Aos domingos esforço-me por levantar um pouco mais tarde, sabe-me bem e fico com a sensação de ter descansado, como se uma hora ou uma hora e meia a mais servisse para alguma coisa, às tantas não é mais do que o desejo de gozar o prazer do dolce far niente, a expectativa de não ter compromissos. Cumpri o ritual de domingo de manhã, com a ida ao café e a leitura do jornal. Sentei-me na esplanada, sob um sol de inverno a querer agredir as meninges, porque o espaço interior já estava todo repleto por funcionários do estudo.
Lembrei-me, após o almoço, de ter lido que havia uma feira de velharias em Miranda do Corvo, primeiro domingo de cada mês. Um bom pretexto para ir a tão encantadora localidade, e o tempo empurrava para a passeata. Sol, muito sol, que faz bem ao espírito e ao corpo. Cheguei e não vi nada, andei às voltas até que estacionei. Meti-me por umas ruelas e desfrutei da paisagem urbana mesclada de ruralidade encantadora. Voltei ao parque principal e decidi interpelar um sujeito de meia-idade: - Boa tarde! Diga-me uma coisa, esta praça não é a praça José Falcão? – É sim, senhor professor. Fiquei admirado com o tratamento, mas antes de lhe perguntar o porquê do tratamento, adiantou: - Não foi o senhor que ficou a substituir o professor Goulão? – Fui. – Ele foi meu professor. Após esta troca de palavras, perguntei-lhe, meio atabalhoado, pela feira das velharias anunciada, hoje, no jornal. – Pois é! Já não a vejo há algum tempo. É aqui que a fazem, de facto, no primeiro domingo de cada mês. Coçando o queixo disse-me: - Vamos perguntar àquele pessoal. Oh Zé, não há feira de velharias? – Há! – Onde? – No mercado, por causa do tempo, do mau tempo do inverno. Olhei para o céu e nem uma nuvem. Indicaram-me onde ficava o mercado, que eu conheci em tempos, durante uma campanha eleitoral. Fui a pé. Fez-me bem e recordei alguns episódios passados naquela localidade. Quando cheguei ao mercado, já os feirantes tinham começado a arrumar as suas coisas, mas, mesmo assim, tive tempo de sobra para espiolhar com algum pormenor o material exposto. Ainda estive tentado a adquirir dois santos, uma Santa Luzia e um São Judas Tadeu, ambos de terracota, com expressão estética interessante e pouco vulgar, mas hesitei. Hesitação de que às vezes me arrependo. Não consigo controlar nem explicar porquê. Andei, dei voltas e mais voltas, e estava a ver que me ia embora sem adquirir nada, quando, ao sair pela porta, olhei para a última banca e vi duas interessantes garrafas. Garrafas de pirolitos? Há mais de meio século que não via nenhuma. Ao mesmo tempo que sopesava uma delas, emergiram no meu pensamento inúmeras recordações, umas atrás de outras. – Quanto quer pela garrafa? – Cinco euros. Peguei numa nota de dez euros e fiquei com as duas.
Quando as comprava, em miúdo, pagava quatro tostões por uma, e cheia, agora tive de pagar dois contos de réis. Mas valeu a pena, porque onde iria encontrar numa tarde de domingo motivo para despertar tão belas recordações por dez euros? Em lado nenhum. Sentei-me na esplanada do parque, durante algum tempo, a beber uma bebida fresca, um “pirolito” moderno sem açúcar, a observar os fregueses, a idealizar o que poderia escrever sobre tão interessante bebida e a gozar a beleza da tarde e do ambiente corvino.
Meti-me a caminho, mas em vez de ir por uma das duas estradas habituais, guinei o volante, no último instante, em direção a Condeixa, e fui pela serra a desfrutar uma paisagem desconhecida, mas que me encheu de prazer até esbarrar na velha estrada, conhecida desde há muitas décadas, quando ia para a tropa, em Tancos, e que me estimula os sentidos através da misteriosa paisagem dominada pela serra de Sicó. Não consigo compreender a atração daquele espaço como se tivesse sempre vivido ali. Então, agora, que vou com alguma frequência a Ansião, passando pelo Rabaçal, sinto um encanto e um prazer insaciáveis face à beleza, tranquilidade, jogos de luz e silêncios daqueles campos e montes, como se os conhecesse há milénios.
Enquanto conduzia ouvia o chocalhar das garrafas de pirolito dentro do saco de plástico do qual sobressaía o som das esferas, ressoando dentro delas como se estivessem a partir. Qual quê, partir uma garrafa de pirolito não é fácil, o vidro é grosso e eu que o diga, porque em pequeno tinha dificuldade em as quebrar mesmo atirando-as contra a parede de granito para poder retirar as esferas e jogar ao berlinde com elas.
Em casa do meu avô, na adega pequena, havia algumas grades de pirolitos, provenientes de um café que tivera em tempos. Estavam perdidas naquela escuridão. Avisaram-me de que não deveria beber o seu conteúdo, eram velhas. Por vezes, agarrava numa, espetava a esfera de vidro para dentro com o polegar, tinha de fazer alguma força e botava fora o conteúdo que, não raras vezes, espirrava para a cara, quando as agitava em demasia. O que eu queria era a esfera. Consegui obter algumas na esperança de competir ao jogo do berlinde com os meus amigos, mas não prestavam, eram leves de mais e escancelavam-se quando levavam nas trombas com um berlinde duro, dos bonitos, pesados e cheios de cor. E, também, não conseguia fazer mover os outros. Foi então que pedi que me arranjassem umas esferas de aço, havias as muito pequeninas, que não davam para jogar, mas havia outras, do tamanho dos berlindes que eram verdadeiras armas. Consegui algumas na fábrica da serração, mas não era fácil obtê-las. – O que é que tu queres? Perguntava com alguma brutalidade o homem das máquinas. – Umas esferas para jogar. – Não tenho nenhuma. Vai-te embora. Aborrecido ia ter com o encarregado, que tinha sido padrinho do casamento do meu pai, a quem eu também chamava padrinho, e pedia-lhe que me arranjasse uma ou duas esferas. Sempre reinadio, metia-se comigo à maneira, e dizia: - Logo à tarde quando a fábrica apitar, esperas à saída que eu te vou arranjar algumas. Piscava-me o olho e à hora aprazada, lá estava à sua espera. Passava por mim e sem dar nas vistas, abria a mão e despejava nas minhas algumas esferas. Com aquelas eu queria ver quem é que me batia, pesadas, atirava para cabos de rolha os berlindes dos outros. Um sucesso. Mas mesmo assim, gostava das esferas dos pirolitos que me ajudavam a passar o tempo. Quanto ao conteúdo, eu obedecia, não bebia as que estavam na adega, mas comprava pirolitos na estação, na taberna do Rogério. Não apreciava muito o conteúdo, ficava com a sensação de que fazia mais sede do que a matava. Tinha uma carga de açúcar elevada. Usava os pirolitos mais como arma de brincadeira, agitando vigorosamente e, depois, ao carregar na esfera, molhava os meus amigos com um violento jacto.