, ao abrigo da Lei nº 62-A/2008, a favor da CGD, para esta conceder financiamentos (operações de assistência de liquidez) ao BPN, terá atingido ou mesmo ultrapassado, entre o 4º trimestre de 2008 e o final do 1º semestre de 2011, a “módica” quantia de € 8 mil milhões, mais de 4,5% do PIB actual!
2.Esta conclusão extrai-se do gráfico de barras publicado a páginas 103 do Relatório da Proposta de OE/2012.
3.Não é explicitado, deste montante, o que o BPN possa ter entretanto reembolsado a CGD, abatendo à responsabilidade do Estado...mas, a avaliar pela capacidade de gerar fundos do dito Banco, esse valor deve ter sido muito modesto...
4.Assim sendo, o peso financeiro que o Estado acaba por suportar com a patriótica decisão de nacionalizar o BPN pode vir a atingir montantes até agora impensáveis...
5.E não se publica um livro negro sobre esta história absolutamente deplorável? Peçam ao Dr. Miguel Cadilhe para se encarregar desse trabalho; estou convencido de que ele apresentaria em pouco tempo e (quase) sem custos para o Estado um documento completo e esclarecedor!
6.“The mind boggles”!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Equidade fiscal

Era uma vez dez amigos que se reuniam diariamente numa cervejaria para beber, e a factura era sempre de 100 euros. Solidários, e aplicando a teoria da equidade fiscal, resolveram o seguinte:
• os quatro amigos mais pobres não pagariam nada, o quinto pagaria 1 euro, o sexto pagaria 3, o sétimo pagaria 7; o oitavo pagaria 12; o nono pagaria 18 e o décimo, o mais rico, pagaria 59 euros.
Face à fidelidade dos clientes, o dono da cervejaria resolveu fazer-lhes um desconto de 20 euros. Ainda atendendo à equidade fiscal, resolveram dividir os 20 euros igualmente pelos 6 que pagavam, cabendo 3,33 euros a cada um, mas depressa verificaram que o quinto e sexto amigos, que pagavam 1 e 3 euros, ainda receberiam para beber. Gerada forte discussão que pôs em perigo o grupo, o dono da cervejaria propôs a seguinte modalidade que foi aceite:
• os cinco amigos mais pobres não pagariam nada; o sexto pagaria 2 euros, em vez de 3, poupança de 33%; o sétimo pagaria 5, em vez de 7, poupança de 28%; o oitavo pagaria 9, em vez de 12, poupança de 25%; o nono pagaria 15 euros, em vez de 18.
• o décimo, o mais rico, pagaria 49 euros, em vez de 59 euros, poupança de 16%. Cada um dos seis ficava melhor do que antes e lá foram bebendo. Certo dia, no entanto, começaram a comparar as poupanças.
-Eu apenas poupei 1 euro, disse o sexto amigo, enquanto tu, apontando para o décimo, poupaste 10…e não é justo que tenhas poupado 10 vezes mais…
- E eu apenas poupei 2 euros, disse o sétimo amigo, enquanto tu, apontando para o décimo, poupaste 10...e não é justo que tenhas poupado 5 vezes mais!…
E os 9 em uníssono gritaram que praticamente nada pouparam com o desconto. E de imediato concluíram: “deixámo-nos explorar pelo sistema e o sistema explora os pobres…”. E, passando à acção, logo rodearam o amigo explorador e maltrataram-no severamente.
No dia seguinte, o ex-amigo rico emigrou para outra cervejaria e não compareceu, deixando os nove amigos a beber a dose do costume. Mas quando chegou a altura do pagamento, verificaram que só tinham 31 euros, que não dava sequer para pagar metade da factura!...
Aí está o sistema de impostos e a equidade fiscal.
Os que pagam taxas mais elevadas fartam-se e vão começar a beber noutra cervejaria, noutro país, onde a atmosfera é mais amigável!...

David R. Kamerschen, Ph.D. -Professor of Economics, University of Georgia (tradução livre de A. Pinho Cardão)

País falido

Uma criança sofreu há 16 anos uma grave paralisia cerebral devido a negligência médica, aquando do parto. Está total e permanentemente incapacitada, exigindo o cuidado da mãe vinte e quatro horas por dia. A negligência foi judicialmente provada. O hospital de São Marcos, de Braga, foi condenado a pagar uma indemnização de 450 mil euros. Ainda não pagou como ainda recorreu da sentença. Pergunto: - Quem é que acredita na justiça em Portugal? Eu não. Não só não acredito, como sinto vergonha. Um país que se comporta desta maneira é, há muito tempo, um país falido.

Aguenta-te!

Como qualquer cidadão deste país, minimamente responsável, sinto uma certa ansiedade e mal-estar devido às circunstâncias em que mergulhámos nos últimos tempos. Ouço muitos comentários e outras tantas interrogações a propósito da crise que vivemos. “Como foi possível isto tudo”? “Há necessidade de serem aplicadas tão gravosas decisões”? “Por que razão não hão-de ser responsabilizados os autores de tamanha façanha”? Quanto à primeira, “como foi possível isto tudo”, não há que abrir a boca de espanto, era o que mais faltava! Há por aí uma catrefada de sacanas capazes disto e de muito mais. Até parece que desconhecem a essência da humanidade. Nascemos ou evoluímos a partir de outras formas de vida, que ainda perduram em nós, e essas formas ou maneiras de ser despertam certos modelos de sobrevivência, aniquilando os outros, enganando-os, explorando-os ao máximo e sem grandes complexos de culpa. A humanidade nasceu torta e tarde ou nunca se vai endireitar. Poderão contra-argumentar com a existência de pessoas de bem, amorosas e dedicadas ao próximo, e depois? Será que conseguirão travar ou eliminar as tendências menos positivas dos outros? Não! Nem à custa de leis, nem à custa de princípios religiosos, os oportunistas não são são capazes de obedecer a regras éticas universais. Este é que é o verdadeiro "pecado original", e não há água benta capaz de o lavar.
Tenho algumas suspeitas, como muitos outros, quanto às medidas enunciadas pelo governo, se serão ou não as mais corretas. Inquieta-me saber se irão ter o efeito desejado. A título pessoal, confesso que tenho muitas dúvidas, cimentadas pelo comportamento e análise de alguns teóricos de "ideias gerais" que sabem como ninguém explicar tudo a todos, pedindo que aceitemos com naturalidade os sacrifícios que nos são impostos. Os ares compungidos com que transmitem as opiniões incomodam-me, porque, por vezes, consigo vislumbrar alguma soberba por detrás das suas máscaras faciais, dando a entender que as medidas duras, e que as vão ainda ser mais penosas, têm que ser aplicadas. Tem que ser! Pois é, tem que ser porque não lhes vai doer. Que conforto! Estes comportamentos repetitivos fazem-me lembrar um episódio contado por António Lobo Antunes. O escritor, quando estava de papo para o ar numa cama do hospital, a pensar como qualquer mortal na sorte que lhe saiu entrementes, depois de ter sido operado a um cancro, era visitado, amiúde, por pessoas que construíam os seus sorrisos no corredor. Houve apenas um, o Júlio Pomar, que, tendo sofrido uma história semelhante, lhe disse, ao entrar no quarto: - Aguenta-te!
Quanto à sugestão de chamar à barra do tribunal os responsáveis pela situação atual as opiniões dividem-se, os mais "populistas" ou "básicos", como eu, consideram ser uma ideia interessante, mas os mais evoluídos, os mais cultos, os fazedores de opinião e os ilustres pensadores do país contrapõem com os perigos de práticas justiceiras, justicialistas ou coisas parecidas. Está bem, pronto, não vale a pena levar a julgamento essas criaturas, não é porque não merecessem - estou convicto de que iríamos assistir a verdadeiros espectáculos capazes de fazer inveja aos maiores artistas da representação nacional -, mas só pelo facto de não acreditar que se fizesse qualquer tipo de justiça. Em última análise ainda sobraria para os cidadãos. Afinal não foram eles que os elegeram? No entanto, o cidadão comum poderia defender-se dizendo que julgava que eram sérios, honestos e que queriam ir para aqueles lugares para defender o interesse público. O pior é que a democracia tem destas coisas, tanto permite que o poder seja entregue aos mais honestos como aos outros, e estes sabem como ninguém que é muito fácil subir na política e atingir os seus objetivos. A natureza humana, dita perversa, primitiva, algum dia iria desperdiçar estas oportunidades? Nunca. E agora? Agora aguenta-te. Até à próxima, porque o que vemos não são erros, são puras manifestações do "pecado original", não da história da carochinha que nos ensinaram em miúdos, mas do outro, do verdadeiro, do que está na base da evolução do homem, e que irão ocorrer até aos finais dos tempos...

A patética ilusão do crescimento económico...

1.Muitos responsáveis políticos e comentadores económicos têm sustentado nos últimos dias a necessidade de crescimento económico, a par ou mesmo antes da austeridade orçamental, através das mágicas “medidas adequadas” .
2.Eles não negam a necessidade da austeridade orçamental mas entendem que sem crescimento, pelo menos ao mesmo tempo que austeridade, esta última não faz sentido: é pois indispensável “tomar medidas” (quais nunca se sabe)que "promovam o crescimento...
3.Estamos assim a viver um tipo de ilusão semelhante à implícita na famosa declaração do Presidente Sampaio, em Abril/2003, “há mais vida para além do Orçamento” - e que haveria de nos atirar, 2 anos depois, para a mais louca correria atrás do crescimento, acumulando asneira atrás de asneira até à tragédia em que estamos hoje mergulhados...entre o final de 2007 e de 2010, a dívida pública aumentou apenas em 25% do PIB!
4.Só que essa ilusão assume agora uma gravidade muito maior pela razão de que nos encontramos em situação de insolvência, sem meios de financiamento...e como é possível fazer crescer a actividade económica sem meios de financiamento, alguém me pode explicar?
5.Querem obrigar os nossos credores a continuar a emprestar-nos dinheiro, contra a sua vontade e, para cúmulo, em condições definidas por nós?
6.Acresce que para voltarmos a ter financiamento, precisamos em 1º lugar de restituir capacidade creditícia ao Estado, sem essa condição não vale a pena ter ilusões pois os próprios bancos residentes não terão financiamento, nunca mais teremos financiamento para a economia...
7.Importa atentar que em 2011 e em 2012 as Necessidades de Financiamento Brutas do Estado (NFBE) serão satisfeitas em 57% e 61,5%, respectivamente, pelos empréstimos FMI/EU...
8.Fácil é perceber que sem esses empréstimos o Estado entrará em ruptura total da tesouraria, ficando impossibilitado, entre muitas outras desgraças, de pagar os salários dos funcionários públicos e de fazer transferências para a SS e para o SNS...
9.E, como sabemos, a libertação desses fundos não é automática, depende do resultado de avaliações trimestrais efectuadas pela Troika sobre o grau de cumprimento dos objectivos do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF)...
10.Se e enquanto as avaliações do PAEF forem positivas, o dinheiro será libertado e isso será ao mesmo tempo um sinal para os mercados de que as coisas estarão no bom caminho, veja-se o caso da Irlanda...
11.Mas se em dado momento as avaliações deixarem de ser positivas, teremos um grande problema, arriscando entrar num tipo de “Calvário Grego”, com necessidade de adopção de medidas de austeridade adicionais, e as tenebrosas dificuldades desse processo...
12.Num tal cenário,o acesso às fontes de financiamento será indefinidamente adiado e a nossa economia não terá outro caminho que não seja a contracção permanente por mais "medidas adequadas" que se tentem...
13.Afiguram-se verdadeiramente patéticos estes apelos ao crescimento que estamos ouvindo!

A caminho do estrelato...

Aqui está uma forma de calcorrear o caminho da fama! Mais uma ou duas semelhantes a esta e o povo luso acabará por reter o seu nome e "importância".

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Grande ideólogo das SCUT's também está indignado...Stupete, gentes!

1.O Eng.º João Cravinho, grande ideólogo e impulsionador desse extraordinário modelo de financiamento/construção/exploração de AE sem custos para o utilizador (SCUT's) – só possível no pressuposto heróico de que nenhum contribuinte as iria utilizar – veio também manifestar agora a sua indignação contra a odiosa proposta de OE/2012...
2....E fá-lo sem papas na língua, afirmando, tonitroante, que “O Governo ataca a função pública por RESSABIAMENTO NEGATIVO”...curioso conceito este de Ressabiamento Negativo...fico a pensar no que consistirá o Ressabiamento Positivo?
3.Embora já tenham decorrido cerca de 12 anos, recordo-me bem do tempo em que alguns cidadãos pouco esclarecidos levantaram reservas sérias ao modelo SCUT, argumentando que não fazia sentido a utilização gratuita de uma infra-estrutura tão dispendiosa e que não se configurava de 1ª necessidade...
4.Acrescendo que o modelo de financiamento escolhido, por concessão de rendimento garantido para os concessionários com base numa taxa de rentabilidade muito generosa, se apresentava muito mais oneroso para o Estado do que a promoção directa dos projectos, com financiamento do próprio Estado e inscrição da despesa no OE – se necessário recorrendo à emissão de dívida pública, à época de muito baixo custo e sem problemas quantitativos...
5.A estas críticas o Eng.º Cravinho respondia (quando respondia) de forma sobranceira, esclarecendo o Povo de que essas pessoas tinham uma visão puramente financista, de contabilista, não se mostrando capazes de compreender os efeitos altamente positivos sobre a actividade económica das regiões atravessadas pelas SCUT’s que este projecto era garantido gerar... e esse incremento da actividade seria + do que suficiente para compensar os custos das ditas SCUT’s...
6.Os anos passaram,passaram, continuamos à espera dos efeitos das SCUT’s sobre a actividade económica das regiões...e entretanto caímos na insolvência, também com a ajuda precisa das SCUT’s, já não havendo dinheiro para assegurar a rentabilidade aos concessionários sendo por isso necessario transformar as SCUT's em CCUT’s!
7.Mas quem está indignado, afinal, é o Eng.º João Cravinho, que lança agora os mais duros impropérios contra aqueles a quem cabe a triste tarefa de apanhar os destroços e os “cacos” de uma feira de vaidades e de desvarios (que incluía uma “barraca” para as SCUT’s) a qual, como era previsível para os tais cidadãos pouco esclarecidos, se desmantelou e acabou na tragédia a que estamos a assistir!
8.Stupete, gentes!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

As esperas nas salas de espera...

Uma sala de espera de um consultório pode ser um laboratório social. Hoje ao final da tarde na sala de espera de um consultório médico estavam muitas pessoas a aguardar a sua vez. Queixavam-se de mais de uma hora de espera em relação à hora marcada para serem atendidas. É um cenário muito comum no nosso país. Há ainda muito médico que faz uma espécie de overbooking de consultas, obrigando as pessoas a longas esperas. Uma prática inaceitável, mas que os doentes aceitam por necessidade.
O ambiente estava bastante tenso. Talvez que a crise esteja a deixar as pessoas com os nervos à flor da pele, esteja a despertar nas pessoas a necessidade do cumprimento, do rigor. Os doentes pagam uma fortuna por uma consulta médica e são obrigados a gastar o seu tempo com um tempo que não é o seu. Sujeitam-se. Em matéria de pontualidade somos um péssimo exemplo. Conheço excepções, médicos que são pontuais, tão pontuais que quando um doente chega para lá da hora marcada só poderá ser atendido no final.
Uma senhora dos seus quarenta anos acompanhada por uma miúda pequena estava indignada com a espera que já ia longa, para a qual o pessoal administrativo não apresentava uma justificação convincente. Dizia ela, mas quem me paga toda esta demora? Deveria estar a trabalhar, a produzir, afirmava ela, também tenho responsabilidades, e a minha filha já deveria estar em casa a fazer os trabalhos da escola. A que título se marca uma hora, quando quem marca já sabe que não é para cumprir? Não era a primeira vez que a senhora era confrontada com esta desconsideração. Mas desta vez, os ânimos gritaram mais alto. Estava a ouvir a conversa e a sorrir baixinho. Será que a crise vai ajudar a acabar com estes maus hábitos de trabalho e deformações de funcionamento da sociedade…

Riso eletrónico!

Ontem escrevi um pequeno texto sobre o comportamento pouco deontológico de nutricionistas que, descaradamente, promovem produtos alimentares do Continente. Quanto ao papel da "princesa do nada", nada tenho a dizer, é alguém que sabe vender a sua imagem, e cada um vende o que pode ou que lhe dá na real gana. Quanto a isso fico com as minhas impressões, que valem o que vale, às tantas nada, mas é coisa não chamada para aqui.
Escrevi o texto num destes interessantes e modernos gadgets, que, com um simples toque de um dedo, permitem obter pequenas maravilhas. Oferecem processadores de texto capazes de duas coisas, corrigir o que escrevemos, o que é muito bom, como induzir a escrever o que entendem, e aqui a porca torce o rabo. Explico, ao digitar as primeiras letras de uma palavra o processador do texto antecipa-se oferecendo a mais indicada, a fim de poupar tempo a escrevê-la na totalidade. Por vezes estamos de acordo, outras vezes não. Apesar de habitualmente escrever como deve ser as palavras, o processador acaba por impor as suas caso me distraia. Claro que há forma de as recusar, bastando para isso estar atento e carregar com a ponta do dedo no X da oferta e mandar às malvas a pretensa ajuda. Foi o que me aconteceu ontem. Escrevinhei o texto e, em vez de escrever espectador, escrevi espetador. Hoje, de manhã cedo, e um pouco estremunhado pela falta de descanso nocturno, li o comentário de AF. Confesso que a princípio não compreendi muito bem, o que é natural, mas, depois de uma segunda, ou terceira?, leitura alcancei o ponto, tinha escrito mal a palavra "espetador". O comentário é interessante, sem dúvida, mas despertou uma reação da minha parte algo meio intempestiva, o que é perfeitamente natural em pessoas emotivas. De qualquer modo, entendi que devia suavizar a minha reação com um daqueles sinais em que se utilizam os " smiles" ou coisa parecida, neste caso acho que foi um piscar de olho, ;).
Mas vamos ao que importa, ao ler e compreender o objetivo do comentário ao meu erro/lapso, comecei a ouvir o silvo de um protótipo de uma colher de pau gigante, inacabada, pois, e com cinco pequenos orifícios, em vez da concavidade que deveria ter, a tombar, pouco delicadamente, nas minhas mãos, impulsionada, magistralmente, pela besta do meu professor da escola primária, que, à boa maneira de outros tempos, "sabia", como ninguém, educar os miúdos com "porrada" da grossa. O silvar da menina dos cinco olhos - será que os "cinco olhos" eram uma forma de evitar que se partisse na sua atividade pedagógica, encontrasse menos resistência ao ar, ao mesmo tempo que representavam as cinco quinas nacionais? -, aliado ao latejar das mãos, a gritarem de dor, foram, matinalmente, desencadeadas pela leitura do comentário. Ao fim e ao cabo uma forma de reflexo pavloviano, mas negativo, claro, porque não salivei de prazer, antes pelo contrário. Irrita-me profundamente estes corretores de texto, indutores de palavras que não desejo e que escapam, algumas vezes, ao controlo. Nem imaginam as "induções" que tenho recebido à medida que escrevo este pequeno desabafo. Estou farto de corrigir. Que chatice! Tem de haver uma forma de eliminar estas ajudas. Vou ver se consigo. Esta coisa de andar a corrigir o corretor tem muito que se diga.
E assim, graças à publicidade televisiva, acabei por relembrar certos acontecimentos do passado e dissertar sobre o presente.
Confesso que começo a divertir-me com as minhas atitudes, lapsos e erros. Até já consigo rir-me de mim próprio. Há quem diga que quem o consegue é porque está no bom caminhão (caminho, se faz favor!). Irra, estou farto de entrar em conflito com este sacana do processador de texto! Nem imaginam as vezes que já alterei as palavras que não queria escrever. O pior é se na revisão final não conseguir detetar alguns erros, mas se não conseguir, paciência, pelo menos está publica e antecipadamente explicado o meu erro/lapso.
Que alívio, :)). Acho que é assim que se dá uma gargalhada eletrónica!
Afinal o sacana do processador de texto parece que tinha a sua razão:

"espetador (èt...ô) ou espectador (èct...ô)
(latim spectator, -oris)
s. m.
1. Aquele que assiste a espetáculo.
2. Pessoa que presencia algo. = TESTEMUNHA
3. Aquele que observa algo. = OBSERVADOR
Confrontar: expetador ou expectador.

» Grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990: espectador

» Grafia no Brasil: espectador."


(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).