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quarta-feira, 12 de abril de 2023

“Pinturas” …

Os dias podem ser longos e suaves ou curtos e duros, o pior é quando são longos e duros. A outra combinação é apenas para embelezar, um gesto de retórica pura. 
Ainda não vi tudo. Todos os dias tenho uma surpresa. Deveria reconverter os meus interesses para colecionador de surpresas. 
Vi vários trabalhadores de diferentes atividades. Um grupo de “pintores" surgiu a mando da sua entidade. Nada de anormal. Vieram como estavam, “fardados” com as suas roupas de trabalho. Pelo aspeto deveriam trabalhar mesmo, sujos e pintados. Aceitei. Não é a primeira vez que acontece. No grupo de “sujos e pintados” surgiu um que me chamou a atenção. Alto, com a cabeça coberta pelo carapuço do blusão, ar meio-atolambado, sentou-se à minha frente. O quadro era mesmo impressionista. Deixava ver meia dúzia de espaços azulados, a testemunhar as cores primitivas das calças e três borrões limpos e acinzentados no blusão. O resto parecia ter sido pintado à espátula. Um quadro humano, pontilhista, mexia-se à minha frente. Cores diversas, branco, amarelo, vermelho, sobrepunham-se e ondulavam umas sobre as outras à medida que se mexia. Tanta sujidade. Fiquei por momentos na dúvida se era sujidade ou “arte”. Pensei, se tirasse uma foto iria ser um sucesso. Nunca vi tantas e coloridas manchas. Já vi muito. Sou cauteloso e tolerante nestes casos. Faz parte da profissão, mas o efeito que provocou foi de tal ordem que lhe perguntei: — Costuma ir ao médico nesta figura? Olhou-me e respondeu: — O patrão ordenou-nos vir assim! Não comentei, obviamente. Pensei, “Estes patrões não passam de uns espertos”. Enviam os desgraçados como estavam apenas para poder cumprir as obrigações legais, ou seja, ter o tal papelinho que diga que está apto a trabalhar, não vá aparecer o inspetor. Omito o nome da empresa. O que posso dizer é que a “bota bate com a perdigota”, ou seja, perfeita identidade nas cores e no efeito abstrato das mesmas! 
O efeito impressionista não ficou só pela roupa. Após ter tirado as cascas externas, vi tatuagens. As tatuagens eram múltiplas, coloridas, desgarradas e despropositadas a querer demonstrar a essência do seu ser. Por fora estava sujo, mas sob a roupa não ficava atrás. A combinar com este duplo efeito, verdadeiramente impressionista, aliaram-se os odores. Múltiplos, e tão coloridos como as pinturas. Impressionaram, e muito. Aquando do exame neurológico, o pobre do martelo conseguiu uma proeza única, a agitação dos joelhos libertou pequenas nuvens de pó colorido, o direito, branco e o esquerdo, vermelho. Como não podia fugir, tossi. 
Apto. Claro. Apto para trabalhar e para pintar paredes, mas também para ser uma verdadeira tela da vida…  
 

terça-feira, 4 de abril de 2023

“Ouvir em silêncio” …

O senhor entrou alquebrado. Em menos de um minuto explicou-me a razão. A sua mulher morreu há duas semanas. Parei de imediato o meu relógio e aguardei que falasse. Aprendi desde há muito que devo ficar em silêncio perante a dor. A dor grita. A dor quer libertar-se. A única saída é falar, contar, comentar e ter alguém para ouvir. 

- Foi tudo muito rápido. Começou com vómitos, falta de apetite e muito cansaço. Descreveu com pormenores as idas aos médicos, ao hospital, até que um exame revelou ter um cancro no fígado. – Se fosse só no fígado! Também já tinha nos pulmões e sabe-se lá mais aonde. Fui vê-la várias vezes ao hospital, mas não lhe dizia nada. Um dia telefonou-me. Perguntou-me se era a “doença ruim”. Desesperado disse-lhe que sim. No dia seguinte fui até ao hospital. Não sabia o que fazer ou dizer. Disse-me que estava mal. Muito mal. Nessa semana fez anos, cinquenta e quatro anos. Passados quatro dias faleceu. Nesse dia, começou a dizer-me muito baixinho, “Quero morrer. Quero morrer”. Morreu agarrada à minha mão. O seu sofrimento era mais do que visível. Sentia-se de uma forma particular. – Agora sou viúvo! A minha mulher faz-me muita falta, não para cuidar de mim, tomar conta da casa ou fazer a comida. Nada disso. Faz-me muito falta porque era a minha companhia. Não tivemos filhos. Estou só. Agora não sei o que vai ser da minha vida. Pouco ou quase nada lhe disse. Absorvi com muito respeito a sua dor, a ponto de ter necessidade de contar esta história, porque a dor que me provocou precisa de ser também libertada. Já ouvi histórias deste género ao longo da vida. Muitas! No final, agradeceu vivamente por o ter escutado e pediu-me desculpa por me ter incomodado. Reagem sempre da mesma maneira, agradecem e pedem desculpa. 
Ouvir em silêncio ajuda imenso. Silêncio sem tempo é uma porta aberta para eliminar a dor…