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domingo, 26 de fevereiro de 2023

“Mistérios” …

O dia acabou mais cedo do que esperava o que fez com que ficasse com o meu ritmo laboral perfeitamente destrambelhado. Não estava à espera. Pensei, vou fazer aquilo que mais gosto, vou sair, vou escrever num sítio prazenteiro, beber uma bebida quente, mas vacilei. Resultado, acabei por andar às aranhas. Ainda fui ver se havia uma mesa num espaço agradável ao pé de casa. Sem esperança, atalhei por um beco, desconfiado de que àquela hora os aposentados já o teriam tomado de assalto. Ao aproximar-me vi, nitidamente, através da larga parede de vidro, olhares de quem não sabe o que fazer, olhares secos, pobres, alguns meio patetas, mas que não se cansavam de escrutinar quem passava. Ainda bem que não havia lugar. Caminhei de braço dado com o frio que, desesperadamente, queria guilhotinar o meu pescoço. Bem tentou, mas eu não deixei. Entrei na livraria, havia uma mesa vaga. Sentei-me. Tentei escrevinhar, não consegui. Fiquei durante algum tempo a fingir que fazia nem sei o quê. Bebi um café. Olhei em redor e entretive-me a ver as pessoas, as suas caras, os seus maneios, as diferentes formas de beber e de comer, os diferentes bamboleios das ancas, e perguntar por que razão é que põem a tocar uma música capaz de irritar a sensibilidade de quem procura um espaço para ler, escrever, namorar, conversar ou meditar. Atribuí a culpa do meu insucesso de final de tarde à qualidade da música, que mais parecia um vaporizador mata-moscas do que outra coisa. Levantei-me e deambulei entre as mesas e as estantes com livros. Há muito que não entrava naquele espaço. Tantos livros, sedutores. Fiquei subitamente surdo, não ouvia a música. Comecei a entristecer. Queria ler aquilo tudo. Que loucura, pensei. Vou comprar um. Qual? Para quê? Não leio a maior parte dos livros, adio eternamente o momento das suas carícias e reflexões. Andam lá por casa aos pontapés, debaixo e em cima de tudo o que se possa imaginar. Nem vale a pena descrever onde e como amontoo os livros. Tenho esperança de que um dia consiga um grande feito, lê-los. Claro que não vou conseguir. Tantas obras. Bons títulos. Excelentes escritores. Evito tocar-lhes, porque às vezes tenho medo de ser contagiado. Quando abro um livro é habitual ver delicados farrapos da alma do escritor, como se fossem flocos de neve a cair em redor, criando um belo mundo de fantasia. Não lhes toquei. Sabia que ao primeiro toque acabaria por ser aprisionado. Resisti até ver o nome de um autor. Não me recordo como apareceu na minha mão. Tentei evitar tocar-lhe, mas não consegui. Comecei a ler algumas passagens e, subitamente, já estava noutro mundo, via as pessoas, sabia como pensavam e o que queriam. Sabia a cor das suas almas, o calor dos seus pensamentos, os seus desejos, temores, tudo me parecia ser tão real que eu próprio duvidei quem era e onde estava. Um velho autor, um dos meus preferidos, escritor maldito. Atraem-me os escritores malditos, particularmente este, que viveu e sofreu muito, fome, fome de verdade, e que acabou por ser internado numa instituição psiquiátrica onde morreu na mais completa pobreza e repúdio social. Nasceu pobre, viveu grande parte da vida pobre, morreu pobre, mas consegue uma proeza única, enriquecer quem o lê. Espero que tenha passado o resto dos seus dias na mais perfeita e tranquila loucura.

Tenho-o aqui, a meu lado. Já o abri novamente e sinto belos flocos de neve a inundar-me. Valeu a pena o dia de trabalho ter acabado mais cedo. Vou lê-lo, melhor, vou saboreá-lo.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Morte. Um testemunho…

Falar da morte pode parecer um pouco bizarro. De um modo geral fugimos ou escondemos este tema. Morte é escuridão, morte é tristeza, morte é ausência de cor. Mas há ocasiões em que a morte é sinónimo de paz quando acompanhada de um belo sorriso, fazendo com que as cores ganhem vida.   

- Vim agradecer-lhe. Calei-me. Recordei as três conversas que tivemos há alguns meses. - Sabe, graças a si consegui viver com tranquilidade os últimos meses de vida do meu pai. - Faleceu? - Sim, tal como o senhor doutor tinha prognosticado. - Então, não chegou a comemorar os sessenta anos. Era por estes dias, não era? - Era, mas não importa. O seu sorriso emanava uma tranquilidade de espírito e vontade de viver como nunca vi. - Quando ia ver o meu pai lembrava-me sempre das suas palavras. Sorria-lhe. Tocava-lhe. Gostava imenso que lhe massajasse as costas. Tinha muitas dores, mas ficava mais calmo. Falávamos através do calor dos corpos e da troca de olhares. Quando saía do hospital, ficava sempre com a sensação de que poderia ser a última vez. Sabia que não havia esperança. O senhor doutor ajudou-me a encarar a morte de uma forma muito especial.  

O seu sorriso, que é mesmo belo, testemunhava o que estava a sentir. Depois tentei rememorar o que lhe tinha dito e cheguei à conclusão de que não disse nada de especial. Claro que já "vivenciei" a morte muitas vezes. Não sei se foi a minha experiência profissional ou a familiar que a influenciaram. Talvez tenham sido as duas, mas a familiar pode tê-la marcado de forma particular. Creio que sim. O que eu sei é que uma conversa sobre a morte se pode transformar num diálogo de amor e num poema de alegria.   

- Levantou-se, abraçou-me com emoção, dizendo em voz baixa: - Não sei o que lhe dizer mais. Consegui, graças a si, viver uma experiência única, a agonia e morte do meu pai com dignidade e muito amor... 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Conversas...

 Recordo de tempos idos. A memória alimenta-se de recordações. Obriga-me mesmo a reviver velhas histórias como se acabasse de as viver.

Adorava visitar velhos locais, próximos no espaço e remotos no tempo. Aos domingos mergulhava numa casa de pasto onde convergiam pessoas do povo; talvez fosse a sua extravagância semanal. Para mim não era extravagância, era mesmo uma necessidade, beber e comer num meio rico, popular, onde podia ainda auscultar o sentido das pessoas, deliciar-me com as suas conversas cruzadas e aprender a ver o mundo de forma diferente. Adorava o período em que os emigrantes regressavam às origens. Muitos deles, tendo vivido mais de quarenta anos em França, não perderam a forma de falar das suas terras, embora entremeada pelo hipotético ganho cultural adquirido lá fora, com o qual se convencem que sabem mais e têm soluções para tudo.

O “franciú” comia e bebia que nem um alarve. Meteu conversa com um casal, também, de emigrantes.

- Donde são?

- Ah! Eu conheço. Conhecem fulano e sicrano?

O casal disse que sim. A partir daqui, entre duas garfadas e um copo de vinho avidamente emborcado de uma só vez, começaram a desfilar histórias atrás de histórias e formas de solucionar os problemas do país, da décima, dos carros, das portagens, como legalizar e não legalizar carros, um longo e interessante arrazoado em que ouvi de tudo.

- Vejam lá agora como são as coisas. O melhor é não ter nada. Então não é que agora a décima é para triplicar a pagar!

- Pois é, "intigamente" era melhor. Dizia o vizinho.

- É como os carros, custa-me mais "pró" legalizar do que aquilo que pagam.

- Sabe minha senhora. - Minha senhora não! A senhora é do seu marido, não é minha.

- Peço-lhe desculpa, mas são uns chulos de merda, com licença da palavra. A conversa continuou à volta de inúmeros assuntos, em que a forma de pronunciar certas palavras passaram a ser rainhas e senhoras, onde "buber, abaxou, câmbra, ós pois, ar congelado" e muitas outras eram pronunciadas da forma mais natural.

O casal despediu-se e o alarve continuou a mastigar e a beber. Em frente, à distância de duas mesas, um senhor de idade aproveitou o silêncio da sala de pasto para entrar na conversa.

- Olha lá, não me estás a conhecer? Sou o Zé Manel tipógrafo que andava sempre a assobiar e tinha os queixos afiados. Não te estás a lembrar de mim? Eu fazia os bailes pelas aldeias. Eu quando entrei disse para mim, eu "conheci" esta cara.

O outro olhava-o e acenou com a cabeça. Depois a conversa reiniciou-se com o parceiro, explicando que esteve em Lisboa 48 anos, enquanto o outro dizia que já andava há mais de quarenta em França.

- Estás com ar diferente.

- A idade muda muito as pessoas. Há dias nem reconheci o filho do "condogueiro" e, ainda há pouco, vi uma senhora que julgava que era a mulher do gago. Pus-me a reinar com ela e tive de lhe pedir desculpa.

- Comigo passou-se uma coisa parecida. Foi na Amadora. Vi um gajo de bicicleta e pensei que era um conhecido, um tipo muito vaidoso. Deixei-o ir ao "ralenti" e "amandei-lhe" um murro nas costas. - É pá! Não era o gajo. Disse ao tipo: - Desculpe, julgava que era o Manel Marques. - Não faz mal. Depois conversámos um pouco. E não é que ele também conhecia o Manel Marques? - Segunda-feira vou estar com ele e devolvo-lhe o murro. - Ah, Ah! Coisas. Ria-se abundantemente e sem o estorvo da placa.

O outro ouvia-o, mas não falava porque empanturrava a boca de comida.

- Comi que nem uma maravilha. Comi à bruta!

Entretanto o outro rematava:

- Padre sou eu que comi uma sardinha!

Aproveitou o arroto para mudar de conversa e dar seguimento à conversa.

- A gente está sem rei e sem roque. Dizem que fizeram uma democracia, mas não, o que fizeram foi uma anarquia. E para explicar a sua opinião socorreu-se de vários exemplos entre os quais um, que nunca passou pela minha cabeça.

- Vê lá que até para as filhas conhecerem o corpo de um homem tinham de tomar banho com o pai. Isto é que uma liberdade! A liberdade tem limites.

Era hora do almoço, os copos que ia contando não era por aí além, mas prometia.

A tarde daquele domingo foi de ócio, as adegas abriram as portas para arejar o mofo, as tascas de convívio engalanaram-se com boas buchas, e, até ao jantar, pelo menos, aqueles fígados devem ter tido um trabalho do caraças, enquanto os seus cérebros divagavam pelos acontecimentos do país, pondo toda a sua criatividade ao dispor da gente.

Tascas! Santuários da vida do português genuíno. Eu julgo que continuo a ser…

sábado, 18 de fevereiro de 2023

O tolo

Boné na cabeça, mãos atrás das costas, cabeça de lado, em constante movimento e sempre a olhar para a rua como se estivesse à espera de alguém. O tolo, que não via há alguns anos, estava no mesmo sítio, em frente da porta do cemitério. Viu-me e comentou sem olhar: - A Marisa não me vem buscar. E são horas do almoço. O relógio está a trabalhar. Às tantas só vou almoçar à noite. Mas hoje é dia de Natal ou quê? Entre as múltiplas frases olhava para o pulso como a querer confirmar o tempo.  

- Esteve a trabalhar? Perguntei. – Estive. Estive à espera da Marisa. Nunca mais me vem buscar para comer. – E quem é a Marisa? – É a minha colega. Trabalha neste escritório aqui. – Muito bem. Já agora pode dizer-me o que é que o senhor faz? – Eu sou chefe. – Chefe de quê? – Chefe de primeira. Ainda cuspo muito para comer. A que horas se almoça hoje? São horas. Ia respondendo às minhas perguntas sempre de costas voltadas, olhando para o lado esquerdo à espera de que alguém chegasse. Sentado à sombra de uma delicada árvore deixei-me ir naquele estranho diálogo. – O senhor trabalha aqui há muito tempo? – Quinze dias, só! – E já é chefe? – Para o ordenado que tenho ainda é pouco. – Mas diga-me lá uma coisa. O senhor é chefe dos coveiros? Não respondeu. Talvez não tivesse ouvido, - Há muitos coveiros? – Há. – Quantos? – Quatro. – Afinal há quanto tempo está aqui? – Há muito. Há vinte anos. Sorri e comecei a recordar a conversa que tivemos há alguns anos em que o tempo era a coisa mais elástica e volúvel que alguma vez vi. Tinha aspeto limpo e cuidado. Quem o trata fá-lo com carinho e atenção. Continuei a conversar com ele através das suas costas. Nunca me olhou de frente. Sempre à coca da chegada da Marisa. – Já trabalhou hoje? – Estou à espera da Marisa para comer. Eu tenho de comer. Se uma pessoa não come morre. Vai para debaixo da terra. E não é que a gaja demora! Com catano. São quase duas horas e ela não vem. Para a próxima não a deixo ir a lugar nenhum. Primeiro come-se, depois trabalha-se. – Ela foi fazer o quê? -  Se calhar foi às compras. – A esta hora está quase tudo fechado. São horas de almoço. – Ela já devia cá estar. Eu como às três horas. Depois as horas fazem-se tarde de mais. – A que horas é que sai? – Saio às duas. – Mas são uma e meia. Olhou para o relógio e ripostou: - São duas e meia, são. – Como é que se chama? – José Manuel da S. R. – Mora aqui perto? – Moro na Presa, antes de chegar à capela do Morais, lá para cima. Eu nem sei se a mulher dele já morreu ou não. Ainda há tempo a vi. 

A conversa continuou sempre em redor da vinda ou não da Marisa. – Ela esqueceu-se de que tenho de comer. São três horas e daqui a pouco são três e vinte e ela sem vir. Olhava constantemente para o relógio cujos ponteiros, se trabalhassem melhor do que a sua cabeça, deveriam estar na uma e quarenta. – Ora, a gaja já cá devia estar. Ela e a outra. Eu como às duas horas, duas e meia, três horas, as horas que eu quiser. E ela demora-se. – Onde é que vai comer? – Aqui, no depósito. – Onde?! – O Nélson já comeu e há muito tempo. Eu é que não. – Quem é o Nélson? – É o coveiro cá disto. – Já agora o senhor quanto ganha por mês? – Dois contos e tal. Mas isso é pouco! – Já pediu aumento? – Há quanto tempo! Pedi à Marisa. Mas a Marisa hoje está demorada. Entretanto, rapa do bolso um longo desdobrável e pôs-se a lê-lo. – Que lista tão grande! O que é isso? – São as horas extraordinárias que ela me deve. – Desde quando? – Desde fevereiro. – Ela já não volta. Disse-lhe. Não respondeu. Permanecendo sempre de costas olhava atentamente à espera do que não tem que aparecer. O tolo, no seu discurso enigmático, ia construindo o seu mundo virtual, uma espécie de Pokémon desejoso de ser apanhado por alguém que pudesse ajudar a treinar a sua pobre mente. Repeti: - Ela hoje não vem. – Vem, mas só às quatro horas, quatro e meia. Já são quase. – Mas que horas são? Olhou para o relógio e disse: - São quase três horas. – Três ou duas? – Duas. – Pois são. Foi então que me recordei da frase do tolo com a qual definiu, e bem, o trabalho, “cuspir muito para comer”.  

Foi o que eu fiz!  

Aprendemos sempre com alguém, até com um tolo.

“Biscoitos, pijamas e petingada” …

Manhã nublada e um pouco adocicada. O cheiro do mar leva-me sempre para o mundo da fantasia, mas o dever obrigou-me a cumprir o horário. Portões abertos. Uma senhora de idade, a sorrir, aproximou-se. Perguntei-lhe se me podia ajudar. Sorriu. A meu pedido identificou-se como a diretora da instituição. Fiquei um pouco envergonhado. Não reconheci a irmã. Pedi-lhe desculpa. Muito delicadamente perguntou-me se não queria tomar um café. – Claro que sim, irmã. Levou-me até uma pequena sala onde tirou um café ao mesmo tempo que destapava uma caixa cheia de biscoitos. – Senhor doutor, coma se faz favor. Fiz ontem à noite. Não disse que eram para mim, mas eu entendi perfeitamente que foi essa a intenção. Tirei apenas um bocado, dizendo ao mesmo tempo que a minha condição não permitia comer mais. Sorriu. Confesso que me soube bem, a ponto de lhe dizer: - Irmã. Posso roubar um para levar? – Senhor doutor. Roubar, não! No final das consultas vai levar biscoitos.

As consultas correram muito bem, mas de uma forma original. A primeira funcionária, sorridente, apresentou-se vestida com uma indumentária inusitada. Pijama quente e vistoso. Viu que fiquei intrigado com a vestimenta. Foi então que me explicou que era o “dia do pijama”. Todas as funcionárias apareceram na consulta vestidas com confortáveis pijamas de todas as cores e feitios. Quase que me apeteceu usar também um. No final da manhã, a irmã veio despedir-se e entregou-me um saco com todos os biscoitos que estavam na caixa. Senti logo que ia sair asneira. E saiu. Enfim, também tenho direito a fazer algumas, neste caso foi “abençoada”.

Terminei cedo, o que me permitiu passear um pouco pela cidade, relembrando velhos tempos.
A minha intenção não foi recordar, embora sentisse a presença do passado a meu lado. Um estranho silêncio envolvia o presente. Não quis ouvi-lo. Apenas quis fazer horas para o almoço num restaurante conhecido. Sentei-me e olhei para o mar. Estava um pouco enraivecido. Assim que se aproximou o meio-dia desloquei-me até o velho espaço de restauração. Será que está aberto? Pensei. Sim, estava. Ao entrar, duas senhoras, uma delas a dona, cavaqueavam. Olhou-me e reconheceu-me através de um suave sorriso. Indicou-me a mesa. A funcionária, uma jovem, nomeou os dois pratos. Escolhi a “petingada”. Fui generosamente servido. Não apareceu mais ninguém. No final a dona aproximou-se. Foi então que lhe disse: - Tinha-lhe dito que quando viesse passaria por aqui.  

A história é simples de contar. O dono, que era o seu pai, um bom conversador, tratou-me sempre com enorme simpatia. Na última vez perguntei pelo patrão. A jovem empregada estremeceu bruscamente. Ficou tensa. Após uns breves segundos, em que demorou a dissipar a surpresa, disse: - Mas o senhor Zé faleceu! Como se eu tivesse de saber. Depois contou-me tudo o que se tinha passado. A minha curiosidade levou-me a perguntar-lhe o que iria acontecer ao restaurante. “A filha vai tomar conta”. Pedi-lhe para a chamar. Manifestei-lhe as minhas condolências e contei algumas peripécias passadas com o pai. No final disse-lhe que sempre que fosse à cidade iria almoçar ali, não só porque a comida era boa, mas em homenagem ao pai. O único sítio, onde nunca escolhia a refeição. – Então, veio almoçar, não é verdade? Faça o favor de se sentar. Vou arranjar algo de especial. O senhor não vai arrepender-se. No final, dizia sempre: - Tinha ou não razão? Claro que tinha. Sempre. - Está a ver? Prometi e aqui estou. Sorriu, abraçou-me e deixou cair duas lágrimas.

 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Não me recordo do seu nome…

Vivi na estação de comboios, quase que no meio das linhas e paredes meias com a fábrica de serração. Lembro-me de muitos carregadores. Eram homens muito duros que utilizavam o corpo para mudar o mundo e ganhar algum dinheiro para comer, beber e viver. Viver? Fingiam. Vestiam de azul-sujo e frio, longe do belo azul do céu sob o qual trabalhavam desde a aurora invadindo a noite sem dar conta da negridão que sobre eles caía. Brutos, capazes de levar no lombo cargas impensáveis, subindo e descendo estrados que chiavam ao peso dos seus pés, muitas vezes desnudados. Os sacos de serapilheira eram a única armadura dos seus dorsos e cabeça. Mal falavam. Nos pobres e raros intervalos faziam as suas refeições. Navalha, boroas, chouriças e vinho. Muito vinho complementado com vários copos de três aviados na tasca à laia de sobremesa. O suor e o odor do vinho encharcavam a atmosfera misturando-se com os aromas da serradura, do trigo, do querosene, do cheiro dos animais, do carbureto e do tabaco mais ordinário que já fumei até hoje, os Kentucky. Estranha e complexa mistura que à noite era engolida pelo fumo das fogueiras, à volta das quais descansavam os corpos, libertando as suas almas cheias de medos, pecados e tentações. A embriaguez reinava. Era o único prazer a que tinham direito. Se é que poderia ser considerado como tal. Gente simples, dura e bruta na sua mais genuína expressão. Conheci alguns. Muitos, mesmo. Nos dias de folga iam ter com a família ou descansavam. Alguns dormiam no dormitório em camas móveis que se abriam como se fossem triângulos acabados de desenhar. Um deles tinha uma barca lá para as bandas de Treixedo. Fiz algumas vezes, com o meu pai, o percurso de comboio entre as duas estações. Uma viagem de cerca de seis quilómetros, se tanto. Até poderíamos ir à pé. Depois levava-nos na sua barca usando uma longa vara. Conhecia as profundezas do rio. Não usava remos. Passeei algumas vezes naquele troço aos domingos com enorme satisfação. Tinha um sorriso delicado. Muito suave para a brutalidade típica dos carregadores. O nosso lanche era sempre partilhado e ajudava-me a molhar os pés no belo rio Dão nas tardes quentes de verão. Não me recordo do seu nome. Se o meu pai fosse vivo dispararia logo como se chamava e obrigava-me a passar pela vergonha, dizendo, “Esqueceste do seu nome? Era teu amigo e cuidava tão bem de ti!”. Um dia, durante a realização de manobras na estação, morreu debaixo da máquina a vapor muito perto da minha casa. Nunca mais andei na sua bela barca ancorada no rio Dão perto da estação de Treixedo. 

Não me recordo do seu nome, mas não esqueço o seu sorriso, cuidados, a velha barca e o suave e enigmático odor de um rio que teima em correr sem parar no meu coração como se fosse o mais puro e nobre sangue da vida…