O meu artigo no jornal i de 28 de fevereiro de 2020:
https://ionline.sapo.pt/artigo/687515/-tomando-a-cicuta?seccao=Opini%C3%A3o
Deslumbrado pela sabedoria de Sócrates, o filósofo, um dos
seus discípulos, Querofonte, deslocou-se a Delfos a questionar o oráculo se
havia alguém mais sábio que Sócrates. Pítia, a sacerdotisa de Apolo, disse que
não.
Uma resposta tão clara contrariava o perfil das sentenças de Pítia,
normalmente vagas e ambíguas, num difícil equilíbrio entre a tradução fiel da voz
dos deuses e a satisfação dos desejos dos clientes cujas doações alimentavam o
templo. E se uma resposta tão evidente agradou aos fiéis, ao contrário suscitou
nos seus detractores a certeza de que essa aparente evidência seria a sua maior
ambiguidade, e assim, se Sócrates era o mais sábio, então não havia sabedoria
entre os homens.
Segundo Platão, Sócrates encontrou-se perante um dilema: ou
aceitava a interpretação literal do veredicto dos deuses, o que ia contra a sua
maneira de pensar, ou desmentia o oráculo, o que significava desprezar os
deuses e considerá-los mentirosos. E reconhecer que não havia sabedoria entre
os humanos seria redutor.
Para resolver o conflito, Sócrates procurou os mais sábios dos
atenienses, tentando encontrar alguém mais sábio que pudesse levar ao oráculo e
respeitosamente mostrar que estava errado, mas cedo concluiu que não eram tão
sábios como muitos os julgavam e eles próprios se pensavam. E fechou o dilema
pela negativa, considerando que ele era o mais sábio, porque os outros não sabiam,
mas pensavam que sabiam, enquanto ele nem sabia, nem pensava que sabia.
De Sócrates à actualidade vão 2500 anos, mas da Grécia antiga
ao Portugal dito moderno não vai distância tamanha. Os oráculos continuam,
agora bem implantados nos templos sagrados fautores da opinião pública, em que analistas,
jornalistas e comentaristas vestem a pele de novos e devotados sacerdotes. E,
tal como Pítia, sensíveis aos desejos dos clientes que procuram a criação da
imagem pública que sirva os seus desígnios.
E assim houve quem fosse consagrado por verdade dogmática revelada
nos oráculos mediáticos como o mais sábio economista e ministro das finanças do
país. E logo, ao contrário de Sócrates, se tenha assumido como tal.
E
assim, mais sábio que organismos nacionais e internacionais, contraria INE
e Eurostat e sustenta que a carga fiscal não aumentou em Portugal, argumentando
em seu favor o registo de patente de inovadora
de exclusiva definição daquela grandeza.
Mais
sábio que o Conselho das Finanças Públicas, desvaloriza as recomendações e
críticas que esta entidade faz, pedindo mesmo que cresça em sabedoria e possa “amadurecer” as suas análises.
Mais
sábio que a UTAO, acusa essa Unidade Técnica de Apoio Orçamental de suscitar dúvidas ilegítimas e difundir cálculos arbitrários.
Mais
sábio que o líder da Oposição, atesta e certifica que este “não sabe
nada de Economia, muito menos de Finanças Públicas, ou nunca viu fazer um
Orçamento do Estado”.
Mais
sábio que o BCE, reduz a ciscos a política monetária dessa instituição e
afiança que a redução
das taxas de juro se deve à credibilidade
do governo e das suas políticas; e classifica
de meros "detalhes"
as críticas ao novo modelo de
supervisão financeira que quis pôr em prática.
E,
mais sábio do que o sábio ministro das finanças que também é, jura aumentos de
investimento e diminuição de carga fiscal, contestando quadros do Orçamento que
subscreve e exibem o seu contrário.
Mais
um orçamento que o oráculo aplaude, mas que, debaixo do brilho tão fugaz e virtual
com que é exaltado, esconde o rasto de políticas artificiosas e efémeras, sementeiras
de cicuta que vêm envenenando serviços públicos, iniciativa e economia.
Não
foi apenas Sócrates que tomou a cicuta. Também a vai tomando quem fica anestesiado
por uma sabedoria tão mediaticamente composta e a ela se rende por inteiro.
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