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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

“Animal despacha-mortos”

Há muitos anos, quando participava num jantar familiar primaveril, tive conhecimento do falecimento de um tio que estava hospitalizado num outro hospital que não era o meu. Era ainda um homem novo. Como o tinha visitado no dia anterior fiquei meio admirado. Realmente a situação clínica tinha vindo a deteriorar-se desde há alguns anos, mas como nunca estamos preparados para enfrentar o desenlace, daí a minha surpresa. Vivia só, era rebelde, excêntrico, um verdadeiro suicida ao retardador em contraste com os imediatistas. Não aceitava os conselhos, chegando ao ponto de ter comportamentos perfeitamente opostos aos que aconselhava, o que me levava a fazer exercícios desesperantes para contornar a sua turbulência mental. Um cabo de trabalhos! Só quando se sentia mesmo mal é que revelava alguma humildade, mas nem sempre. Um comportamento ditado, em parte, julgo eu, pelo facto de ter ficado órfão muito cedo. A falta dos pais na educação dos filhos é por demais conhecida. Um trauma que, nalgumas personalidades mais propensas, pode originar atitudes de rebeldia e de excentricidade.
Avisaram-me de que teria levar roupa para o vestir. Fui a casa e levei alguma roupa minha. Entrei na sala anexa à enfermaria onde já se encontrava. O enfermeiro, entretanto, começou a fazer a múmia e eu perguntei-lhe onde e quando é que o vestiam. Olhou para mim e disse que não sabia. Fiz-lhe nova pergunta, desta feita para saber para onde é que o levariam. – Para a capela! – Neste estado?! Encolheu os ombros, respondendo-me que a “funerária de serviço” já tinha sido contactada e eles se encarregariam de tudo. - Mas vão levá-lo agora? – Agora não podemos. Não há maqueiros e não temos macas na enfermaria! – Ah! Então explique-me quando é que vão preparar o corpo? – Sei lá! Amanhã. - Amanhã?! Amanhã o corpo está rijo que nem um carapau! Entretanto contactei a funerária. Informaram-me que a urna estava a caminho da capela localizada a umas boas dezenas de metros no meio de um pequeno bosque. Informei o enfermeiro do facto, o qual me disse, novamente, que não podia levar o corpo porque não havia macas nem maqueiros na enfermaria. Fui então que me disponibilizei para o levar. – Mas como? se não tenho maca! - É fácil. Levo-o às costas! – Se não se importar! – Claro que não! É da família, sabe, e como já o conheço bem, decerto que não vai importar-se. Vai daí pego no meu tio, coloco-o ao ombro e atravesso o pátio, o jardim e depois um pequeno bosque com as árvores a sacudirem-se perante tão inusitado quadro numa estranha noite estrelada.
No interior da capela, já se encontrava o cangalheiro que, ao ver-me, carregando um corpo enrolado num lençol, deverá ter sentido um sobressalto. Com a sua ajuda, procedemos aos preparativos, colocando-o, devidamente composto, na urna.
Confesso que na altura senti uma estranha pressa em resolver as coisas, pressa essa que me incomodou, como se quisesse libertar-me do corpo. Durante estes anos todos, sempre que pensava neste episódio, sentia uma certa sensação de “culpa”. Mas agora estou mais tranquilo. A leitura do ensaio “Autópsia da imortalidade”, incluído na obra de Fernando Savater, “A vida eterna”, permitiu compreender a minha atitude de “animal despacha-mortos” por oposição à expressão com que Unamuno caracterizava o homem, “animal guarda-mortos”. “O cadáver do próximo (sobretudo quando se trata de alguém realmente próximo de nós, um parente ou um amigo) é uma presença embaraçosa em grau extremo, simultaneamente desoladora e repelente, que parece albergar sempre qualquer coisa acusatória, até mesmo uma certa ameaça. Daí que, historicamente, se haja tentado todo o tipo de estratégias para nos desembaraçarmos desse resíduo enigmático, mostrando respeito e afecto para com ele, mas garantindo também o seu desaparecimento de cena e exorcizando a possibilidade do seu indesejável retorno”.
Afinal, fiz o que devia fazer...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

Andava ha algum tempo a pensar escrever "isto", ou algo semelhante.
Assim, aqui fica, dedicado a todos quantos entenderam já que ha um caminho sinuoso a cumprir, que esse caminho não tem fim. Tem em determinado ponto um portal, onde a matéria se separa do espírito.

Quando o meu tempo findar
Não enterres o meu corpo
Entrega-o sim, mas ao mar
Sê do meu desejo arquétipo

Não quero que bichos o comam
Nem que a terra o desfaça
Quero que os fundos recolham
Os restos d'esta barcaça

Quero o seu descanso eterno
Entre peixes e corais
Como que ao ventre materno
Voltando pelos seus ais

Quando o meu tempo findar
Entrega-o naquela morada
Sem esquife ou cortejo a acompanhar
Só o corpo, nu, sem mais nada!

Não sei se renascemos ou não caro Professor Massano Cardoso, mas sempre gostei muito de aquários.
;)

Massano Cardoso disse...

E eu de poemas...

Suzana Toscano disse...

A morte de alguém muito próximo é sempre o símbolo do nosso fracasso, parece que está ali a acusar-nos de não termos conseguido conservá-lo do lado de cá, de o termos deixado ir sabe-se lá para onde, abandonado à sua solidão eterna.Dantes, a preparação dos mortos fazia parte do ritual da família, era uma espécie de dever final, vestir, arranjar, enterrar. Hoje já quase só sobra o último, alguém fez sua a profissão de despacha-mortos e é fácil encontrar pessoas já adultas que nunca viram à sua frente uma pessoa sem vida. Evitamos tudo o quepossa confrontar-nos com a finitude, já somos mais despacha-vivos que despacha mortos...