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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

“Para ali não mandaram senão empregados incapazes…”

Eu sou um dos que se tem conservado na ideia de que o Tribunal de Contas não tem cumprido o seu dever. Esta opinião é a geral, tenho-a ouvido constantemente, e a ninguém tenho ouvido uma palavra em defesa desse Tribunal… Sabemos hoje que o Tribunal de Contas foi organizado como se poderia organizar o Hospital de Runa: para ali não mandaram senão empregados incapazes e algum que escapou pela malha foi depois tirado para outras repartições…”. Era assim que, em 21 de Março de 1852, falava no Parlamento o Deputado por Arganil Vicente Ferrer Neto Paiva, comparando o Tribunal de Contas com o caótico Hospital da Runa, edificado uns anos antes para tratamento e asilo de inválidos militares. Receio bem que, passados 170 anos, o funcionamento do Tribunal de Contas tenha sido aferido pelo mesmo padrão… Sabendo-se que as “contas certas” se tornaram dogma incontestável da governação, só um Tribunal de Contas formado por empregados incapazes poderia cair na heresia de o contrariar. Mas foi isso mesmo que aconteceu, quando classificou a Conta Geral do Estado de 2018, a última analisada, como viciada por “erros materialmente relevantes “ e marcada por contínuas “situações de desrespeito de princípios orçamentais, incumprimento de disposições legais que regulam a execução orçamental e insuficiências dos sistemas de contabilização e controlo“. E, face ao incumprimento de princípios de “legalidade, correção financeira e controlo interno“, concluiu que a Conta é “um relatório “incompleto” e “com erros”. Conclusão esta só mesmo obra de empregados incapazes… Também em recente apreciação ao Código de Contratos Públicos, o Tribunal criticou as alterações preconizadas: passando a “a excepção a ser a regra”, aumentam as probabilidades de “conluio, distorção da concorrência, cartelização e corrupção na contratação pública”. Advertências só possíveis de entender num Tribunal organizado à imagem do velho Hospital da Runa… E se em 1852 esse inapto Tribunal acusava que as administrações passadas não têm dado os esclarecimentos pedidos…que faltam três mil e tal declarações para satisfazer…que não têm resolvido as consultas…nem as requisições que tem feito…”, também o actual incapaz Tribunal se queixa de falta de informação como, mero exemplo, a necessária para avaliar os impactos orçamentais das medidas de combate aos efeitos da pandemia. Persistindo maledicências de teor semelhante, claro que os poderes públicos teriam que intervir sobre quem, destituído do mais elementar sentido patriótico, produzia assim relatórios que tanto minavam o prestígio do governo e a sua credibilidade no plano interno e externo. Mas fazendo-o com sensibilidade e bom senso, excepcionando alguma rara nomeação que tivesse escapado pela malha dos incapazes e que era justo defender e tirar para outras repartições. E foi assim, sepando o trigo do joio e como forma de proteger a sua reputação, que o Presidente do T. Contas foi afastado das suas funções, também oportunidade única de, na cerimónia de despedida, o P.R. realçar publicamente a “gratidão nacional” que lhe era devida por “ter superado todas as muitas elevadas expectativas de há quatro anos”. O que obviamente nunca poderia acontecer se continuasse a presidir a uma Instituição de incapazes, organizada à moda do Hospital da Runa. Quanto aos incapazes que por lá ficam, certamente que uma acelerada formatação lhes vai conceder rapidamente o dom da sabedoria… PS: Gerido à moda do Hospital da Runa em 1852, está o Ministério da Saúde em 2020. Festa nas televisões, caos no SNS. Cidadãos a morrer por falta de consultas e cirurgias, quando, ali ao lado, a capacidade disponível no sector privado e social é rejeitada pela ideologia da saúde pública. O absurdo de uma saúde pública que renega a saúde individual. Mais provas de que para ali não mandaram senão dirigentes incapazes? https://ionline.sapo.pt/artigo/714276/para-ali-nao-mandaram-senao-empregados-incapazes-?seccao=Opini%C3%A3o

Tarde e a más horas

Tarde e a más horas é que o Governo se decidiu a articular o SNS com a capacidade disponível no sector privado, social e misericórdias para minimizar os efeitos directos e indirectos do COVID. O Governo resistiu até onde pôde, no espírito da Lei de Bases da Saúde, uma Lei incoerente, verdadeira manta de retalhos tecida de modo a que cada partido da geringonça se pudesse rever no seu pedaço. Pior, uma Lei cuja ideologia diculta, senão mesmo contraria, os próprios preceitos constitucionais de que “todos têm direito à protecção da saúde”, através do SNS ou da sua interligação com as “formas empresariais e privadas da medicina”. 

Mas, como a realidade se contrapõe à ideologia, não foi preciso mais que um ano desde a sua entrada em vigor para comprovar toda a incapacidade para defender a saúde dos portugueses.

Se em Março o SNS já mostrava as suas debilidades, com milhões de consultas e dezenas de milhares de cirurgias adiadas, o COVID veio a tornar ainda mais crítico o seu funcionamento, não só para os doentes da pandemia, mas para todos os que, sofrendo de outras doenças, se vêem impossibilitados de ser acolhidos nos hospitais. É por isso abominável que o Ministério da Saúde tenha vindo a rejeitar a disponibilização pelo sector privado de algumas centenas de camas, das quais dezenas em UCI, como a Associação dos Hospitais Privados vem lembrando, e que só agora, encostado à parede, por ser já impossível esconder o risco de ruptura do SNS, se veja forçado a dar passos para associar as unidades do sector privado e das misericórdias no apoio ao SNS. Uma ligação até agora considerada promíscua, a evitar a todo o custo.  

E, embora a gravidade da situação impusesse uma estratégia global, o facto de tais diligências se efectuarem a nível regional e não nacional mostra que o Ministério da Saúde evita o envolvimento directo nessas negociações, porventura como derradeira forma de afirmar a sua pureza ideológica. Preferiria seguramente a requisição de serviços que o Presidente da República desaconselhou.

Dizem as esquerdas que os gastos com os cuidados médicos privados oneram o SNS, uma falsidade. A prova é que o valor que o Estado paga por tratamentos nos hospitais privados consta de tabelas oficiais e é inferior ao seu custo na rede do SNS.  

Mas, mesmo que assim não fosse, seria sempre uma iniquidade imperdoável se, por razões ideológicas, se deixassem morrer pessoas ou agravar doenças pelo facto de o SNS não as encaminhar para onde pudessem ser tratadas. E isso acontece.  

(Meu artigo na edição de 20 de Novembro de 2020 nos jornais Diário de Coimbra, Diário de Viseu, Diário de Aveiro e Diário de Leiria)