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segunda-feira, 31 de março de 2014

Rituais

Gosto de ler, mas não tenho muito tempo, cada vez tenho menos. À medida que o meu tempo avança, e o fim se aproxima, tudo se acelera, tudo se agiganta, como se assistisse a uma estranha dilatação do espaço onde me sinto meio perdido e meio achado. Consigo, mesmo assim, escrevinhar alguma coisa entre duas gotas de tempo que caem à minha frente. Escrevo para não sentir o frio incómodo da triste chuva da vida que sombreia e arrefece quase tudo o que me aparece. Vivo cada livro que leio, entro nas páginas, sejam quais forem, sento-me junto dos protagonistas, olho-os, ouço-os e desfruto as suas dores, angústias, prazeres e amores sem que me vejam, sem que sintam a minha presença. Não interfiro em nada do que fazem, dizem ou pensam, o único que muda sou eu. 
Na semana passada telefonaram-me a dizer que tinham entregado na faculdade um pequeno volume vindo de Inglaterra. Fiquei intrigado, não tinha encomendado nada e quando faço uso a minha morada. O que será, pensei. Entretanto dei ordens para que o colocassem na minha secretária. Fiquei com curiosidade. Hoje, depois de ter dado a minha primeira aula, fui ao gabinete e vi o embrulho. Peguei e senti que deveria ser um livro. Como recebo livros de várias organizações, pensei que fosse mais um, mas estava manuscrito e fugia ao habitual. Abri o pacote e deparei-me com um livro, "Burial Rites" de Hannah Kent. Estranho! Eu não encomendei o livro. Abro-o e ao começar a lê-lo lembrei-me de há algumas semanas ter visto uma fotografia de uma rua onde numa livraria estava exposto o livro. As ideias começaram a associar-se à procura de um corpo comum, pronto para contar uma história. Foi então que li a dedicatória, letra cuidada, desenhada, traço inequivocamente feminino e, sobretudo, encantadora, "Outros rituais... I hope you like it... Gratidão/reconhecimento, belos momentos de evasão proporcionados pelas escritas de vexa no 4r... MM". Sorri. Nunca esperei que um dia pudesse receber um livro em "paga" do que tenho escrito. Um gesto doce que inebria os sentidos de quem anda à procura de algo que nem sabe o quê. Levei-o para a segunda aula. Assistiu à mesma, enquanto eu olhava-o com desejo de entrar nas suas páginas e viver aquele passado, drama, enredo e vida numa época e num local que sempre me fascinou, terras e gentes de sagas surpreendentes. 
Gosto de rituais, gosto de jogar e falar com símbolos, uma língua muito diferente, mas que tranquiliza a minha mente. Agora vou lê-lo, vou entrar dentro das suas páginas para ver, ouvir, sentir e dormir com aquela gente, sabendo que posso fazer amigos ao longe, pessoas que pensam em mim, e que se sentem bem com aquilo que digo, penso, sinto e escrevo. Afinal é simples viver, basta escrever e, também, ler.

domingo, 30 de março de 2014

Gosto do que faço...

Confesso que gosto do que faço, mesmo que me dê muito trabalho e algumas preocupações. Gosto. Gosto de ouvir as pessoas, gosto de as ajudar, gosto de conversar, gosto de aprender, gosto de ser um entre muitos, gente simples, gente dotada, gente sofredora, gente à espera de um sorriso, gente desejosa de ser compreendida, gente como eu, porque eu sou como o resto da gente. Partilho tragédias, dramas, alegrias e sou confessor, mentor e aparo qualquer dor. Converso de muitas maneiras, com palavras, com tiradas, com sorrisos e com silêncios. Não há dia que não aprenda, não há dia em que não saiba o que a vida é capaz de fazer. Amar, afrontar, ameaçar, matar, fazer rir e por outros a chorar é o quadro de um dia vulgar. Tudo anda num estranho pandemónio, nada para, nem o sol, nem as nuvens, nem as almas, nem os desejos, nem a esperança de um dia melhor.
senhora, vestida de negro, mais velha do que parecia, não disse de imediato o que sentia, algo de estranho no seu doce olhar me dizia que tinha cicatrizes de sofrida. Explicou a sua situação com a morte de um filho ocorrido há três meses, a mesma idade da minha filha mais velha. Estremeci. Mas não ficou por aqui, um outro, deve ir a seguir, com doença. Fiquei por aqui. Tenho que me defender. A senhora, simples, humilde, nunca perdeu o sorriso, delicado, estranho, uma espécie de mistura de ignorância e de esperança. Agredeci-lhe. Não compreendeu ou fingiu que não compreendeu. Saiu, meia alma, meio humana. Eu fiquei dorido da alma e atormentado no corpo. Fui para outra freguesia. Vi gente. Aprendi com o que ouvi. Deliciei-me com histórias, risos, medos, sustos e outras coisas com pessoas diferentes, pessoas que são capazes de ensinar quando estão à minha frente penetrando estranhamente na minha mente. Agradeço à minha gente. Surgiu o gago, não o via há um ano. Castiço. O bigode ombreava com o seu doce sorriso e bailava com o seu tartamudear. Perguntei-lhe pelo cinto com a fivela da Harley. Abriu os olhos e colocou de imediato as mãos no cinto, dizendo, não o trouxe. Como é que o senhor doutor se lembra do meu cinto? Como é que poderia esquecê-lo? Achei tão interessante a sua história. Como está a sua máquina? Está com problemas, queimou-se a bomba de água, e uma outra coisa qualquer, está no mecânico e tenho que pagar mais de quatrocentos euros! Fora isso, adoro a minha moto. Vou deitado a conduzir. Faz o gesto sempre a sorrir. Depois foi tempo para histórias, devaneios, manifestações de alegria, de felicidade, de risos e sei lá o que mais. A consulta foi residual. Estava bem, embora não se esquecesse do maldito desastre em que ia a mais de cento e oitenta a hora quando bateu na traseira de um carro. Ficou maltratado, perdeu parte de um pé e passou mais de dois meses no hospital, mas foi útil, senhor doutor, como não podia fumar deixei o vício. E um longo sorriso fez bailar novamente o seu olhar e o seu bigode. A conversa continuou, com ele, com outros, com outras e acabei por me enriquecer. Tanto meu Deus! Estou cada vez mais rico em histórias, em esperanças, em dores, em alegrias, em tudo que diga respeito à vida. Não posso deixar de agradecer ter vivido mais um dia e de o partilhar para ajudar quem queira saber qual o sentido da vida...

Hora velha, hora nova...


Mudou a hora, uma prática comum justificada por várias razões. Algumas nunca me convenceram, nem sei se alguma vez convenceram quem quer que seja, falo da "poupança energética", por exemplo, mas há outras mais simpáticas e, até, em certa medida, justificáveis, caso de o dia começar com luz em vez de noite, para quem tem de se levantar cedo é mais agradável. O que é certo é que a alteração de uma hora a mais, ou a menos, tem impacto, durante alguns dias, no comportamento das pessoas e de outros animais, recordo que as vacas ficam também chateadas com a mudança da hora, têm de adaptar-se à hora da ordenha, parece que tem alguma influência na produção do leite. As vacas não me interessam, o que eu sei é que durante uns três dias fico aborrecido com a alteração, mas devo fazer parte das pessoas sensíveis. Uma chatice temporária.
Hoje, toda a gente sabe ver as horas e tem relógio. Mas há alguns decénios não era bem assim. Recordo ter recebido o meu primeiro relógio quando andava na escola primária, um "Hércules", tinha que ser mesmo um hércules para aguentar com as tropelias de uma criança. O relógio aguentava, mas quem não se aguentava era o vidro, que se riscava com muita facilidade chegando mesmo a partir-se o que motivava uma raspadela e uma ida ao relojoeiro para substituí-lo. Tinha de ter o máximo de cuidado. Usava-o com orgulho no meu pulso. As pessoas viam-no, naturalmente, e ficavam surpreendidos como é que uma criança usava um artefacto daquela natureza. Por este motivo era interpelado a toda a hora e instante para responder à pergunta: - Pode dizer-me as horas, se faz favor, menino? Elevava o braço esquerdo, perscrutava com cuidado onde estavam os dois ponteiros, segurando o rebordo do relógio com os dedos da mão direita, e, passado um curto momento, tinha de ter a certeza de que não iria dizer as horas erradas, comentava: - São... Ouvia de seguida um agradecimento sincero e iam à vida, homens, mulheres, velhos, novos, calçados ou descalços, mais estes do que os outros. 
Uma vez perguntaram-me as horas. Depois de analisar bem os ponteiros do relógio, disse à senhora as horas. - Obrigado, menino, mas é hora velha ou hora nova? Olhei a mulher, cesto à cabeça, saia rodada e coberta com um avental colorido, descalça, pés encardidos, com sola grossa e gretada, e não soube responder, porque para mim eram as horas que o relógio marcava. - Então, menino, hora nova ou hora velha? Recordei que alguns dias antes o meu pai explicou-me que tinha de mudar a hora ao relógio. Foi então, que, depois de alguma hesitação, respondi: - Hora nova! Se tinha alterado a hora do relógio recentemente, para mim era uma "hora nova". A mulher, sem pressa, agradeceu, voltou a colocar o cesto à cabeça, virou as costas e, saracoteando-se, subiu a velha calçada romana que ia da ponte até à estação.

Foi a primeira vez que ouvi que havia uma "hora velha" e uma "hora nova"...

A fonte oficial

A fonte oficial é um símbolo da república. Não há governo que dispense comunicar com o Povo através de uma fonte oficial que os media igualmente apreciam aproveitando para matar a sede que os definha.
A fonte oficial é um equipamento público de primeira grandeza. É barata e satisfaz necessidades gerais. Permite estar no palco sem ser chamuscado pelas luzes da ribalta, salvo ingenuidade ou disparate de primeira água. Mas permite também reunir as boas graças dos mensageiros, alargando a sua rede de fieis sedentos.
Contudo, nos últimos tempos as fontes oficiais têm tido uma eficaz concorrência. Fontes não oficiais, mas detentoras de alvará de acesso às melhores das fontes, são usadas, uma vez por semana para aplacar a sede, em direto, anunciando ao povo as boas novas e testando a reação às piores. Chamam-lhes comentadores. Para mim, quase sempre, uma seca.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Taxa de juro (yield) da dívida pública a 10 anos abaixo de 4%...4 anos depois!

1. Foram precisos 4 anos – 4 longos anos de trabalhos forçados, de Março de 2010 a Março de 2014 – para a taxa de juro implícita na cotação da dívida pública (yield), ao prazo de 10 anos, voltar abaixo de 4%...

2. ...quantas canseiras, quantos sacrifícios, quantos ajustamentos, por vezes brutais, tiveram as Famílias e Empresas necessidade de realizar, ao longo deste período, para sanar os desequilíbrios que uma política económica - que chegou a atingir patamares de perfeita insanidade na recta final para o colapso financeiro - permitiu acumular e arrastar irresponsavelmente!

3. Só o Estado (conjunto das Administrações e Empresariais do Estado), na sua altaneira poltrona, permanece quase intacto, embora ironicamente apareça agora como principal beneficiário daquele trabalho quase heróico de ajustamento que Famílias e Empresas se viram forçadas a fazer para sobreviver...

4. ...Estado cuja Reforma permanece tranquilamente depositada em congelador, aguardando que alguma “alma caridosa” a retire desse lugar e a transfira para o “micro-ondas”, para ganhar temperatura e pôr-se finalmente em movimento...

5. E ainda há quem, neste paradoxal “environment” , em que aos outros agentes económicos foram e continuam a ser impostos todos os sacrifícios e obrigações de ajustamento – dos quais o Estado retira o principal benefício quase sem custo – entenda que a “solução” para os problemas do excesso de Estado seja, sem mais, a reestruturação da dívida pública...esquecendo a Reforma...

6. ...”solução” que nos iria de novo lançar na turbulência financeira, obrigando a repetir, com acrescidos sacrifícios o penoso exercício do ajustamento (sempre à custa dos mesmos, nem vale a pena lembrar...)! É de pasmar, ó gentes!

quarta-feira, 26 de março de 2014

Das "verduras" de Moreira da Silva ao teodórico imposto

Um imposto sobre os levantamentos de dinheiro de uma conta bancária especialmente afecta aos salários e pensões foi a proposta de Teodora Cardoso, ontem, nas Jornadas Parlamentares do PSD. Um imposto sobre a despesa, e que substituiria o IRS e, eventualmente, também o IVA, esclareceu.
Confesso não perceber, de todo, a proposta de Teodora. Sobretudo, e àparte algum segredo bem guardado, porque me parece mesmo impraticável ou muito difícil de ser operacionalizada. Ou porque seria imediato para muitos encontrar alternativas legais que obviassem ao levantamento do dinheiro, maxime, desde logo, a saída definitiva dos rendimentos para outras paragens, ou porque parte de um pressuposto de que só levantaríamos dinheiro dessa conta para gastar”, situação que não esgota minimamente a necessidade de levantamento de dinheiro ( por exemplo, apoio a familiares ou outras entidades), além de que ainda não é proibido levantar dinheiro para ter em casa. Mas pagaria imposto.  
Acresce que o conceito de levantamento é muito lato. Uma transferência bancária a favor de um terceiro substitui um levantamento. Pagaria imposto? Mas Teodora referiu-se a levantamentos.
No fim, o esquema traria um resultado pérfido: levaria a tributar a totalidade do rendimento das classes mais desfavorecidas, que o consomem na totalidade, apenas uma parcela das classes que o consomem parcialmente e zero de quem que o coloca todo lá fora.
Aqui há um mês, foi anunciado o IRS verde; agora, uma eventual substituição do IRS. O Governo tem abusado da fiscalidade com o único propósito de financiar o Estado e a despesa pública, esquecendo que a fiscalidade tem que servir uma correcta política económica. A lição de Teodora e a "verdura" de Moreira da Silva constituem mais uma deriva folclórica que enfeita uns títulos nos jornais, mas em nada ajuda a economia. Pelo contrário, nova categoria de impostos não retira nenhum do stock existente, e apenas serve mais e pior despesa pública. 
Referiu ainda Teodora que se trata de um imposto que ainda não existe em parte nenhuma. Mais um perigo. Onde não há competência para mais, faz-se o que não se conhece, para mostrar que se sabe. O princípio de Peter demonstra-se também no aumento dos impostos. 

terça-feira, 25 de março de 2014

Chocante...

Depois da OCDE, ontem foi a vez do Instituto Nacional de Estatística. O retrato da pobreza ontem conhecido é chocante. Chocante. São dois milhões de pessoas em risco de pobreza, que sobrevivem com pouco mais de 400 euros. As pessoas mais atingidas são as crianças, as famílias com filhos a cargo e os desempregados. A taxa de risco de pobreza em Portugal aumentou em 2012 para 18,7%, cresceu para níveis que não se verificavam há praticamente dez anos.
Quanto aos indicadores de privação material, os dados são de 2013. No ano passado, 25,5% dos portugueses viviam em privação material, mais 3,7 pontos percentuais do que em 2012 (21,8%), enquanto 10,9% da população estava em privação material severa.
A desigualdade social - assimetria na distribuição de rendimentos - também aumentou. O fosso entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres aumentou. A diferença passou para 10,7 vezes, quando em 2011 estava em 10.
Esta situação agora revelada seria bem pior não fosse a solidariedade das famílias e das comunidades que apesar de também afectadas pela crise servem de almofada da “segurança social”, substituindo ou complementando o sistema de Segurança Social.
É um retrato com o qual não nos podemos conformar, que mostra bem os resultados da falta da intervenção do Estado para apoiar as famílias que não têm como autonomamente resolver as suas carências económicas e, em muitos casos, a privação material em que vivem.
A cedência política à inevitabilidade da crise não é aceitável, onde o Estado deve intervir deve estar lá. A dimensão social precisa de atenção redobrada, o Estado – que somos todos nós – não pode deixar para trás pessoas e famílias que tendo sido atingidas pela crise dela não se conseguem libertar sem ajuda e sem ajuda terão dificuldades em se incluírem numa retoma da economia. As políticas de protecção social não cumpriram com os objectivos de combate à pobreza e à desigualdade social.
A economia é fundamental, mas a dimensão social é igualmente importante. Agora que as campainhas da pobreza tocaram alto – pelo menos tiveram eco mediático - pode ser que os nossos responsáveis políticos se entendam. A dimensão social tem que passar a estar no topo da agenda política...

segunda-feira, 24 de março de 2014

Filosofia socrática

José Sócrates: Vamos ao essencial da sua proposta: o que é que Francisco Louçã propõe para resolvermos o problema? Diz assim: vamos reestruturar a dívida. O que é que significa reestruturar a dívida? Reestruturar a dívida é um termo técnico. Isto significa não pagar parte da nossa dívida.
Jornalista da SIC: Isso seria trágico para Portugal, eng. José Sócrates? Quais eram as consequências para o País? 
José Sócrates: Vou responder. Isso significa calote aos credores. Isso significaria, em primeiro lugar, Portugal passar imediatamente a fazer parte do lote de países que não cumprem, da lista negra. Isso significaria desde logo o colapso do sistema financeiro, porque nenhum dos nossos bancos, nenhuma das nossas grandes empresas se poderia, digamos assim, financiar. E isso teria consequências gravíssimas na nossa economia, nas empresas e nos trabalhadores. Pagaríamos isso com desemprego, com falências e com miséria, Francisco Louçã. É por isso que essa proposta é absolutamente irresponsável.
Debate da Campanha Eleitoral de 2011 entre Sócrates e Louçã, na SIC. Retirado do artigo de Alberto Gonçalves, no DN de 23 de Março, A ternura dos setenta. 
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Menos de 3 anos depois, Sócrates já quer a reestruturação e não se importa com as consequências: desemprego,  falências e miséria... Os termos são dele!...

domingo, 23 de março de 2014

O impacto da crise...

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) alerta no estudo recentemente publicado Society at a Glance 2014 para as desigualdades em Portugal. A OCDE faz um alerta para os efeitos sociais das políticas de austeridade que têm sido prosseguidas. Os dados citados pelo estudo não constituem novidade, mas para quem dúvidas tivesse Portugal é o país que apresenta o maior nível de desigualdade na distribuição do rendimento dos países europeus que integram a OCDE. Os apoios sociais não cresceram em linha com os problemas económicos, pelo contrário, foram reduzidos.
A OCDE alerta para a falta de equidade na distribuição dos custos da crise e chama a atenção para a necessidade de Portugal rever as suas políticas de protecção social, designadamente a redução do número de desempregados – 6 em 10 - que não auferem subsídio de desemprego, recomenda prioridade à protecção dos mais pobres e apoio às famílias em maior desvantagem económica, designadamente apoio às crianças e investimento selectivo na requalificação dos desempregados.
Perante este retrato social, é razoável que nos questionemos sobre os limites das políticas de austeridade e as suas consequências, isto é, sobre a sua adequação à realidade económica e social do país. O mesmo será dizer, que futuro queremos ter e como lá chegar. A impossibilidade de vastos grupos da população poderem ter uma vida digna e acesso a bens económicos essenciais e a sua exclusão da vida económica e social constituem um entrave à mobilização do país para seguir em frente…

sexta-feira, 21 de março de 2014

Uma correcção que vale a pena destacar

Todos nós erramos – mas só alguns se esforçam para corrigir os lapsos cometidos
Ninguém é perfeito e todos cometemos erros. Eu próprio tento, sempre que erro, emendar humildemente a mão – e não me caem os parentes na lama por isso, muito pelo contrário!... Penso que só quem é grande nos princípios é capaz de assumir este tipo de conduta. 
Como se pode comprovar pela fotografia abaixo, o Jornal de Negócios emendou a mão em relação a um lapso ontem cometido, de uma notícia com um título excessivo, que não correspondia ao seu conteúdo, nem às palavras que eu havia, efectivamente, proferido.
Esta não é a primeira vez que observo lapsos de jornalismo em Portugal. Só no meu caso, e como descrevi no post desta manhã, foram duas vezes em menos de um mês. Num caso, infelizmente, não houve lugar à devida correcção; hoje, o Jornal de Negócios repôs a verdade. Tal como denunciei o lapso, aqui fica também o registo da correcção efectuada.

Não foi a primeira vez que o meu nome foi mal citado – longe disso! E até creio que não terá sido a última. Mas, até esse dia acontecer, não me cansarei de repor a verdade sobre tudo o que digo ou faço, bem como salientar a enorme diferença de comportamentos entre profissionais com diferentes tipos de princípios.

Deslumbramento, esperança e poesia...

A propósito de uma conferência sobre tão importante assunto (Quarto da República)...

Presumo que ninguém contestará a afirmação de que as grandes descobertas do homem nasceram ou tiveram impacto na área da saúde. De facto a história da medicina é extraordinariamente sedutora e continua a maravilhar-nos cada dia que passa. Deslumbramento é a palavra que melhor identifica estes fenómenos. A esperança num futuro menos sofredor vive no sonho à espera de ser libertada.
A par do "deslumbramento" e da "esperança" inerentes à medicina poderia incluir um terceiro elemento de forma a criar uma tríade que traduza o pensamento e desenhe uma das mais belas realidades dos nossos dias, "poesia". "Deslumbramento", "esperança" e "poesia" estão personificados num dos mais belos episódios da medicina, a procriação medicamente assistida. O deslumbramento ressalta aos nossos olhos. Retirar ao divino a prerrogativa sobre quem pode ser pai ou mãe era algo impensável ainda há poucos anos. Hoje, o homem consegue corrigir o que poderia designar "erros da natureza", se bem que, em termos práticos e reais, não sejamos mais do que a expressão de inúmeros erros acumulados ao longo da existência. Os erros da evolução são fonte da vida e moldadores da nossa biologia, enquanto a infertilidade é filha dos erros de uma imaginária ou hipotética "criação". A procriação medicamente assistida é um deslumbramento.
O futuro da humanidade mergulha incessantemente na eterna esperança de melhores dias. A procriação medicamente assistida configura a libertação da esperança ao propiciar que as pessoas que sofram de infertilidade possam satisfazer um dos mais poderosos desejos, perpetuar a vida. A procriação medicamente assistida é sinónimo de esperança.
Em terceiro lugar citei a poesia. Aqui tenho de contar uma pequena história. Nada melhor do que uma história para compreendermos a essência da vida e a beleza da alma.
Robert Edwards pode ser considerado como o pai da procriação medicamente assistida. A sua vida encanta qualquer um e as suas experiências são um marco de excelência. A par com Patrick Steptoe, falecido em 1988, conseguiu aquilo que era impensável até então, a fertilização in vitro de óvulos humanos. Em 2010 foi-lhe atribuído o prémio Nobel da Medicina. Na reunião após a atribuição do merecido prémio o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida não deixou passar em falso tão merecida distinção. A certa altura, depois de termos abordado o peso dos obstáculos científicos, culturais e éticos que Edwards sofreu, que não foram nada pequenos, e todas as inquietações e oposições de caráter confessional, não foi difícil expressar as maravilhas que permitem caracterizar esta técnica. Um colega meu do Conselho, visivelmente emocionado, traduziu como sendo “talvez a mais poética da medicina moderna”. Eu ouvi, não esqueci e em pensamento fui mais longe: “É a mais poética de todas”.
A procriação medicamente assistida encerra em si o deslumbramento a esperança e a poesia da vida. Nada, a meu ver, consegue ultrapassá-la. (...)

Um esclarecimento sobre a minha participação de ontem no Fórum de Políticas Públicas do ISCTE

Ontem, Março 20, 2014, fui orador convidado no Fórum de Políticas Públicas organizado pelo ISCTE, tendo proferido a minha intervenção no Painel “Reformas e Impactos Macro económicos”, que decorreu entre as 15h e as 17:30h, na companhia de António Lobo Xavier e Emanuel Santos, e moderação de Luís Ferreira Lopes da SIC.
Passados alguns minutos da minha intervenção, o Jornal de Negócios, onde sou colunista, publicava no seu site uma peça intitulada “Miguel Frasquilho: Se Portugal não tiver ajuda dos credores não vai conseguir pagar a dívida”.
Sucede que esta expressão no título, certamente construída para ser bombástica ou sensacionalista (colar um Deputado do PSD ao Manifesto dos 74 sobre a Reestruturação da Dívida?) não se encontra em nenhuma citação ao logo da peça. Por um motivo simples: eu não a referi (se o tivesse feito, ela não deixaria de aparecer, e entre aspas, como citação). De facto, aquilo que eu disse sobre o assunto encontra-se entre aspas, e é como segue:
Miguel Frasquilho considera que mesmo que Portugal faça "tudo certinho" isso não chegará para pagar a dívida. O deputado do PSD defende a necessidade de "uma ajuda dos credores".
"Precisamos de condições para pagar a nossa dívida", defendeu Miguel Frasquilho no Fórum das Políticas Públicas, acrescentando que o cenário traçado pela Troika para a evolução da dívida pública está "para lá de optimista".
Sobre o sucedido, quero esclarecer o seguinte:
1.    Reconheço, evidentemente, as citações que me são atribuídas sobre o assunto. Elas foram por mim proferidas depois de ter apresentado quatro cenários sobre a evolução da dívida pública no futuro (projecção pessimista, projecção central – com números muito próximos dos que o Primeiro-Ministro apresentou num colóquio na semana passada –, projecção optimista, e projecção da Troika), sendo que todos eles apontavam para a sustentabilidade da dívida. E, como já em tantas ocasiões nos dois últimos anos proferi, e escrevi (inclusive no meu livro “As Raízes do Mal, a Troika e o Futuro”, publicado em Maio de 2013), complementei esta analise concluindo que Portugal precisará, no futuro, da ajuda dos parceiros europeus – como, de resto, já sucedeu quer em 2011 e 2013 (na extensão de maturidades e na redução dos juros), quer em 2012 e 2013, com mais tempo para cumprir o ajustamento orçamental (que foi concedido aos soluços pela Troika, e não de uma só vez, como eu defendi, em Julho de 2012, que devia ter acontecido, e nos poderia provavelmente ter poupado, por exemplo, o “enorme aumento de impostos” – nas palavras do Ministro das Finanças à altura, Vítor Gaspar – de 2013). Penso que poderemos dispor, no futuro de novas ajudas deste género – aliás, no mesmo dia em que eu falava, soube-se que o método de cálculo do saldo orçamental estrutural, indicador de referencia do Tratado Orçamental Europeu, irá ser alterado, por decisão dos Governos da UE em Bruxelas, de molde a permitir o cumprimento daquele indicador com uma menor dose de austeridade. Aí está uma “ajuda” que saúdo – e que, estou certo, será sucedida por outras, que beneficiarão não só Portugal mas todos os países da UE (e, como tal, a Europa e o projecto europeu).  
2.    Contudo, o título, que não se encontra entre aspas, é manifestamente abusivo, sendo da total responsabilidade da jornalista destacada para o efeito e visou criar uma notícia sensacionalista, como atrás já referi. Porque tudo o que eu defendi na referida conferência, já anteriormente o tinha feito. E, no artigo publicado na última terça-feira, precisamente no Jornal de Negócios, e intitulado “A Questão da Dívida”, eu criticava o Manifesto dos 74 – do qual discordo totalmente – quer no timing, quer no conteúdo, e assumia, na parte final do texto, que os nossos parceiros europeus acabarão por nos conceder – e a outros países europeus endividados – condições mais favoráveis para que a questão da dívida possa ser convenientemente contornada no espaço europeu. Não deixa, aliás, de ser sintomático que, ao contrário do título sobre a minha intervenção, nos títulos das peças sobre as intervenções dos meus companheiros de painel, António Lobo Xavier e Emanuel Santos, lá estão as aspas para indicar o que foi por eles proferido...
3.    Esta é, pois, a segunda vez em menos de um mês em que sou confrontado com um título de uma peça jornalística que não retrata a notícia que a seguir é dada, nem as citações que me são atribuídas e que eu, realmente, proferi. Recordo que no dia 26 de Fevereiro, um take da Agência Lusa tinha como título “PSD prefere Programa Cautelar, por prudência”, depois de declarações minhas em nome do PSD em que as palavras “preferência” ou “prefere” nunca foram usadas. A expressão que utilizei, toda no condicional, foi "O que transmitimos à troika é que, caso as condições sejam favoráveis, um programa cautelar nos pareceria mais prudente tendo em conta, por exemplo, que os juros da dívida pública portuguesa a dez anos se encontram ainda nesta altura acima do que a Irlanda registava quando saiu do programa". Ou seja, se as condições não fossem favoráveis, outro tipo de saída poderia ser mais prudente. Nunca preferida.
4.    Tratou-se, pois, ontem, de mais um mau trabalho de jornalismo. Aliás, depois de publicada a primeira peça, e apesar de eu ter comentado, em intervenções posteriores no mesmo painel, essa mesma peça (refutando-a), a mesma jornalista nem mais uma linha escreveu sobre o assunto, tendo preferido focar-se noutras minhas declarações. Lamentavelmente.
5.    Nestas minhas palavras, que apenas a mim me comprometem (não estava a representar o PSD, ao contrário do que tinha sucedido com o episódio da Lusa), mantenho tudo o que disse. Não apenas ontem, mas no artigo de terça-feira, há umas semanas, há meses, durante os últimos dois anos. Mas, sinceramente, começo a estar cansado de determinado tipo de jornalismo. Que não pretende informar – antes desinformar. Pois se as citações do que eu disse estão correctas, por que carga de água terão querido os jornalistas em questão (e, no caso de ontem, a jornalista em questão) ser “mais papistas que o Papa”, fazer as suas próprias interpretações, tirar as suas próprias conclusões – e construir títulos que são enganosos e não reflectem o que eu disse?!...
Responda quem souber. Por mim, apenas espero que episódios destes não se tornem a repetir.

quinta-feira, 20 de março de 2014

A Questão da Dívida

Como seria de esperar, o Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente”, subscrito por 74 personalidades de todos os quadrantes políticos e sociais, e apresentado na semana passada, tem concentrado boa parte das atenções mediáticas, e têm sido esgrimidos os mais variados argumentos a favor e contra a tese de que só reestruturando a dívida pública como os signatários propõem Portugal pode vencer a crise que atravessa.
Não tenho dúvidas de que é positivo e salutar que a sociedade civil se possa organizar em iniciativas que proporcionem um debate enriquecedor e esclarecedor, facilitando a tomada de decisões acertadas e que favoreçam o nosso futuro colectivo. Não creio, porém, que seja este o caso – quer pelo timing, quer pelo conteúdo.
Timing. Dificilmente poderia ser mais desadequado: em vésperas quer de eleições europeias, quer de Portugal terminar o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) de forma favorável (dado que se conseguiu evitar um segundo resgate). Ora, abrir a discussão deste tema (i) apenas reforçaria as divisões que a actuação de forças políticas eurocépticas e nacionalistas, em franca progressão nas sondagens, tem acentuado entre o Norte da Europa, por um lado, e o Sul e a Periferia, por outro; e (ii) aumentaria o receio dos investidores, faria subir os juros pedidos para financiar a dívida pública portuguesa (dificultando o acesso pleno ao financiamento em mercado), prejudicaria a (ainda frágil) recuperação da economia e dificultaria, portanto, ainda mais, as já exigentes condições de pagamento da dívida.
Conteúdo. O Manifesto propõe o alongamento das maturidades e a descida dos juros – uma, digamos, “restruturação camuflada”, de que Portugal (tal como a Irlanda) já beneficiou por duas vezes desde o início do PAEF (maiores prazos de pagamento da dívida e menores custos são sempre favoráveis para quem é devedor e está em dificuldades), sem sofrer as consequências de um haircut (“corte de cabelo”) ou perdão explícito de dívida. Porém, os subscritores do Manifesto vão mais longe, e admitem uma “reestruturação camuflada” que se estende à dívida detida por credores não oficiais, quer nacionais, quer estrangeiros.  De facto, não pode ter outra leitura a passagem “(…) Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida  em 60% do PIB. É diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB (...)”. Ora, a dívida pública portuguesa ascende a cerca de 129% do PIB, assim repartida: 14% do PIB é detida pelo FMI (e os empréstimos concedidos por esta instituição a qualquer país não podem sofrer alterações das condições e prazos de pagamento); 40% do PIB encontra-se na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE; a restante dívida, cerca de 75% do PIB, encontra-se nas mãos de credores não oficiais portugueses (45%) e estrangeiros (30%). Ou seja, de acordo com a proposta do Manifesto, envolver só os credores oficiais europeus numa reestruturação da dívida seria insuficiente – e uma parte do restante endividamento, interno e externo, teria que ser igualmente perdoada... Mesmo só através da extensão de maturidades e da descida dos juro, e não de um haircut explícito (um “não pagamos”), tal configuraria uma situação semelhante à que a Argentina decidiu em 2001 (e de cujos efeitos ainda hoje padece), a Grécia teve que sofrer em 2012, vários países sul-americanos experimentaram nos anos 80 do Século XX e... a que Portugal teve que recorrer, pela última vez, em... 1891!... A nível interno, seriam afectadas as contas de quem possui dívida pública portuguesa: famílias (detentoras de Certificados de Aforro e de Certificados do Tesouro, por exemplo), bancos, companhias de seguros e outros agentes, e também o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (onde estão aplicadas as contribuições sociais dos Portugueses, para garantir o pagamento das pensões de reforma, cujo valor seria também reduzido em face da reestruturação). Externamente, Portugal perderia novamente a confiança dos investidores, o regresso ao normal financiamento em mercado não aconteceria, terminar favoravelmente o PAEF seria uma miragem e o Pós-Troika deixaria de ser “Pós”... por muitos e muitos anos. O efeito exactamente oposto ao pretendido pelos subscritores do Manifesto...
Esteve, por isso, muito bem o Primeiro-Ministro quando rejeitou liminarmente qualquer reestruturação da dívida pública portuguesa. Nem a sua posição podia, em minha opinião, ter sido outra: se tal tivesse acontecido, aí sim, todos teríamos razões para ficarmos muitíssimo preocupados. Então queremos regressar ao pleno financiamento em mercado e a mensagem oficial a transmitir aos investidores seria “temos dificuldade em cumprir as nossas obrigações e, portanto, queremos agora reestruturar a dívida pública”?!... Não, nem por sombras!... Reestruturações de dívida não oficiais são sempre de evitar – e mesmo as oficiais, só com o acordo dos devedores devem ser ponderadas. Até porque o argumento de que já são praticadas, correntemente, reestruturações com outros créditos e outros credores, como os pensionistas e os funcionários públicos (através dos cortes de pensões e de salários na esfera pública) não colhe: quem está endividado tem que ter como prioridade obter financiamento – sem o que tudo o resto é colocado em causa.

Tenho para mim que haverá um tempo (próximo) para que as condições de reembolso da dívida pública portuguesa na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE possam ser (de novo) melhoradas, alongando novamente maturidades e descendo juros – como, repito, já aconteceu por duas vezes nos últimos 3 anos – e até, quem sabe?, beneficiando de um período de carência no pagamento dos juros. É que, previsivelmente, terá lugar, depois das eleições europeias, um terceiro resgate à Grécia, a 50 anos e com juros muito baixos – condições que poderão ser estendidas a países encarados como cumpridores, como Portugal e Irlanda, de molde a facilitar o pagamento das suas dívidas. Mas estas coisas não se anunciam – fazem-se, acertam-se discretamente com os credores, longe de um mediatismo que pode ser (muito) prejudicial. Afinal, como já em diversas ocasiões referi e escrevi, a Europa está tão interessada como Portugal em que o fim do PAEF e o período que se segue corra de forma favorável para o nosso País... e para o projecto da Zona Euro. Estou convencido, por isso, que nos serão proporcionadas as condições para que tal possa ser uma realidade. Para que possamos contornar a questão da dívida. 

Nota: Este texto foi publicado no Jornal de Negócios em Março 18, 2014.