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sábado, 31 de maio de 2014

Forais




Fui convidado para participar, como moderador, num colóquio sobre os 500 anos dos forais manuelinos atribuídos a Santa Comba Dão e a cinco das suas atuais freguesias outrora também concelhos. Um pequeno concelho possui no seu cofre e na sua história seis forais. Estas cartas de direitos e de deveres, que outorgaram a identidade administrativa, civil e judicial, constituem um fator de coesão e de identidade regional base de qualquer desenvolvimento e cooperação. 
Se analisarmos bem podemos verificar a existência de vários tipos de identidade, biológica, familiar, cultural, profissional, religiosa, ideológica, política, clubista, para falar das mais importantes. Todas as identidades enunciadas, se virmos bem, estão, de algum modo, subordinadas à identidade regional. Hoje já não se nasce nas aldeias, nas vilas e cidades do interior. A conquista em termos de saúde exige cuidados que só podem ser ministrados em unidades adequadas que estão concentradas em urbes com determinadas dimensões e importância. A desertificação do interior leva ao envelhecimento demográfico. Este, por sua vez, contribui, a par de medidas humilhantes, caso de poupanças do poder central, ao roubo e encerramento de serviços vitais para a coesão social e desenvolvimento local. 
Ao comemorar em ato solene, académico e popular a outorga da personalidade jurídica, civil e administrativa aos concelhos, traduzidas pelos forais manuelinos, podemos concluir pela existência de uma brutal diferença de comportamento e de atitude entre a forma de ver do poder central de então e o atual. Ao respeito, incentivo e carinho de antanho, contrasta a "destruição", humilhação e ofensa aos que por aqui ficaram, vivem e querem morrer. Gente esquecida, que se sente ameaçada por cortes e pela supressão de vários serviços. 
Não sei se as comunidades locais irão no futuro comemorar este facto, nem sei se irão existir, mas mesmo que não existam sob a forma atual, o que é perfeitamente natural, provavelmente não serão capazes de sentir essa força telúrica e social, que está desaparecer por não nascerem nesses locais e por desaparecerem para outras pátrias.
Sem identidade regional não é possível construir a memória coletiva e sem memória o futuro morre às mãos do presente. 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Café

Uma manhã diferente. Não trabalhei. Fui tomar um café. Entrei no espaço comercial, vazio de pessoas, triste, medonho, assustador, um espaço indicador do mal que circula em redor. Pessoal às portas das lojas com semblante indiferente, mentes longínquas e talvez mesmo vazias. Idosos sentados às mesas, a gozarem sombrias aposentadorias, falavam, comentavam e nem olhavam. Empregados demasiado solícitos perguntavam se precisava de alguma ajuda. Sorri-lhes e compreendi as suas ansiedades e desejos. Tudo cheirava a tristeza, até a velha, com trejeitos de deterioração mental, que falava sozinha para as montras, procurando o que não pode encontrar, alegria, satisfação e bem-estar. Deambulava sozinha indiferente à presença da pouca gente que ornamentava o espaço gigantesco criado numa época de fantasia e de loucura. Agora resta um espaço frio, cinzento de almas, cheio de luz fria e de futuro vazio. Restam lembranças e velhos para ocupar espaços sem sentido, tristes e incomodativos. Um espaço pobre, um país pobre, pobreza em demasia para quem quis passar uma fração de tempo numa manhã de um dia qualquer.
Safou-se o café.

Charlatanice

As redes sociais são um verdadeiro maná para conhecer o caráter, a formação, o pensamento e a forma de estar de muitas pessoas. É possível ao fim de algum tempo ver aquilo que nunca se conseguiria observar ou detetar pelos meios convencionais, a convivência, o encontro, a discussão ocasional, enfim, tudo aquilo que marcava a vida de antanho. Agora não, é mais giro, mais rápido e mais preocupante, porque a exposição é total, ou quase total, e fornece dados muito relevantes. Habitualmente não faço grandes comentários a determinadas exposições, embora sinta estranhos impulsos nesse sentido. Contenho-me, mais por uma questão de respeito, do que qualquer outra coisa. No entanto, observo uma certa dificuldade nalgumas pessoas ao quererem interpretar determinados acontecimentos, notícias ou informações. 
Há muita falta de qualidade e até tentativas de manipulação ao nível da informação que corre na internet. Dentro deste quadro, cito aqueles que estão mais ao meu alcance por motivos profissionais e académicos. Abunda tanta informação distorcida, tanta asneira, tanta tentativa de pretensa desmistificação, quando na realidade é perfeitamente o oposto, com a charlatanice a ocupar o lugar cimeiro. A técnica já começa a ser velha, começa-se com conceitos corretos, baseados em evidências científicas e depois, de uma forma subtil, "arrastam-nos" para conceitos perfeitamente disparatados ou até mesmo perigosos, levando à confusão e até a mudanças de paradigmas que podem custar caro aos que caem nesta forma de abordagem. Obviamente que nem todos têm capacidade de escalpelizar o assunto, mas, mesmo assim, se tivessem um espírito crítico digno desse nome, poderiam efetuar uma pesquisa sobre o assunto socorrendo-se de fontes sérias e credíveis que também estão no espaço virtual. Não o fazem. Porquê? Por comodidade? Talvez, ou, então, por as tais notícias, muitas vezes sensacionalistas, se encaixarem na sua forma de ser reforçando comportamentos ou permitindo a exteriorização de "incómodos" ou opiniões que queriam expressar, mas para as quais não dispunham de critérios "científicos". Sente-se nessas formas de expressão um certo regozijo por conseguirem por em causa princípios, regras e opiniões que não lhes são do seu agrado e aproveitam para despejar um pouco a bílis negra que os atormenta. Enfim, sempre tem um efeito colagogo, o que não é mau de todo!

Uma legenda, se fazem o favor


Um desafio lançado a quem nos acompanha: coloquem na caixa de comentários a legenda mais adequada à foto.
Começo eu:
"Podes largar que já estás, Seguro"

Fazendo contas no rescaldo

Claro que as eleições eram para o Parlamento Europeu. Claro que a abstenção não permite leituras e conclusões lineares. Mas há ilações objetivas que se podem tirar da comparação entre os resultados das eleições mais próximas que dão bem a ideia do desgaste dos partidos no poder. 
Em 2011 os votos somados de PSD e CDS/PP totalizaram 2.813.069. Em 2014 a coligação destes dois partidos obteve 909.431 votos. 
Dois terços dos que escolheram PSD e CDS em 2011 negaram-lhes, três anos volvidos, o apoio. E ninguém seriamente pensará que foi por causa das propostas destes partidos em relação à Europa. 
Por isso, se se entende mal o júbilo do PS na noite das eleições (ainda que a ressaca logo se tenha feito sentir...), também não se percebe a indisfarçada satisfação da maioria perante tamanho abandono do eleitorado.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Quem com ferro mata...com ferro morre!...

Face aos resultados das europeias, Seguro declarou o governo acabado e propôs-se substituí-lo de imediato. 
Por seu lado, e face aos resultados das europeias, Costa declarou Seguro acabado e propôs-se substituí-lo de imediato. 
Vá lá a gente entender estes socialistas...

Há títulos que são autênticas fotos...

Este, do Público:


segunda-feira, 26 de maio de 2014

"Viver sem paz é um sofrimento"


O futebol e as eleições quase obnubilaram um acontecimento de primeira grandeza, a visita do Papa Francisco a Israel e à Palestina. As mensagens que o Papa tem deixado são, porém, de uma importância fundamental para resolver um conflito que se arrasta desafiando a razão. 
Se há hoje personalidade que pode ajudar pela autoridade feita não de jogos de sombras ou calculismos diplomáticos, mas de prestígio, bondade e exemplo, é, sem qualquer dúvida, Francisco.
Os primeiros sinais parecem indicar que, do lado israelita como por banda das autoridades palestinianas, os apelos têm sido compreendidos e aceites. 
Dia histórico será aquele em que, rendidos à necessidade de terminar com o sofrimentos de tantos, Israel e Palestina resolvam no Vaticano ou onde quer que seja, celebrar o que afinal é a expressão mais autêntica das religiões que os dividem mais do que as disputas territoriais: a coexistência em paz dos povos.
Longa vida, Papa Francisco. Este lugar cada vez mais perigoso em que se converteu o mundo precisa mesmo de um santo vivo.

Não faltaram os avisos...


Os sábios habituais explicam ao povo ignaro que as vitórias de Le Pen e da Frente Nacional em França, do UKIP de Farage em Inglaterra, e do Syriza na Grécia, são fenómenos passageiros que exprimem a particularidade das eleições europeias, polarizando o descontentamento e a desconfiança em relação ao poder europeu. Que será improvável repetirem estes resultados em eleições legislativas internas. Evangelhos da Santa Ignorância. Antes destas eleições, o UKIP tinha já conseguido bons resultados nas locais, em França a Frente Nacional vem subindo a cada sufrágio e o Syriza esteve prestes a vencer as eleições no auge da crise grega.
O extremismo e o populismo deixaram de ser fenómenos políticos minoritários e extravagantes. Anunciam uma alteração profunda nos sistemas partidários internos legitimada eleitoralmente, e, por via dela, uma reforma dos sistemas politico-constitucionais de alguns Estados. O programa político destes e de muitos outros movimentos radicais assim legitimados por esta Europa fora, prenuncia um período nada animador de convulsões internas e na coesão europeia, já de si frágil e submetida a localismos cada vez mais exacerbados.
Muita gente sensata avisou. Continua a avisar. Mas lá, nos palácios de cristal construídos com recurso às mais eficazes técnicas de insonorização respeitando uma das Diretivas comunitárias modelo, parece que nada chega.

Pensamentos politicamente incorretos

A noite eleitoral foi incomum. As projeções perduraram por algum tempo e os resultados só mais tarde confirmaram os sorrisos amarelos e as palmas forçadas das 20 horas. Nas televisões um interessante desfile de imagens a par do lento fluir da notícia, dos comentários dos habituais, dos debates onde por vezes se ouviram tiradas de levar à gargalhada o mais sisudo.

Aqui ao lado, numa rede social mais propícia, à medida das aparições fui legendando o filme com o que me vinha à mente. Partilho aqui o que posso partilhar, os meus pensamentos politicamente mais incorretos, omitindo (sim, que o 4R é uma casa séria!) os que revelariam a riqueza do meu vocabulário:

20 h 15 m - "Terá o PS percebido que a derrota histórica da direita, como diz Assis, corresponde a uma pobre vitória?".

20 h 30 m - "O estertor do BE. Ouvindo Catarina Martins percebe-se que morre de velho. Falta saber se com Marisa morrerá de pé..."

20 h 35 m - "Quando forem divulgados os votos que cabem a cada partido e coligação, então sim, veremos a verdadeira dimensão das vitórias e das derrotas".

20 h 40 m - "Ana Gomes a Presidente da AR, já!" 

21 h 00 m - "João Ferreira confirma-se como o futuro do PCP. Bateriologicamente puro, mantém o discurso da grande vitória da CDU". 

21 h 30 m - "Manuela Ferreira Leite na TVI 24 a creditar a expressão da vitória do PS à ajuda de última da hora dada por José Sócrates...".

21 h 35 m - "Carmelinda Pereira também ganhou. Parece que atingiu o objetivo de não ser eleita como era seu desejo.  Inteligente, não convidou Marinho e Pinto para a sua lista. Mas há que esperar pelos resultados finais, não vá a senhora desiludir-se, como outros nesta noite...".

21 h 45 m - "O poder, mesmo nos momentos mais difíceis, reúne sempre maiores comitivas...".

22 h 00 m - "Afinal o Dr. Seguro rejubila com o que considera uma grande vitória do PS. Outra confirmação da noite. Vitória à dimensão do líder".

22 h 03 m - "Confirma-se uma vitória mais. Carmelinda Pereira não foi mesmo eleita".

22 h 10 m - "Visto. Resta ouvir o que tem a dizer o Dr. António Costa. Imagino a ansiedade dos militantes socialistas ...".

22 h 15 m - "Até Jerónimo entala Seguro anunciando a moção de censura ao governo. Começo a sentir alguma compaixão pelo Tó Zé...".

22 h 30 m - " Proclama o Dr. Seguro que "no PS quando ganham, ganham todos". Apostam comigo que amanhã mesmo haverá quem no PS não aceite os créditos desta vitória?".

22 h 37 m - "Umas contas de cabeça. Ora, abstenção + Votos em branco + Votos nulos = 73 por cento. Mesmo que se descontem 3 por cento de eleitores fantasmas o partido vencedor ganhou com 32 por cento de 30 por cento do eleitorado. Ou seja... "

23 h - Cai o pano. Conclusão (a minha, claro): não aprenderam, não aprendem nada. Eppur si muove...".

domingo, 25 de maio de 2014

A grande vitória: o par de jarras II

Na apresentação da grande vitória, Seguro afirmou que, perante os resultados eleitorais, o país mudou, o Parlamento já não representa a vontade do povo e o PS devia ser governo. 
Em França, Marie Le Pen vem dizendo mais ou menos a mesma coisa. Na lógica de Seguro, com segura legitimidade. 
Fariam um bonito par de jarras!...
    

A grande vitória I

Pelo menos dez vezes Seguro acaba de repetir, perante os seus fieis, que ganhou as eleições e que foi uma grande vitória. A insistência  será para se convencer a si próprio, ou para convencer os correligionários da grandiosidade da vitória? Assim a modos de técnica propagandística, perdão marketing político...

Vazio

O tempo anda muito triste, para o contrariar andei por terras conhecidas e serras desconhecidas. 
A localidade estava vazia de gente, de cor e de calor. Muitas casas ilustravam o estado de saúde dos proprietários e até de muitas almas esquecidas. O vazio instala-se definitivamente no interior. Vê-se ainda gente, pessoas tristes de idade à espera de adormecerem num qualquer paraíso perdido. Andei e entrei num templo. Não estava vazio. Ouvi vozes e conversas que destoavam naquele local. Entrei. O templo tinha qualidade artística. Junto do presbitério estavam um pouco mais de meia dúzia de mulheres. Umas em pé, outras sentadas, algumas em posição lateral, numa cavaqueira que mais parecia uma conversa de café ou, mais adequadamente, uma calhandrice à antiga, falando umas com as outras, entrecruzando os temas mais diversos. Comecei a caminhar pela parte central da nave, mas rapidamente deram conta da presença. Abrandaram um pouco os temas das conversas e olharam-me num ato reflexivo. No entanto, vendo que o meu interesse estava focado em vários quadros, nas belas capelas laterais e nalgumas imagens, regressaram com a mesma intensidade às suas tertúlias. Aproximei-me e ouvi as suas conversas. Sorri. Pensei que, como estava vento e um pouco desconfortável lá fora, se reuniram naquele espaço para poderem conversar à vontade num domingo à tarde. As idades das senhoras estavam em concordância com a idade do espaço envolvente, da localidade e do interior do país. Passei entre elas e subi os dois degraus do presbitério. Nesse momento, uma das senhoras disparou: - Agora vamos rezar. A coscuvilhice acabou e uma ladainha a várias vozes afagou-me as costas e feriu-me os ouvidos. Fiquei naquela posição durante alguns momentos ouvindo as suas rezas, até que uma das senhoras, vendo luz na sacristia, passou à minha frente, sempre a "cantar". Viu uma senhora a entrar e disse : - Ah! És tu! Tens a chave? Dá-ma. Voltou a passar à minha frente, retomando a ladainha. Sorri. Que mais poderia fazer se não sorrir? Ao sair comentei: - Um dia destes, quando desaparecerem estas senhoras, também desaparecerá toda esta envolvência e o próprio templo sentirá o efeito ficando vazio de gente, de almas e de esperança. O mundo, sobretudo o mundo do interior está a ficar cada vez mais vazio. Um vazio que alguns vivos começam a sentir. Eu sinto esse vazio, e dói.

sábado, 24 de maio de 2014

"O Joia"...


O dia prometia algo de interessante, as nuvens é que andavam indecisas, ora escondiam carrancudas o sol, ora abriam janelas para que ele pudesse espreitar a minha liberdade.
Fui até Gouveia. Andei, passeei, espreitei e acabei por ir ao museu Abel Manta. Em boa hora o fiz. Deliciei-me com os quadros de tão grande e expressivo pintor e ainda desfrutei de um ambiente simpático, lúdico e culto no meio de uma pequena cidade do interior onde estavam expostas obras de muitos artistas portugueses. Sem o tempo a martirizar-me, e sem preocupações de maior a desviar-me a atenção e o gosto pela reflexão, e com uma vontade imensa de beber tão criativa expressão artística, passei um bom momento naquele palácio. Aprendi muito. Ao terminar a visita entrei numa pequena sala onde vi um belo quadro intitulado "O Joia", que me fez lembrar de imediato uma personagem da minha terra, o Zé Sancho. Na mesa estavam, entre muitos cartazes e cópias de pinturas, uma descrição do quadro.
Li: "Um homem olha-nos de frente. A cabeça verga com o peso do saco que carrega às costas. Agarra-o com as duas mãos. Na direita, ainda consegue levar um chapéu.
Veste casaco cinzento esburacado e camisa desabotoada. Um cordão faz de cinto, que mal prende as calças rasgadas. Trás nos pés umas velhas botas castanhas.
Atrás dele está uma carroça puxada por um burro.
Mal se veem, no dia cinzento.
Devia estar frio. Que lhe parece?"
Havia muitas parecenças entre o "Joia" e o Zé Sancho. Ambos carregavam sacos, usavam calças velhas, chapéu, e um cordão para as apertar. O Zé Sancho era muito forte, tão forte que metia um saco de farinha debaixo de cada braço e, com a pirisca no canto da boca a arder e a fumegar, subia com uma facilidade surpreendente a inclinada rampa para espanto dos outros trabalhadores que com muita dificuldade transportavam um no lombo. Uma força descomunal. E quando se pretendia testar a sua força era capaz de mostrar que ainda conseguia levar um terceiro às costas. Trabalhava descalço ou usava umas socas de madeira. Nunca largava os cigarros kentucky, um verdadeiro mata-ratos que o pessoal jovem abominava. Quando lhe dávamos cigarros com filtro, ou mais "sofisticados", dizia que aquilo não era tabaco e retirava de imediato o filtro. Não era homem de muitas falas, o que estava correto, pois nele conversar variava na razão inversa da força.
Tornou-se numa figura popular. Um mouro de trabalho que nunca se queixava. Guardava o dia do senhor. Num desses dias, estava no largo do Balcão com os meus amigos, vi aproximar-se o Zé Sancho. Começaram a meter-se com ele, perguntando-lhe se vinha da missa. Respondeu à maneira, um zunzum que não percebi. Não entendi se queria mandar alguém a outro lado. Eu nunca o vi na missa, pensei, mas como poderia ver se, também, não punha lá os cotos?
Para onde vais Zé?
- À fazenda.
- À fazenda?!
- Sim.
- Onde fica? Explicou-me e vi que ainda tinha de andar um bom bocado.
- É longe!
- Não.
- Vais trabalhar na terra ao domingo? Olha que isso é pecado.
- Não vou trabalhar.
- Não vais?
- Não.
- Então, o que é que vais fazer?
- Estrume.
- Estrume?! Como? E o Zé Sancho, na sua forma linguística básica e popular, disse sem rodeios o verbo que impera em muitos meios.
- Oh diabo! Mas por que razão fazes isso?
- Para poupar. Tenho que aproveitar para fazer estrume. Não posso desperdiçar.
- Mas ó Zé, tu consegues aguentar até à fazenda?
- Consigo pois.
- Mas é tão longe!
- Não faz mal. Virou-me as costas, com a pirisca a arder no canto da boca do lado esquerdo, e, no seu andar tipo Charlot com as velhas socas, lá foi pela avenida cumprir o ato ecológico de adubar com a sua natureza a terra que lhe dava de comer. O primeiro ecologista que conheci.
O quadro de Abel Manta teve o condão de me recordar este episódio e uma personagem que me marcou na infância e adolescência. Estou convicto de que se o grande pintor tivesse conhecido o Zé Sancho seria capaz de o registar com a mesma nobreza e elegância como fez em relação ao "O Joia". Afinal, eu também conheci uma joia.

Interrupção da crise...

Não me lembrei que hoje é o dia em que duas equipas espanholas disputam em Lisboa a Taça da Liga dos Campeões. Fui a Baixa fazer umas compras, andava a alguns fins de semana a adiar ter que lá ir de propósito num Sábado. 
Encontrei  um dia completamente fora do normal, da apatia e calmaria e até alguma nostalgia que abunda por aquelas paragens. Encontrei a Baixa povoada de milhares de espanhóis, muita gente nova, muitos miúdos, cheia de cor, o amarelo e o vermelho, o branco e o preto e, também, o azul, com muita música, muita alegria. Reparei em muitas camisolas alusivas a outros países. Por todos os lados, se ouviam canções e vivas antecipadas aos vencedores. Uma festa como há muito tempo não me lembro de ver. Os restaurantes estavam completos, com filas à porta, para satisfação dos empregados que, certamente, não tinham na memória uma coisa assim. 
Na Praça da Figueira montaram um palco para espectáculos de música com um ecrã gigante para transmitir o jogo. Estava carregada de gente, não se via uma clareira. Só pensei, que inveja tanta multidão fará aos políticos que andaram pelas ruas do país toda a semana à procura dos votos. Quais eleições! O futebol é o fenómeno, mobiliza milhões, transporta esperança, festa e sorte, mesmo para os clubes e os adeptos que não vencem.
Reparei no policiamento, muitos polícias informando e vigiando toda esta multidão de pessoas. Reparei, também, na cerveja, um aperitivo de muitos adeptos. Esperemos que não dê para o torto, que não se embebedem e que consigam chegar ao estádio para ver o jogo, fazer a festa e regressarem de boa saúde.
Lisboa fica mais uma vez no mapa mediático e nas rotas do turismo internacional. Também é um dia de festa para Portugal. A crise foi interrompida por um dia, amanhã é dia de eleições...

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Comboio CELTA: interessante exemplo de investimento "estratégico"...

1. Foi esta semana noticia, rapidamente omitida, uma história curiosa que ilustra bem como se continua alegremente a desperdiçar recursos neste encantador País - sempre em nome do interesse público e de estratégias de desenvolvimento que, apesar de perfeitamente obscuras, são proclamadas como verdades indiscutíveis...

2. Pois bem, esta notícia dizia que o comboio Celta, que faz 2 X dia a ligação directa Porto-Vigo, entre Julho de 2013 (altura em que recebeu beneficiações importantes, ditadas por razões de “desenvolvimento estratégico”, muito impulsionado pelas autarquias da região) e Março de 2014, transportou em média 26,9 passageiros por viagem (representando uma taxa de ocupação de 12%) e acumulou prejuízos (apenas operacionais, suponho, não contará os financeiros) de € 1,2 milhões.

3. Não é evidentemente por causa dos prejuízos acumulado pela Comboios de Portugal (ex-CP até 2009) com esta patética exploração do comboio Celta, como tb não é por causa dos prejuízos que a Câmara de Sintra acumula com a manutenção do comboio que liga a cidade até à encantadora praia das Maçãs, nem é por causa de cada uma das rotundas que enchem o País de norte a sul e de leste a oeste...

4. ...nem é por causa de cada uma das muitas outras infra-estruturas que proliferaram neste País nos últimos 15 ou 20 anos, desde AE quase sem tráfego até aos estádios de futebol quase sem utilização ou até à miríade de pavilhões multi-usos e muitas outras obras sumptuárias...

5. ... que o País chegou ao ponto de sobre-endividamento que nos sufoca e impõe níveis de tributação claramente excessivos e desalinhados do nosso estádio de desenvolvimento.

6. O País chegou aonde chegou por causa disso tudo junto, e sobretudo por causa do permanente equívoco em que temos vivido e em que pelos vistos queremos continuar a viver em relação às prioridades da política económica – basta atentar na esmagadora vaga das mensagens de fantasia e promessas de ilusões que se vão ouvindo nesta folclórica e pouco inspirada campanha eleitoral que hoje atinge o seu termo.

7. O infeliz episódio do comboio Celta é exactamente apenas mais um episódio ilustrador do nosso talento para desperdiçar recursos e de contrair encargos para o futuro, indefinidamente, sempre a coberto de excelentes slogans – desenvolvimento regional, solidariedade nacional, estratégia de desenvolvimento, etc, etc.

8. E não esqueçamos que a dívida financeira da desamparada Comboios de Portugal lá teve de ser integrada no perímetro da dívida pública, agravando os indicadores desta, exactamente por não ter receitas que cubram minimamente os seus custos...pudera, tem de levar às costas estes investimentos estratégicos...

A trovoada e as eleições europeias

No fim da campanha para as Europeias, e depois de palavras e mais palavras, comícios, almoços, jantares, arruadas, algum candidato a deputado explicou a importãncia do Parlamento Europeu, o que pretende lá fazer, os seus propósitos e objectivos, o que daí pode resultar para a UE e para Portugal? Para além de aprofundar a Europa (ou afundá-la de vez com tamanha verborreia)?
Referiu algum que o Parlamento Europeu pode ser mais do que um grupo excursionista entre Bruxelas e Estrasburgo, no intervalo de constantes deslocações deputacionais por todo o mundo nas mais esotéricas missões?
Ou que o Parlamento Europeu serve para mais alguma coisa do que traçar directivas sobre o tamanho dos rótulos dos refrigerantes ou sobre o jacto de água nas sanitas, talvez das mais relevantes entre as suas inúmeras e pitorescas preocupações? 
Noutros tempos, quando trovejava, rezava-se a Santa Bárbara para afastar a trovoada para onde não causasse prejuízos. Depois dos raios e coriscos desta campanha, dizem muitos que a abstenção irá ser colossal. Mas eu rezo para que a votação seja maciça. De forma, como na trovoada, a enviá-los para bem longe, tão longe que não chegue cá o prejuízo. 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Teresinha



A Teresinha faz parte dos meninos especiais. Nasceu num dia de primavera, lindo, quente, luminoso e muito cheiroso. 
A menina pintou com cores de alegria o quadro de uma família feliz. O desejo de beijar e acariciar um novo ser que perseguiam há muito surgiu naquele belo e inolvidável dia. 
Sempre que alguém nasce as almas dos mais velhos sentem renascer o maior bem da vida, o amor sem limites. O amor de um poço sem fundo, o amor que apaga qualquer tipo de dor, o amor que, transformado na mais bela cor jamais vista, a cor da felicidade, onde todas as outras cores querem mergulhar, é o maior hino de louvor ao criador. 
Teresinha nasceu. Ao fim de algum tempo a dor da diferença provocou sofrimento e temor sobre o futuro de alguém que também é gente. 
Depois surgiu o sorriso. Um sorriso nunca visto, nada igual aos demais, era algo sedutor, brilhante e confiante, porque mostrava a sua forma de ver, cheirar e amar o mundo como nunca tinha sido observado pelos familiares. 
Sorriso diferente. Sorriso de inocência e de esperança, sorriso próprio de um ser confiante, sorriso que acalenta amor, afasta o temor, apaga a dor e faz pensar que o melhor da vida é mesmo ser diferente...

Barbeiro

Um dia meio estranho. O sol desapareceu e deu lugar a nuvens de maio carregadas de tristeza que depois do almoço se puseram a chorar aos gritos. Um dia estranho para ir à baixa onde me enfiei no barbeiro. Esperei um pouco mais do que é costume, mas deu para ver a arte de usar a navalha nos pelos compridos, encaracolados e despenteados que emergiam de uma face magra, esquálida e castanha escura revelando que a maioria dos dentes já foram à vida, uma vida "dura" sob o sol da vida. Os gestos bem estudados do artista da tesoura e da navalha eram bem visíveis. A forma de colocar a mão, a cabeça descaída, a língua a querer a sair, revelavam cuidados e gosto no que fazia. O operado, deitado com os olhos fechados, gozava com o calor da espuma do sabão e o frio cortante da lâmina a percorrer a sua cara. Tratava-se de alguém que podia bem ser um arrumador de carros profissional. O processo de barbear conseguia ser mais lento do que o cortar do cabelo. Era muito magro e tinha uma maçã de Adão muito saliente. Quando a lâmina chegava àquele sítio até tremia com receio de poder sacá-la com um simples gesto. Mas não, subia delicadamente como se fosse uma prancha de surf a cavalgar uma enorme onda. Só na parte final é que o barbeiro se meteu com ele, certo de que qualquer reação mais intempestiva, no decurso do ato operatório, poderia sangrá-lo. O silêncio da escultura deu lugar a uma conversa mais animada em que a aguardente veio à superfície. - Não, não bebo nada disso. Aqui não entra. E faz o gesto apontando para glote. - Não. Nem pensar. Há muito que não bebo isso. De quando em vez vai um Porto, isso sim, mas nem sempre. Calou-se durante algum tempo, até que rematou, mostrando um sorriso desdentado:- Só sumo de uva prensada, mas negra, só negra. A forma como disse revelou que devia beber bem. A magreza que passeava era a sua sombra, e a colherada do outro barbeiro deu para perceber que comia pouco. - Pois é. Como apenas para sustentar o esqueleto. Não tenho muita fome. Como porque tenho de comer. Claro, nem que seja para absorver os litros de tinto que deveria ingerir. Mas a sua observação, de que o dito deveria ser negro, tinto, fez-me recordar alguém que mereceu o apodo de conselheiro Acácio, e que na sua verborreia, mais típica de um feirante a vender a banha da porca do que a sua sua condição de médico, dizia sempre, vinho sim, vinho faz bem à saúde, mas só do tinto, tinto, repetia com uma surpreendente e arrogante sabedoria que acabava por por os meus cabelos numa raiva a raiar a histeria. Levantou-se sem barba, apenas com um tecido brilhante e acastanhado a tapar a sua caveira em que faltavam pelo menos os incisivos, com o cabelo sujo e descabido para o ambiente de uma barbearia e,na perspetiva de ter de pagar o serviço, adiantou: - Agora é que é o pior! O barbeiro, matreiro e velho, na idade e na experiência, que abanava a bata, limpando-a dos resíduos pilosos, disse: - Qual quê! O cliente enfiou um boné roto e sujo, tapando a miséria dos seus cabelos e tirou do bolso das calças um maço, grosso, de notas de vinte euros, no meio das quais boiavam algumas de dez. - Chiça! O gajo até parecia um americano a sacar das notas. Retirou uma, de vinte, e disse: - Chega? O barbeiro sorriu e nem lhe respondeu. Fez o troco e deu-lhe.
Deve ter ido beber um Porto.

Mais um seguro tóxico

Mais uma vez, agora em Santa Maria da Feira, Antonio José Seguro prometeu, "sob palavra de honra", acabar com a TSU dos pensionistas. Textualmente: "fizemos as contas e quero mais uma vez garantir-vos sob palavra de honra que, uma vez chegados ao Governo, voltaremos a dar aquilo que é um direito dos pensionistas e dos reformados e devolveremos as reformas, acabaremos com a TSU (taxa social única) dos pensionistas".
Mas por que é que Seguro promete sempre acabar com o que não existe (a TSU dos pensionistas), e não promete acabar com o que realmente existe, que é a CES-Contribuição Extraordinária de Solidariedade- ou, na nova versão, Contribuição para a Sustentabilidade da Segurança Social? 
Para, depois, poder dizer que nunca prometeu acabar com a CES? 

terça-feira, 20 de maio de 2014

Entre o direito e o dever...

É uma iniciativa de muito mau gosto. Protestarem nos aeroportos para chamar a atenção dos turistas que nos visitam que os polícias são mal pagos em Portugal e que trabalham desmotivados. Não duvido, acompanhei, aliás, com muita preocupação, as manifestações dos polícias em frente à Assembleia da República. Mas não vale tudo. Somos conhecidos por sermos um país seguro, com baixa criminalidade, uma vantagem competitiva e um ponto muito importante para quem nos procura para fazer umas férias seguras. É uma campanha que dá uma má imagem de Portugal. Um péssimo "cartão de visita". Tenho pena que tenhamos chegado a este estado de coisas: pelos polícias, que prestam um serviço público fundamental, mas também pelo país que merece melhor. Esperemos que este triste episódio não seja muito mediático e não tenha cobertura estrangeira...

Um seguro mais que tóxico!

"Fizemos as contas. Não aumentaremos os impostos".
António José Seguro, sábado, 17 de Maio, no encerramento da Convenção Novo Rumo
Nessa mesmíssima sessão, AJSeguro assumiu 80 compromissos. Entre eles, dois novos impostos, sobre  fundos de investimento e sobre transacções financeiras. 
No mesmo dia e à mesma hora, um retrato Seguro 
(Retirado da edição impressa do DN de hoje, 20 de Maio, página 8, não sendo possível incluir link)

Fé na Europa...ma non troppo.

Exibe-se nas redes sociais o "curriculo" de Francisco Assis como deputado europeu no último mandato. Dizem que o repetente candidato do PS não foi particularmente assíduo nem contribuiu com grande esforço para o trabalho do Parlamento Europeu.
Não sou capaz de avaliar o rendimento de um parlamentar europeu. Que Francisco Assis não terá uma fé tremenda nas instituições da Europa, isso eu compreendo. Eu também não tenho e julgo que por essa Europa fora são cada vez mais os que olham para os órgãos da União como centros institucionalizados de uma aristocracia que não manda na burocracia, antes convenientemente se vê mandada por esta.
Conhecendo os candidatos e os tiques da política interna, atrevo-me a dizer que Assis e os demais candidatos, exceção feita a Carlos Coelho, têm a ambição de regressar a lugares na política deste pequeno mas apetecido retângulo, compatíveis com o (que julgam ser) seu estatuto partidário. 
Bem pago, sem excessiva exigência até porque os apoios ao trabalho parlamentar facilitam as tarefas, muita mobilidade para trabalho político-partidário e exposição mediática q.b., o lugar de deputado europeu é o ideal para quem se vê ou forçado a um exílio partidário ou considera um afastamento tático a melhor das opções de vida...

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Um seguro para incautos: tóxico e com prémio elevado II

Um político seguro de si teria vergonha de apresentar publicamente os compromissos que ontem Seguro assumiu. É que eles, ou não alteram uma vírgula da política que tanto criticou, ou são conceitos vazios, meras palavras sem significado real.
Seguro criticou o roubo praticado pelo governo ao subir os impostos, mas agora não os diminui, limita-se a dizer que não os aumenta. Toma assim posse do roubo.
Seguro criticou a CES, considerou-a mesmo inconstititucional.  Mas agora propõe-se mantê-la, embora diga que a vai anular, usando o vergonhoso sofisma de dizer que acaba com a TSU dos pensionistas, simulando que uma figura não existente significa o mesmo que a CES, que existe mesmo. O que era inconstitucional passa rapidamente a constitucional.
Mas Seguro compromete-se a "lutar por uma nova agenda para a Europa. Qual seja, não o diz, foca-se na “agenda”, termo tão vago que, nele tudo cabendo, acaba por nada caber. E, sobretudo, agenda que nada resolve no curto prazo que possa aliviar os portugueses. Claro que empunhará o facho dos eurobonds, mas aí nem agora o camarada Martin Schulz, Presidente do PE e candidato a Presidente da CE , nem, antes, o camarada Hollande, já o suportam. 
Um compromisso, no entanto, estou certo que é seguro conseguir, essa façanha de “reduzir para metade a taxa de abandono na escolaridade obrigatória. Basta impor à escola a inclusão na perpetuidade e a coisa fica feita. É bem seguro. E bem asseguradas ficam umas ligeiras infracções disciplinares, género violações de colegas, como vem sendo noticiado, e o compromisso fortalece. 

O velho norte e o novo sul.


Esta impressiva imagem sintetiza o crescimento do produto nos vários países e regiões do mundo (fonte indicada na imagem). A sul, quase todas as economias crescem a um ritmo superior a 3%, enquanto a América do Norte e a velha Europa apresentam taxas de crescimento dos produtos internos abaixo, e em muitos casos, muito abaixo deste valor. E pensar que ainda há um par de anos o discurso oficial era o de um diálogo com vista à ajuda do sul pelo norte! Discurso que, por este caminho, tal como o mundo, corre o risco de rapidamente se inverter...

A crise descrita por Zapatero - um testemunho impressionante

"As medidas poderão adoptar, segundo as situações nacionais, a forma de um aumento da despesa pública, de reduções prudentes da pressão fiscal, de uma diminuição das cargas sociais e de apoio a determinadas categorias de empresas e de ajudas directas às famílias, em particular as mais vulneráveis." - Plano Europeu de Recuperação Económica,Dezembro 2008 (in EL Dilema, pág. 162)

Tenho estado a ler, interessadíssima, o livro El Dilema, de Jose Luis Zapatero, um emocionante - e muitas vezes emocionado - relato dos anos quentes da crise, desde 2008 a 2011. Aí se conta, na 1ª pessoa, é certo, mas de forma muito documentada, todo um processo político que começou com a aparência de uma serenidade firme, todos unidos a governar esta região europeia que se auto proclamava líder do futuro, depois o modo como foram recebendo e reagindo com pouca preocupação ao descalabro financeiro do EUA, mesmo a Grécia, já a apresentar pedidos de socorro alarmantes, a merecer apenas um apagado lugar na lista da prioridades, depois a aceleração, a confusão, as entrelinhas, o pânico e a mudança brutal de discurso, mas não só de discurso, as baterias apontadas para novos "culpados", as taxas de juro enlouquecidas, os números que antes eram tão elogiados e agora recebidos de cenho cerrado, enfim, uma agonia aquelas reuniões europeias sucessivas, com declarações ambíguas e mortíferas, um garrote a apertar-se cada vez mais. É assim o livro, deixa-nos sem fólego, aí a meio já somos nós, os leitores, a angustiarmo-nos antes de cada reunião, a desesperar com aquela conversa, a não perceber nada a não ser que tudo pode acontecer sem que se perceba bem porquê ou como evitá-lo.
Haverá certamente muitas coisas que Zapatero embrulha na sua própria visão das coisas mas há muitas outras, talvez as principais, em que nos deixa campo largo para a nossa própria avaliação. É um livro de suspense apesar de já sabermos o fim daquele episódio temporal, até 2011, sabemos até muito depois disso incluindo que a Espanha conseguiu à justa evitar o resgate que ele nunca imaginou possível, mas que cada dia era mais evidente. Conta até como houve três insistências diferentes para que formalizasse o pedido, sempre em alturas em que ele suspirara de alívio pensando que tinha esconjurado o perigo. Conta também que os testes de stress aos bancos espanhóis, efectuados a todo o sistema quando outros países, como a Alemanha e a França, se recusaram a aceitar tal amplitude, deram em Julho de 2011 que apenas seriam precisos 1564 milhões de euros para acorrer a cinco bancos, que o próprio Banco de Espanha considerou que nem isso seria necessário, que essas auditorias foram confirmadas e reconfirmadas mas que, em Maio de 2012, veio a determinar-se que afinal eram necessários 60 mil milhões para acudir ao sistema financeiro. Diz Zapatero que esse é um dos grandes mistérios, entre muitas outras perplexidades, de todo este processo e, ao longo do livro, somos nós que confirmamos tais espantos, com a certeza de que muito se dirá mas pouco se saberá como, de facto, foi possível este terramoto e se a reação a ele foi um remendo mal amanhado ou se chegará a lançar as bases de uma sociedade mais justa e equilibrada, como temos o direito de ambicionar.

domingo, 18 de maio de 2014

Um seguro para incautos: tóxico e com prémio elevado

Seguro não faz promessas, mas diz que assume compromissos, oitenta no total. Deu agora 15 a conhecer, não fosse a publicitação simultânea de todos causar forte indigestão. 
Um compromisso é não aumentar a carga fiscal. Creio tratar-se do cúmulo da hipocrisia. É que, se o Partido Socialista sempre verberou veementemente o colossal aumento de impostos levado a cabo pelo actual governo, considerando-o injustificado e até um "roubo", agora assume o "roubo" por inteiro, já que foi feito, feito fica, não se restitui, não se mexe. E o que era injustificado justificado se torna, agora que Seguro pensa ir gerir o despojo. 
Compromisso pitoresco, para não chamar vergonhoso, é também aquele em que assume acabar com a TSU dos pensionistas. Isto é, assume acabar com um nada, pelo simples facto de tal figura nem sequer existir. Repare-se que Seguro não diz acabar com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade ou, na versão futura, Contribuição de Sustentabilidade das Pensões, que tanto criticou e até achava, e bem, inconstitucional. Mas, num passe digno de filibusteiro, Seguro assume acabar com o que não existe, mantendo uma CES que existe e tanto criticou. 
Enfim, um seguro para incautos. Tóxico, altamente tóxico e com prémio elevado. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

PIB no 1º trimestre de 2014: nem "excepção" nem "sinal de alarme" - um SINAL, apenas, mas um SINAL...

1. Um dos mais conhecidos jornais “on-line” questionava-se ontem quanto à interpretação da estimativa rápida divulgada pelo INE para o PIB do 1º trimestre/2014: tratar-se-ia de uma “excepção”, como terá sido a interpretação do Governo, ou antes um “sinal de alarme” como sugeriram sectores opostos?

2. A 1ª estimativa rápida do INE para o PIB do 1º trimestre apontou ontem, como se sabe, para uma queda, em cadeia (1º trim de 2014/4º trim 2013) de 0,7% e para uma subida, em termos homólogos (1ºtrim 2014/1º trim 2013), de 1,2%...

3. ...sendo que a queda em cadeia interrompe 3 subidas sucessivas, desde o 2º trimestre de 2013, e que a subida em termos homólogos, é a segunda positiva desde o último trimestre de 2009 (a primeira foi exactamente no 4º trim/2013)...

4. O que se poderá dizer destes números que ficam aquém do que apontavam previsões de entidades independentes? A primeira conclusão é de que não foram produto apenas de uma evolução menos favorável das exportações no 1º trimestre, ditada em especial pela suspensão temporária da Refinaria de Sines como foi sugerido por fonte governamental...

5. ...esse factor terá certamente pesado, mas não se pode esquecer o contributo do forte incremento das importações de bens, a que já aqui fizemos referência, arrastado pela recuperação da procura interna (consumo+investimento)...

6. ...não deixando de ser verdade que, se excluirmos os combustíveis na balança de bens, as exportações teriam crescido 5% no 1º trimestre de 2014 (em vez dos 1,7% globais), o que é certo é que as importações cresceram bem mais, concretamente 8,1%.

7. Mas também não se justifica considerar este resultado como um “sinal de alarme”: apesar do forte incremento das importações de bens, tudo indica que em termos de contas com o exterior se irá manter em 2014 um padrão positivo - talvez não tão positivo como os de 2013, mas ainda bem positivo, não justificando alarme...

8. Assim, este resultado deve ser tomado, em nossa opinião, como um SINAL: o SINAL de que temos de evitar derrapagens, sobretudo na despesa pública, que façam acelerar ainda mais a procura interna, ao ponto de poder vir a inverter de novo o sinal positivo das contas com o exterior...

9. Nesta óptica, não deixa de ser paradoxal que os que opinam “sinal de alarme” sejam exactamente os mesmos que advogam carregar mais e mais no acelerador da despesa pública, que clamam a toda a hora contra a dita austeridade...

terça-feira, 13 de maio de 2014

Consultório político-sentimental!...

Doutor, não sei o que se passa comigo. Tenho amigos da esquerda muito esquerda, da esquerda, do centro e da direita, comunistas, socialistas, sociais-democratas, centristas, liberais, neoliberais e até anarcas,  penso eu. Quase todos crticam o governo, mas ainda há muitos que o defendem e elogiam. E aqui começa a minha angústia. 
É que, quando ouço os que falam mal do governo e criticam o Passos, salto logo a defender o governo e a desculpar o Passos. Mas quando ouço os outros que elogiam o governo e louvam os passos do Passos, desato logo a desancar no governo e a criticar o Passos. 
É grave, doutor? O que devo fazer?

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quem muito fala pouco acerta.

Abro a televisão e no primeiro canal está o Seguro, passo ao segundo e aparece o Jerónimo, ligo ao terceiro e deparo com o Semedo, rapidamente e em força vou para o quarto e aparece-me a Catarina , fujo para o quinto e apresenta-se-me o Passos, volto ao primeiro e lá está o Arménio, bato com a porta e aparece-me o Portas, tento um novo canal e vejo a Apolónia a entrar-me em casa sem pedir licença... 
Das oito da manhã de um dia às oito da manhã do dia seguinte. Todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todo no ano, todos os anos!...
Falam, falam, sem nada terem para dizer. Mas falam e ininterruptamente continuam a falar. Desconfio que nasceram exclusivamente para falar. Sòzinhos.
Quem muito fala pouco aprende e menos acerta, diz o provérbio. Foi optimista o autor!... É que nenhum acerta seja o que for. A não ser que, pelo cumprimento da lei das probabilidades, tantas dizem que lá acabam por acertar uma. De quando em vez, por mero acaso, e sem saber!... 

domingo, 11 de maio de 2014

"Passado"...


Os domingos permitem fugir às rotinas e aos compromissos. Cada vez mais uso e abuso dos domingos fugindo da depressão típica que costuma atingir muitos da parte da tarde. Depressão por depressão já chega a que a semana frequentemente me oferece. 
De manhã vi um pouco de televisão. Saltitei canais e deparei-me com um reportagem sobre Nicolas Winton, que, em 1939, teve de alterar as suas férias a pedido de um amigo. Acabou por ir até à Checoslováquia. Conseguiu, após muitos contactos, retirar 669 crianças salvando-as das garras nazis. O comboio que deveria partir no dia 1 de setembro não saiu do país, pois foi o dia da declaração de guerra. Nunca se soube o que lhes aconteceu.
Um herói? Sim, um herói desconhecido. Só ao fim de cinquenta anos a mulher descobriu fotografias, telegramas e outros documentos sobre este período da sua vida. O jornalista, ao interrogá-lo, perguntou por que razão manteve segredo deste gesto humanitário. Winton, que ainda é vivo, e já ultrapassou os cem anos, respondeu: - Eu nunca mantive segredo nenhum, nunca ninguém me perguntou! Deliciosa tirada a revelar a sua personalidade, simples, mais do que humana, quase que me apetecia dizer, verdadeiramente divina. Fiquei magnetizado pela sua maneira de ser e registei várias passagens, entre as quais a seguinte: - Falamos demasiado do passado, o que interessa é o presente e o futuro. Sorri. Compreendi o seu alcance.
Durante a viagem não me saiu da cabeça a entrevista de Winton. Nem a serra de Montemuro, nem as belezas urbanas, paisagísticas e humanas conseguiram apagar o som e as sensações do seu pensamento. 
Tantas voltas dou que acabo por ir onde sempre quis. Encontro coisas sem premeditação. Elas aparecem sem dar conta. Vi a tabuleta, Mosteiro de Paços de Sousa, e embiquei na sua direção. Lembrei-me de Egas Moniz. Sabia que estava naquele local. Ao chegar senti uma certa angústia, não por causa da tranquilidade e dos cuidados do local e do próprio mosteiro. Fiquei com a sensação de que estaria fechado, aliás é muito comum esbarrar em monumentos cerrados a sete chaves. Neste caso concreto, "Rota do Românico", vi dezenas e dezenas de placas a anunciar uma zona e um património que vale a pena ver. Só tenho pena de muitos monumentos não serem passíveis de fruição por quem gosta de beber cultura e a história de um povo. No entanto, na torre, um diligente e muito simpático funcionário, explicou-me que tinha muito gosto em mostrar-me o túmulo e o interior da igreja do mosteiro, mas, infelizmente, não tinha a chave. - O padre não a deixa. Para poder entrar no templo é preciso pedir a chave ao pároco, mas não sabe se nesse dia estará ou não disposto a isso. Pela conversa fiquei sem dúvidas sobre o dito "dono" ou zelador da igreja. Abstenho-me de escrever o nome que lhe chamei. No entanto, o culto e simpático funcionário mostrou-me, virtualmente, tudo sobre o mosteiro e o túmulo de Egas Moniz. Afinal são dois túmulos e a forma como descreveu a "linguagem" das pedras foi extraordinariamente rica. Recordou que os monges beneditinos consideravam o túmulo exagerado, "próprio de um gigante". - Gigante? Filho de gigante... - Gigante é! Riu-se, porque já sabia que era de Coimbra, onde está o túmulo do Afonso Henriques. Depois, conversámos sobre as "lendas", ou não, da fundação da nacionalidade e a ida de Egas Moniz com a família a Toledo, que está tão bem representada no seu túmulo, assim como a saída da sua boca, no último suspiro, de uma criança. Enfim, não dei por perdido o dia e sobretudo por "ter falado no passado". Não falei demais, tentei ver o presente com base num passado que me foi recusado ver. Neste caso, ao contrário do que disse Winton, "falamos demasiado do passado, o que interessa é o presente e o futuro", penso que o humanista concordaria plenamente, é preciso ver o passado para poder compreender o presente, mas quando este nos é negado...

Dedos nas feridas

Na sua coluna habitual no caderno de economia do ´Expresso´, a Sr.a Dr.a Manuela Ferreira Leite interroga-se sobre o facto de não se arranjar interessado em ocupar aquele que outrora era considerado um dos lugares mais prestigiados da função pública e é hoje um dos melhores remunerados de entre os cargos superiores públicos: o de dirigente máximo da administração tributária.
De entre as razões que a Dr.a Manuela enuncia, há uma com que concordo de pleno, ainda que dela faça uma interpretação própria. Com efeito, o desinteresse pelo acesso aos mais altos cargos da Administração Pública é uma consequência da atitude política dos últimos tempos que, deliberadamente ou não, degradou fortemente a imagem dos funcionários públicos a todos os níveis, incluindo os dirigentes.
Dirão alguns que o ajustamento em curso, nas suas fases mais violentas, provocou danos colaterais e sempre teria de os provocar. O desprestígio social e a desvalorização da função pública é um deles. Pois eu tenho dúvidas sobre a inevitabilidade, e não penso que as medidas de redução de efetivos e dos rendimentos dos que se manterão nos quadros das entidades públicas tenham necessariamente de ser justificadas por uma atitude política que, por ação e omissão, criou na opinião pública a ideia de que os funcionários são privilegiados, improdutivos e até responsáveis pelo estado a que isto chegou...
O dano não é, pois, colateral. É um dano direto por não se ter feito o discurso inverso, mas sobretudo por não se ter valorizado o esforço feito pelos trabalhadores das Administrações Públicas. O preço está aí, figurado na deserção dos melhores e nas dificuldades de recrutamento de quem se lhes substitua.
Atrevo-me a uma sugestão. No guião da reforma do Estado que se  abra de um tópico mais, devidamente calendarizado: reabilitação dos funcionários públicos. E não, não basta prometer-lhes - muito menos na atual conjuntura pré-eleitoral - a reposição de rendimentos perdidos. Será melhor prometer a recuperação do prestígio e do orgulho que se atiraram para as ruas da amargura. 
Assim, talvez daqui a uns anos seja possível voltar a encontrar com facilidade algum dos muitos capazes de se desempenharem do cargo de diretor geral da administração tributária,  disposto e  estimulado a servir um Estado que não o rebaixe.

"A política é a arte de simular e dissimular"

Guião da conquista do poder: “Fala sempre com um ar de sinceridade. Faz crer que cada frase saída da tua boca vem directamente do coração e que a tua única preocupação é o bem comum”, a ler de Celso Filipe, publicado no Jornal de Negócios. 
Estamos como estamos, o divórcio entre o eleitorado e o poder político é cada vez maior, é fácil de perceber porquê. Desmantelar o “porquê” é a parte difícil.

Quer compreender o que significa a saída limpa do programa de ajustamento económico e financeiro que Pedro Passos Coelho anunciou no domingo? E como foi possível ao primeiro ministro metamorfosear o aumento de impostos constante no DEO Documento de Estratégia Orçamental numa redistribuição de sacrifícios?
A resposta está numa reportagem publicada na última edição da revista Sábado sobre o dia a dia de Paulo Portas. O jornalista Vítor Matos relata o encontro que teve com o vice primeiro ministro no dia 18 de Abril no Hotel da Lapa. Em cima da mesa Paulo Portas tem um livro “Les Procès Fouquet” sobre o processo que levou à prisão perpétua de Nicolas Fouquet um fidalgo francês que foi protegido do cardeal Giullio Mazzarino e que lhe sucedeu na gestão das Finanças do rei Luís XIV. Portas conta que pertence a Mazzarino um dos seus aforismos preferidos “A política é a arte de simular e dissimular”. O pensamento de Mazzarino que faz as delícias de Paulo Portas descodifica o essencial do que se passou na última semana.
Pedro Passos Coelho simulou uma redistribuição de sacrifícios para dissimular um aumento de impostos. O primeiro ministro simulou a saída limpa como uma decisão certa resultante do facto de o País ter recuperado a sua credibilidade mas dissimulou o facto de Portugal continuar sob vigilância dos credores até pagar o essencial das dívidas.
António José Seguro simula que desconhecia que os compromissos de Portugal coma troika se estendiam além do programa de ajuda, já a pensar no dia em que poderá ser primeiro ministro. ”O PS sempre desejou que Portugal regressasse a mercados sem necessidade de ajuda financeira mas é bom lembrar que a taxa de juro não está garantida, é necessário prudência e não entrar em triunfalismos” Uma simulação do líder do PS que dissimula a sua dificuldade em encontrar argumentos para criticar esta saída limpa.
O Presidente da República confrontado com o anúncio da saída limpa simula ironia. “O que mais me vem à memória no dia de hoje são as afirmações peremptórias de agentes políticos comentadores e analistas nacionais e estrangeiros ainda há menos de seis meses, de que Portugal não conseguiria evitar um segundo resgate. O que dizem agora’” questiona Aníbal Cavaco Silva num texto publicado na sua página oficial do Facebook.  O chefe do Estado dissimula, assim, o que escreveu em Março deste ano no Roteiros VIII. “Em termos gerais, para um país que conclua com sucesso um programa de assistência financeira é possível que um programa cautelar seja preferível a uma saída dita à “irlandesa”, até porque uma saída limpa deixaria o País inteiramente à mercê da volatilidade e das contingências típicas dos mercados”.
Paulo Portas, que a “Sábado” classifica como mestre destas astúcias, claro que não podia desperdiçar esta sua destreza. Comentando o final da 12ª avaliação da troika, o vice primeiro ministro simulou uma recuperação da soberania. “ Fecha-se uma página, que tenho definido como protectorado. Significa ainda que Portugal fez o caminho muito importante para a recuperação da sua autonomia financeira e dá sentido útil aos sacrifícios que a sociedade portuguesa como um todo tem feito para tratar de um bem comum maior: Portugal enquanto Estado e como nação”. Pelo caminho, Paulo Portas dissimulou o aumento de impostos, caminho político do qual sempre discordou.
A simulação de um Portugal novo começou agora e dissimula o que realmente está em jogo. Fazer parecer real a saída limpa ou apostar em sujar esta limpeza, consoante a posição em que se está disfarça aquilo que realmente importa: as eleições legislativas de 2015. Não é por acaso que Pedro Passos Coelho diz que “o dia 17 de Maio ficará na história como um dia de homenagem a todos os portugueses” e que António José Seguro avisa que o programa acaba mas os sacrifícios continuam.
Afinal, cada um deles e todos os outros não fazem mais do que seguir o sábio conselho de Mazzarino: “Fala sempre com um ar de sinceridade. Faz crer que cada frase saída da tua boca vem directamente do coração e que a tua única preocupação é o bem comum”. O poder conquista-se assim.

Pensões - notas breves

A confusão e a desinformação não são boas conselheiras. É o que se tem passado com o tema da sustentabilidade financeira dos sistemas de pensões.
Em primeiro lugar, fala-se de sustentabilidade sem precisar efectivamente do que se trata. A informação disponível é incompleta, complexa e opaca. Sem apresentar um diagnóstico completo e transparente não é possível conhecer qual é a dimensão dos desequilíbrios financeiros futuros de ambos os sistemas – Segurança Social e Caixa Geral de Aposentações. Conhecer a dimensão do problema implica assumir projecções para as variáveis críticas destes sistemas – demográficas e económicas – trabalho que exige consistência e rigor para evitar a manipulação de resultados com o objectivo de melhorar temporariamente as perspectivas de sustentabilidade. A consequência desta prática é adiar decisões políticas e deixar o país no desconhecimentosobre a real dimensão do problema.
Não se conhecendo a real dimensão do problema não será possível estudar um mix de soluções possíveis, adequadas e exequíveis, tendo em conta que o problema é composto por responsabilidades com pensões em pagamento e responsabilidades com pensões em formação. Sem contas, não é possível tomar medidas fundamentadas.
Em segundo lugar, são anunciadas e implementadas medidas sem que se conheça qual o seu impacto na melhoria da sustentabilidade financeira dos sistemas de pensões. Recentemente, o Documento de Estratégia Orçamental apresenta um conjunto de medidas “no sentido de caminhar para a reforma do sistema de pensões públicas e garantir a sua sustentabilidade” e acrescenta que “deverão permitir evitar o agravamento da situação, bem como promover o início do processo de amortização da dívida implícita do sistema”.  
Há dias foi a vez do ministro Paulo Portas afirmar que se aproxima a hora de proceder à reforma da segurança social através da introdução do “plafonamento”, uma reforma que permitirá uma sustentabilidade acrescida do sistema de pensões a longo prazo. Para já não falar do aumento da idade legal de reforma para os 66 anos a partir de 2014, medida tomada em Dezembro do ano passado a bem da sustentabilidade. Quanto valem todas estas medidas?
Em terceiro lugar, é necessária uma solução duradoura que permita equilibrar no médio e longo prazo o sistema de pensões. Uma reforma implica que se integre no processo elevada capacidade técnica e várias sensibilidades sociais e políticas. Sem competência técnica e consenso social e político não haverá reforma.
Nada pode ser pior para uma sociedade do que a perda de esperança e a falta de confiança em si mesma e no Estado. A incerteza sobre as pensões tomou conta das actuais gerações de pensionistas e das gerações no activo.
Vivemos num clima de deterioração do capital de confiança nos sistemas de pensões. Está esgotado o caminho das medidas paramétricas, que sem prejuízo da sua importância vão iludindo a (in) sustentabilidade financeira e agravando a iniquidade entre gerações. Sem estabilidade, não haverá confiança...

sexta-feira, 9 de maio de 2014

"Primavera"...

Primavera é o título de um belo quadro que adquiri há muitos anos. Mais tarde ofereci-o a uma filha. Hoje, chamaram-me a atenção. - É muito belo! - O quê? Respondi. - Aquele quadro. - Pois é. Muito belo, mesmo. Tem uma história.
Há muitos anos, na altura do Natal, pedi a uma senhora, que costumava fazer limpezas, se não se importava de ir a um pinhal meu cortar um pequeno pinheiro, jeitoso, para fazer a árvore do Natal. Ela sabia o local, não era muito longe. Respondeu-me que sim. Passados dois ou três dias apareceu com um delicado e harmonioso exemplar. Felicitei-a pelo gosto, o que me surpreendeu sobremaneira, dado a sua falta de jeito e alguma brusquidão. O pinheiro foi alvo de atenções e enfeitado à maneira. O pessoal ficou satisfeito e orgulhoso da árvore de Natal, talvez a mais bela que alguma vez entrou em casa. 
O Natal passou e o novo ano nasceu normalmente, sem grandes dores. Passadas algumas semanas, já o sol aquecia com volúpia os corpos e as mentes dos mais carenciados, a senhora surgiu-me em casa, muito nervosa, dizendo que tinha sido notificada para ir à GNR. Estranho. - O que é que aconteceu? Não foi difícil saber a causa de tão inusitada convocatória. Nas terras pequenas sabe-se tudo, mesmo antes do seu tempo. Foi acusada de ter furtado o pinheiro. Afinal, talvez para não se deslocar ao meu pinhal, optou por arranjar um nas proximidades da sua casa. Viram-na e denunciaram-na ao dono, o qual, por sua vez, foi à GNR participar o ocorrido. Fiquei incomodado pelo facto, mas como o pedido de indemnização poderia ser avultado para as suas posses, senti que tinha a responsabilidade de arcar com as consequências. Se não tivesse feito o pedido, a taralhoca não teria feito o que fez. No dia aprazado, sem estar notificado, também compareci no posto, onde já se encontrava o queixoso, com tiques de demandante, a taralhoca responsável pelo situação e o militar que, num fastidioso interrogatório, ia batendo as teclas da velha máquina de escrever, mas apenas com o indicador da mão direita. Pelo andar do matraquilhar as coisas iriam levar muito tempo. Quando chegou à matéria de prejuízos, virou-se para o proprietário e perguntou-lhe o valor. O demandante disse uma cifra avultada, atribuindo ao pequeno pinheiro qualidades e uma raridade botânica perfeitamente ridículas. O militar, que tinha o dedo indicador no ar, ficou de cara à banda. Repetiu a pergunta duas ou três vezes para ter a certeza que tinha ouvido bem, mas o dono, cara sisuda, confirmou. 
Há certas situações e comportamentos que não consigo compreender. Face ao pedido, algo desmesurado para o pinheiro em causa, reagi da melhor maneira. Saquei de um cheque e comecei a preenchê-lo com a cifra indicada, pronto para o entregar ao proprietário em nome da acusada. Ficaram todos surpreendidos com o facto de ter aceitado sem discussão o dinheiro solicitado. A taralhoca ficou de boca aberta, até me pareceu que abriu as pernas como a querer equilibrar-se, e o militar parecia que tinha sofrido uma espécie de paralisia e gaguez, sempre com o indicador da mão direita no ar. Pobre dedo, não sabia qual a tecla a martelar. O queixoso de maus fígados avermelhou-se e encolheu-se perante a minha reação. - Aqui tem o cheque e peço desculpa pelo incómodo provocado pela senhora. Olhou-me, gaguejou, disse qualquer coisa, não foi muito preciso, mas desistiu da queixa. O militar suspirou de alívio e o indicador da mão direita finalmente acabou por descansar. Já merecia. A senhora, a taralhoca, suspirou. Eu recolhi o cheque, dei os bons dias e fui-me embora. Ao final da tarde, de regresso a Coimbra, passei por uma galeria de arte, onde estavam alguns quadros do Monsenhor Nunes Pereira. Olhei para a "primavera", tão bela. Preço? O mesmo que o dono do tal abeto raro e "extraordinariamente valioso" queria. Tirei o cheque do bolso e adquiri a bela obra de arte. 
Se não fosse este episódio não teria a oportunidade de saborear a arte de um artista excecional. A árvore do Natal foi a mãe da "Primavera". Acabei por o ofertar à primavera de uma vida...

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Missão cumprida, muito bem; euforia independentista, nada bem...

1. As declarações de responsáveis políticos a propósito da iminente conclusão do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro e da chamada “saída limpa” ou “à irlandesa” tiveram uma parte de bom senso e outra parte que me pareceu menos feliz.

2. Pareceu-me bem a parte em que foi salientada a ideia de Missão Cumprida bem como o crédito por esse cumprimento reconhecido ao Povo Português, no seu todo, embora com pena de que não tivesse havido uma palavra muito especial para os muitos milhares de desempregados e para os muitos milhares de emigrantes (muitos deles tb desempregados no País)...

3. ...desempregados e emigrantes que foram, na minha análise, as principais vítimas do duro processo de ajustamento que sucessivos anos de desvarios de política acabaram por impor ao País, de forma irrecusável – um processo de ajustamento apesar de tudo controlado, cuja única alternativa seria, certamente, um ajustamento bem mais duro, ditado fundamentalmente pelas condições do mercado financeiro.

4. Noutro registo, pareceu-me de mau gosto a ênfase na ideia de reconquista da “independência financeira”, de autonomia na decisão das questões financeiras: em 1º lugar por não corresponder à situação real do País e, em 2º lugar, pela má experiência do passado com semelhantes triunfalismos...

5. Quanto ao 1º ponto, a situação de vigilância reforçada a que vamos ficar sujeitos durante bastantes anos, enquanto devedores a instâncias oficiais, FMI e União Europeia (recordo que só ao FMI ficamos a dever o equivalente a mais de 2.200% do valor da nossa quota no Fundo), acrescida das obrigações inerentes ao cumprimento do chamado Tratado Orçamental, dificilmente se compaginam com um real conceito de “independência financeira”...

6. E relativamente ao 2º, basta lembrar as péssimas consequências de estados de euforia como aquele que acompanhou a adesão ao Euro, em 1998/9, (oficialmente) convictos de que tínhamos conquistado o direito a uma prosperidade sem limites e sem esforço...o único esforço seria o de gastar, gastar sempre mais e sem preocupação quanto ao futuro...

7. Uma nota de mau gosto, que conseguiu no entanto ser excedida pelo ousado desconchavo das declarações que este mesmo episódio mereceu ao principal partido da oposição...

terça-feira, 6 de maio de 2014

Alternativa segura? Nem com um milhão de lanternas!...

Ouvi há pouco um excerto de uma entrevista à SIC em que António José Seguro, interrogado se iria baixar impostos no caso de ser eleito, afirmou e reafirmou que apenas se comprometia a não aumentar a carga fiscal. 
Talvez ninguém mais do que Seguro e os seus brilhantes acólitos criticaram o "roubo" descarado que o governo fazia, através de impostos de todas as naturezas, através da CES, e recorrendo a todas as "manigâncias" possíveis que pudessem retirar uma parte dos salários e das pensões aos portugueses.
Ainda há dois dias, Seguro criticou violentamente  o governo pelo injustificado aumento do IVA e da TSU. 
Pois, agora, aquilo que era condenável passou a ser tão virtuoso que Seguro nem pensa em mexer-lhe. O roubo é para ficar, agora que Seguro está a pensar em ser ele a meter-lhe a mão, quer dizer, a geri-lo.
Há 2300 anos, deambulava Diógenes pela ruas de Atenas e Corinto com uma lamparina na mão a ver se encontrava um homem honesto. Poderia bem fazê-lo agora em Portugal, à procura de alternativas políticas sérias e honestas. Estou bem seguro de que não encontrava. Nem, seguramente, com um milhão de lanternas. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Saída limpa...e o tempo das raposas

Ainda na semana passada se multiplicavam os debates sobre a "saída limpa" ou "programa cautelar", com uma criatividade de oca argumentação verdadeiramente assinalável. Uma forma de encher chouriços na programação das rádios e televisões e nas páginas dos jornais. 
Como que por encanto, desde ontem que só ouço que "saída limpa" era coisa óbvia, evidente, só já não tinha entendido quem era burro, não tinha nada que saber. Porque assim o determinava a Europa, que não queria sarilhos antes das eleições europeias. Porque assim o ordenava a Troyca, como consagração das medidas que preconizara. E porque era isso que convinha ao Governo, para justificar o êxito da sua política. 
O que era, há dois dias, assunto de enorme complexidade e objecto de profundíssima reflexão, tornou-se assim, do pé para a mão, coisa que nem merecia qualquer discussão.
O que me faz lembrar a velha fábula de Esopo, retomada por La Fontaine: estão verdes...não prestam...  
O tempo está para as raposas matreiras, sempre boas a enganar papalvos. 

O melhor Seguro da situação...

Não foi só uma figura  fraca aquela que ontem o líder da oposição fez ao comentar o anúncio das condições de saída de Portugal do Programa de Ajustamento, foi a confirmação de que Seguro é o que melhor convém à situação. Bastava-lhe que viesse congratular-se pelo anúncio do PM até porque foi por este desfecho que se bateu nos últimos meses. Ninguém lhe exigiria mais, nem os seus críticos dentro do PS. Mas não resistiu a um estilo de oposição que prenuncia o pior, caso algum dia António José venha a ter responsabilidades na condução do País, a oposição sem fundamentos, pelo tudo e pelo nada. 
A reação de Seguro, num estilo que se tornou comum nos porta-vozes do PS, foi pouco menos que risível. Primeiro quanto à razão da sua desconfiança sobre o que o PM considera um êxito. Se bem percebi, Seguro desconfia porque o futuro aos mercados pertence, por isso não há garantias de limpeza total na saída. Fica clara a fé do líder do maior partido da oposição nas capacidades do País. Mas o que mais me chamou a atenção foi a análise dos porquês da saída sem apoio em programa cautelar. Para António José isso só foi possível porque existem excedentes de liquidez dos investidores que só por isso se satisfazem com uma remuneração relativamente baixa do dinheiro que emprestam. De carrascos, os credores - agora no estatuto menos estigmatizante de "investidores" - passaram num ápice a autores de liberalidades extremas. Um novo Cícero, este Seguro: largitionem fundum non habere...
Encimar o bolo com a cereja, somente se Seguro tivesse sugerido que a saída do programa, contra o seu vaticínio, apenas teria sido possível porque os juros da dívida soberana portuguesa baixaram nos últimos tempos. E não é que não o sugeriu, disse-o mesmo? Vão ver que da próxima vez Seguro descobre que o resgate da República aconteceu porque os juros da dívida pública tinham subido!

"Facas cruzadas"...


Não sou dado a superstições, embora em certas ocasiões dou conta de que estou a atuar de uma forma irracional, meio estereotipada. 
Recordo muitas dessas iniciativas que me foram transmitidas com tal solenidade a ponto de ter que acreditar nelas e na sua importância. Foram tantas que sou incapaz de as elencar com propriedade. Nalgumas circunstâncias cheguei mesmo a ser vítima delas. A minha avó e tias, tão ou mais velhas do que ela, foram mestras, transmitindo ideias e superstições que vinham de outros tempos e que, talvez alarmadas com a ameaça de um fim anunciado, começaram a reviver com intensidade. 
A minha avó abria a boca e fazia sistematicamente o sinal da cruz para evitar que o demónio entrasse. Era o que me dizia. Não deixava que abrisse o chapéu em casa, não permitia que lançasse sal na mesa e dizia que dava azar passar debaixo de umas escadas. Benzia-se ao toque das trindades e ensinou-me formas de esconjurar os maus espíritos e o diabo. Tudo servia para me instruir em práticas ancestrais. Mas havia uma que a incomodava bastante, era cruzar as facas. Ficava, não digo possessa, mas incomodava-se bastante e desfazia de imediato tamanho sacrilégio. Perguntava-lhe as razões porque não podia cruzar as facas, nunca me soube responder cabalmente, ficava irritada, coisa que não era muito habitual. Pronto, pensei, esta gente lembra-se de certas coisas e depois é o que se vê. O pior é que não era só a minha avó. Todos, lá em casa, ficavam meio possessos sempre que se cruzavam as facas, até o meu avô, que parecia nunca ligar a estas coisas, também dizia que não se podia fazer isso, e não era só ele, outros familiares, digamos mais liberais e de espírito aberto, diziam a mesma coisa. O que é certo é que eu, com o tempo, sempre que dava conta que as facas estavam cruzadas, desfazia-as de imediato com receio de acontecer alguma coisa. Ainda hoje, instintivamente, faço isso, evito cruzá-las. Fico surpreendido com este comportamento, que reflete o efeito da "educação", ou melhor, da importância do moldar do pensamento numa idade facilmente influenciável. Sempre que perguntava as razões para essa atitude, tinha como resposta que dava azar, como se o que "desse azar" fosse suficiente para não as cruzar. Nunca me incomodei com as origens desta superstição, mas hoje, depois de uma visita a uma sinagoga, onde comprei um excelente livro, pequeno, mas muito interessante, fiquei a saber práticas e expressões de origem judaica. Algumas já conhecia, mas havia uma ou outra que não. Foi então que li que as "facas cruzadas" está, de facto, ligado ao azar, "pois os cristãos-novos tinham repulsa a tudo o que estivesse relacionado com uma cruz". Sabendo da violência a que foram sujeitos, continuarem a ser judeus por dentro e cristãos por fora, um atentado à identidade humana praticada pelos cristãos da altura, é fácil de compreender o horror que deveriam sentir quando viam sinais da força e da falta de misericórdia ligados ao catolicismo fanático. Parei na leitura e comecei a imaginar o que diriam a minha avó e as velhas tias se eu lhes dissesse: - Que raio. Então vocês são católicas ou judias escondidas? Não me digam que ainda são judias. Divirto-me a ver as suas caras, repletas de surpresas e incomodadas com tamanha afronta. 
Bom, sendo assim, vou tentar não descruzar as facas para ver qual o efeito. O mais certo é não conseguir, porque a força do hábito é muito poderosa...

sábado, 3 de maio de 2014

Espiral recessiva entrou em recessão? Será possível?...

1. Os estimados Crescimentistas, tanto da ala "soft" como das alas "hard", têm incansavelmente denunciado os malefícios das políticas "neoliberais" que, na sua perspectiva, têm imposto ao País sacrifícios perfeitamente desnecessários...e, em especial, uma espiral recessiva, de duração indefinida enquanto as ditas políticas não forem erradicadas.
2. Trata-se de uma espiral recessiva muito peculiar, tão peculiar que a partir do 2º trimestre de 2013 passou a traduzir-se em variações trimestrais positivas do PIB e, no 4º trimestre, por uma variação positiva não só trimestral mas também em termos homólogos, de 1,7%...e, no 1º trimestre de 2014, parece ser razoável antecipar uma nova variação positiva, em termos trimestrais e homólogos, neste último caso com uma expressão talvez não inferior à do 4º trimestre de 2013...
3. Indicadores de actividade mais recentes, já do 2º trimestre de 2014, parecem confirmar esta característica peculiar da espiral recessiva e das nefastas consequências das políticas "neoliberais": ontem mesmo foi notícia o aumento (homólogo) de 54%, em Abril, das vendas de veículos automóveis, com destaque para o aumento de 65,5% nas vendas de veículos comerciais ligeiros...
4...e, nos primeiros 4 meses do ano, as vendas de automóveis terão crescido 46,4% em relação ao período homólogo de 2013.
5. Também em Abril se verificaram novas melhorias nos indicadores de confiança dos consumidores e do clima de negócios...
6. Os tempos não andam nada propícios para a temível espiral recessiva, apesar das malfadadas opções "neoliberais" persistirem, teimosamente, em dominar a política económica como foi eloquentemente destacado em inflamados discursos no 25 de Abril...
7. Há qualquer coisa que não está a bater certo em tudo isto...ou será que de tanto perorarem sobre a espiral recessiva, até esta sucumbiu às políticas "neoliberais" e acabou por entrar em recessão?

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Novelo de vida...

Após o almoço calcorreamos velhas ruelas sob um suave e doce calor, a fazer horas para ver o que não vimos de manhã. O almoço decorreu sob a égide dos produtos da serra, enchido, carne e vinho. O cansaço, despertado pelo tempo de espera, levou-nos à procura de um banco. Sabia que nas redondezas havia um pequeno jardim. Abalei convicto de encontrar um assento que propiciasse brincar com o relógio e falar sem tempo. Debaixo da árvore estava um pequeno banco. Olhei e vi um novelo cinzento e negro a querer rebolar-se e saltar para o chão. Pequeno, muito pequeno e negro, o novelo humano começou a descer, andando à pato, cabeça pendida e bossa dorida. Aproximou-se atraída por tão inusitada figura e baixou-se. Começaram a falar. Ouvi: - Sim, ando a passear um pouco, mas moro ali em baixo no início da rua. Vou para casa. A fala era excelente e as ideias fluíam-lhe na razão inversa do seu corpo meio mirrado e que deverá ter perdido muitos centímetros à sua estatura inicial. Simpática, e desejosa de dois dedos de conversa, parou e começou a contar muitas coisas. Tinha que ser, pensei. Interrompia-a e perguntei-lhe qual era a sua graça. - Maria dos Anjos. - Posso saber a sua idade? - Sim. Tenho 94 anos. Nasci a 13 de junho, no dia de Santo António. A felicidade de ter nascido num dia tão importante levou-a a uma tentativa de levantar a cabeça, e sorriu, mostrando dois velhinhos caninos a ornamentar um enorme diastema avermelhado. Entretanto, algumas repas de cabelo branco e fino teimavam em mostrar-se fora do velho lenço negro. - O cabelo está a incomodá-la? - Não. Eu tive sempre um cabelo muito comprido, quase que me chegava aos pés. Mas sabe, naquela altura os pais não deixavam cortar os cabelos às filhas. Ainda tenho o cabelo comprido, mas tive que fazer tranças, porque não consigo levantar os braços para trás. Enquanto dizia isto, para provar, tirou o lenço negro para que pudéssemos ver duas tranças entrelaçadas numa espécie de rodilha. - Afinal, a senhora vive com quem? - Com o meu irmão e a minha cunhada. - Que idade tem o seu irmão? - Oitenta e seis anos. Olhe, meu senhor, eu já não consigo fazer o comer. Disse com muita pena. - Mas sempre tem quem o faça para a senhora. - Pois. Sabe uma coisa? Vou-lhe confessar. Não sei o que ando a fazer. Já estou cansada de viver. São muitos anos. - Não diga isso. - Digo, digo. Já tenho muita idade. - Mas ainda se mexe bem e fala com tanta desenvoltura. Tem uma cabeça a trabalhar como deve ser. - Pois! Como quem diz, tens razão, mas por isso mesmo é que ando cansada de viver. Mais uns momentos de conversa, assuntos de outros tempos, uma quinta onde cresceu, viveu e trabalhou e despediu-se. A casa não ficava muito longe, segundo disse. Espero que o seu fim esteja, apesar de tudo, muito mais longe.
No dia de Santo António vou lembrar-me da Maria dos Anjos, um delicado novelo de vida.

O nosso grande passivo

Não tendo efectuado as reformas que deveria ter feito de modo a diminuir a despesa de forma permanente e tornar atractivo o investimento, o governo vai substituindo uns impostos por outros, mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma. Isto é, na mesma continuam os cidadãos e a economia a pagar a factura. Nesta questão fundamental o governo iniludivelmente falhou.  O DEO comprova-o.
Mas, quando também ouço as Oposições, maxime o PS, a criticar as políticas, exigindo chuva no naval e sol na eira, equilíbrio orçamental, menos juros e menos impostos, mais despesa e menos dívida pública, vejo que a nossa classe política não é séria, nem competente. No geral formada e promovida nas jotas e universidades de verão, enquanto o processo de selecção não mudar, dela não pode esperar muito o país.
Se o governo engana, o PS promete e ilude. Se o governo não reforma, o PS nem pensa em tal, apresentando como solução mutualizações de dívida, eurobonds, pagamento do desemprego pela União Europeia.  
Se o Governo é mau, o PS é bem pior. Esse é o nosso grande passivo. Uns minutos do debate de hoje no Parlamento comprovam-no à saciedade. 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Viajar...

Viajar por Portugal é o melhor que me pode acontecer. Sair de casa sem destino definido e encontrar locais adormecidos é a melhor oração para quem tem necessidade de acalmar o coração. Encontro tudo, por vezes até demais. Encanto atrás de encanto, sedução atrás de sedução e, sobretudo, muita fonte de inspiração. É tão fácil. Basta andar e de repente desviar para locais inesperados. Depois é só esperar, e encontro.
Entrei em ruelas que eram mais apropriadas para carros de bois, e devem ter sido eles que desenharam aqueles caminhos. No meio de pedregulhos desnudados apareceram à minha frente duas perdizes. Descaradas, não se desviaram um milímetro. Caminharam à frente do carro sem medo. Eu abrandei e fui atrás delas. Belas, encantadoras, frescas e provocantes. A certa altura, talvez cansadas da minha presença, saíram delicadamente do carreiro e embrenharam-se nas moitas. Sorri. Continuei a andar e fiquei deslumbrado com os afloramentos rochosos e o odor de um passado rico e cheio de histórias. Tudo mergulhado num silêncio humano delicioso. Até o meu velho amigo, o rio Mondego, corria feliz e puro como convém a quem não vê e não necessita de seres humanos. Uma velha ponte, rude, mas com um escudo nacional, impôs-se pela beleza e nobreza das suas funções a que não era alheio a delicadeza de um delicado cruzeiro. Tudo perdido no meio do mistério. Senti-me em casa. Os odores eram os mesmos, as imagens já as tinha guardado, o sol aquecia da mesma maneira e o silêncio devorava-me cheio de prazer. Há locais que não são estranhos, são locais onde a imaginação já viveu, amou e morreu. Todo o percurso estava cheio de mistérios, muitos, velhos como o mundo e novos como os meus sentimentos. São locais sagrados que teimam em desaparecer. São locais que gostam de falar. Basta estar atento ao vento, à luz, à sombra e, sobretudo, às pedras que guardam no seu ventre o gérmen da vida e da felicidade. Basta tocar-lhes para sentir o que guardam, o que viram e ouviram. É fácil ouvir e falar com as pedras, mais fácil e compreensível do que lidar com os humanos. São sinceras, são ricas e sabem poesia. Eu sei falar com as pedras. Eu sei como elas guardam os nossos sentimentos. Guardam-nos porque é a forma que têm de se alimentar e justificar a sua existência. Os seus ventres vazios, escavados e sombrios continuam a abrigar as almas de corpos que ali foram depositados. Sabem tratar com respeito e amor as almas perdidas que por ali andam e encantam quem sabe falar com elas.