Manhã de Natal passada numa modorra agradável, sem compromissos. Procurei num jornal se um conto sobre esta época tinha sido publicado. Respondi há semanas a um convite aos leitores para enviarem contos sobre esta época. Recordo que diziam que tanto podiam ser alegres como tristes. Fui buscar um que tinha escrito há algum tempo, um conto de verdades transformadas em fantasias, em que a felicidade, subjugada pelo sofrimento da vida, consegue sempre manter-se à tona recusando-se a desaparecer. Um lenitivo que merece ser acarinhado. Fiquei agradado pelo "feito". Só espero que tenha conseguido transmitir alguma esperança e felicidade a quem o leu.
"Fantasia de Natal"
O Natal é um período de apelo ao melhor que há em cada um de nós. É objecto de atenção e de inspiração para diversos intelectuais, poetas, pintores, músicos, escritores, religiosos e cidadãos anónimos.
Quem não tem recordações de Natal? Eu tenho. A mais velha reporta-se à primeira vez que tive a noção da festa. Tinha uma árvore enfeitada, acompanhei todos os passos festivos e ouvi a promessa de que o Menino Jesus ia dar-me uma prenda!
– Prenda?! Quando? Quando? Eu quero vê-Lo!
– Durante a noite, não sabemos a que hora chega, são muitos os meninos.
Entusiasmado, nessa noite tive dificuldade em adormecer. De repente começo a ouvir falar alto dizendo:
- É Ele! É Ele!
Levantei-me a correr para O ver mas nada! Olho para a árvore e vi um lindo carro vermelho. Afinal tinha estado mesmo ali! Fiquei deliciado com o raio do carro que andava assim que se lhe dava corda. Foi pena não ter visto o Menino Jesus. No dia seguinte, na Igreja da Misericórdia, dei-lhe um beijo e agradeci-lhe o lindo carro vermelho.
Nos anos seguintes ansiava por este período, o mais belo do ano. No entanto, comecei a reparar, após o regresso à escola, que muitos meninos não recebiam prendas, quanto muito um saquito de pinhões, de nozes ou de passas. Para mim tratava-se de uma situação muito intrigante. Perguntava lá em casa por que razão muitos meninos não recebiam prendas. As respostas não me convenciam muito, ficando com a suspeita de que o Menino Jesus não tratava todos do mesmo modo, o que não era justo.
Numa manhã de Natal uma raparigona da vizinhança perguntou-me quais foram as minhas prendas. Eu disse e mostrei-lhe o que o Menino Jesus tinha dado. Ela riu-se e com uma satisfação danada começou a gozar-me dizendo que quem dava as prendas eram os pais. Quanto mais lhe dizia que não tinha razão, mais ela ria e sopeteava. Furioso, entrei em casa e perguntei como era! Acabaram por dizer que a rapariga, que ainda hoje, quando a vejo, me faz recordar a raiva do tal momento, tinha razão. Em sinal de protesto, não fui à missa e não liguei aos brinquedos desse ano.
Apesar de tudo, tive que me adaptar à nova situação e todos os anos vivia com intensidade este período. O que me custava mais era os que pouco ou nada recebiam. Em contrapartida, deixava que partilhassem dos meus brinquedos que acabavam por durar muito pouco tempo!
De ano para ano, a forma de encarar o Natal modificou-se sem perder de todo a fantasia criada em criança.
Histórias ao redor do Natal tenho-as muitas mas há duas que não consigo esquecer.
Numa noite de consoada, preparado para atacar a mesa, fui chamado para ver um vizinho. Assim que cheguei vi que algo de grave estava a acontecer. Deitado na sua cama e rodeado por muitos familiares, o maior tartamudo que já conheci até hoje, mas que afirmava que “até falava bem, o que lhe faltava era a pausa”, olhou para mim e tentou dizer qualquer coisa. Não conseguiu. Com um olhar sereno e um ligeiro sorriso nos lábios, apagou-se que nem um passarinho enquanto ouvia o último batimento cardíaco. Olhei para os familiares, fechei-lhe os olhos e voltei para casa. Ia a entrar quando ouvi alguém chamar-me. Parei e ouvi que uma tia velhota estava mal em casa do filho. Em poucos minutos estava ao seu lado. Assim que me viu, deitada no sofá da sala, disse:
– Ai Manelzito (era uma das poucas pessoas que me tratava daquela forma) estou a morrer!
Mas fez esta afirmação com muita ansiedade
– Ó tia, está cá agora!
Enquanto colocava o estetoscópio sobre o seu peito descarnado, recordei-me de que já tinha tido um enfarte e que padecia de angina grave. Assim que comecei a auscultação, agarrou-me a minha mão esquerda, repetindo:
– Olha, vou mesmo morrer.
Desta feita, fez a afirmação com muita calma e, passado algum tempo, não muito, o estupor do estetoscópio, pela segunda vez naquela noite, ouviu o último batimento de um velho coração. Fechei-lhe os olhos e regressei a casa. Era quase meia-noite, não tinha ceado, nem tinha apetite. Comi alguns doces e perguntaram-me o que tinha acontecido.
– Foram dois velhotes que adoeceram. É noite de Natal, emocionam-se e depois, claro, sentem-se mal.
A outra história ocorreu numa enfermaria de um hospital pediátrico. Uma das minhas filhas, com seis anos de idade, foi vítima de uma grave doença algumas semanas antes do Natal, tendo que permanecer bastante tempo no hospital, continuando ao longo de muitos anos a sofrer das sequelas da mesma.
Na noite de Natal, depois de consolar os outros filhos, desloquei-me mais a minha mulher à enfermaria. A quase totalidade das crianças sofredoras não tinham os pais ao seu lado, mas a atmosfera encheu-se de uma estranha magia com a cumplicidade das enfermeiras. “Alguém” bateu nas janelas da galeria, imitando o Pai Natal, e, logo a seguir, era quase meia-noite, distribuíram-se miminhos, prendinhas e doces, ignorando soberanamente as regras.
É comum ouvir-se que os mais belos e puros sorrisos são os das crianças. Mas naquela noite, os sorrisos das crianças tiveram um duplo e estranho encanto. As suas máscaras de sofrimento desapareceram, ao mesmo tempo que transmitiam uma sensação de paz e de serenidade muito difícil de explicar…
Nessa noite, consegui dormir, pela primeira vez nas últimas aterradoras semanas, com tranquilidade, graças à fantasia do Natal.