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quinta-feira, 30 de março de 2023

“Cão feliz” …

 Não sou pretensioso. Penso eu. Só sei que não consigo entender a vida. 
Tentaram convencer-me, desde que comecei a pensar, que a vida era um privilégio divino. A princípio acreditei. Não tive outra alternativa. Tinha entrado há poucos anos neste calhau, perdido no Universo, quando comecei a questionar o mundo. Inicialmente foi um período muito feliz, porque julgava que a alegria, o amor e a bondade existiam como se fossem batatas a murro com bacalhau, inundadas de azeite, associadas a saborosos beijos da minha mãe e as lindas ofertas do Menino Jesus no Natal, ao qual agradecia sempre, beijando-O na igreja da Misericórdia, a cerca de cem metros do local onde nasci, na manhã de Natal. Lentamente, comecei a compreender que havia outras “coisas” de que não gostava e muito menos entendia. Fui inundado de contradições e de dores. Cresci num mundo que não era o que me foi prometido e muito menos desejado. Colecionei um pouco de tudo. Conseguia disfarçar as dores e surpresas com as minhas “invenções” e esperanças de que tudo o que era mau eram coisas passageiras e de pouca importância. Mas não. Não eram. A vida é muito diferente do que “pensei” e “desejei” quando comecei a tentar “ler” o que os adultos pensavam. Foi o início de um novo nascimento, o da minha real existência. 
Não consigo libertar-me do passado. Inicialmente foi um mundo de carinhos e de fantasias. Depois cresci, brinquei, estudei, lutei e “conquistei”, sempre na perspetiva de acreditar no mundo. Hoje, ainda finjo que é possível mudar o mundo. Finjo. Claro que finjo. Não há mal nenhum nisso, porque fingir é a arma dos poetas contra a iniquidade da vida. Ao longo da existência acumulei inúmeras histórias, as quais me ajudam a aguentar o tempo. Tantas, meu Deus, a ponto de exigirem que acredite na Sua existência! Finjo. Não há mal nenhum em fingir. Em contrapartida, procuro ajudar e amar. Adotei animais. O último foi no passado sábado. Num parque de merendas, eu, e uma filha da Baía, encontrámos um cão. Sujo, mas carinhoso. Acabámos por descobrir que estava abandonado. Despoletámos tudo o que havia a fazer, autoridades, responsáveis pelo canil do concelho em questão, até levá-lo à “minha veterinária”. Cumprimos todas as formalidades. Não tinha “chip”. Tomámos as primeiras medidas, banho, desparasitação e medidas mata-pulgas. Ganhou tudo, “cama, roupa lavada”, carinho e alimentação adequada. Fomos “adotados” e mimoseados com muito amor e ternura. Os animais são surpreendentes. No fundo é a própria vida a agradecer. Não sei o que ele pensa, mas também não interessa. O que importa é saber que se sente feliz. Não é que tenhamos feito papel de deuses, mas não deixámos de contribuir para dar algum significado à vida. Ser feliz talvez seja isso, saber que há quem tome conta de nós sem exigir nada em troca.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

Gostei especialmente da reflexão final. Não existe nela, espaço para o contraditório. A sua relevância, é pura e cristalina.
O meio do texto fez-me pensar na frase do Rei de Castela, Afonso X "O Sábio" «Se tivesse estado presente no momento da Criação, teria dado algumas sugestões úteis para o melhor ordenamento do universo.» (quantos de nós já sentiram o mesmo desejo...)