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domingo, 14 de março de 2010

Viagem na distância do tempo

"Porque quase tudo se concentra num resumo sem grande importância, depois de ter parecido que justificava canseiras demoradas, debates prolongados, vigílias de angústia, pontos finais. Nisso se gasta a maior parte daquilo que chamam o nosso tempo, e que é simplesmente a nossa vida, porque é em unidades de vida que o tempo se mede. Entretanto, descura-se o essencial nos nadas a que não sabemos quem nos obriga".
Adriano Moreira , "A Espuma do Tempo Memórias do Tempo de Vésperas"
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Tenho andado a pensar nisto, como é que se conta uma vida? A questão surgiu-me porque irei em breve reencontrar uns amigos que conheci há mais de vinte anos e com quem convivi de perto durante um ano, quando vivi fora do País. Mas a distância e a vida de cada um de nós não permitiu que voltássemos a ver-nos, embora nunca se tivesse quebrado o hábito de um telefonema de quando em quando, o postal no Natal, os parabéns nos anos e sempre, mas sempre, os votos de um reencontro. Na altura as nossas filhas eram pequenas, as deles tinham a mesma idade, vivíamos no mesmo prédio e enfrentámos juntos as atribulações da adaptação à vida na América, nós vindos deste cantinho perdido na Europa, eles vindos de um País que era maravilhoso antes de ser destruído por uma terrível e interminável guerra, o Líbano.
Apesar de sermos tão distantes no Globo tínhamos uma vida parecida, uma mesma maneira de olhar os problemas, de educar os filhos e muitas e muitas vezes resolvemos juntos as dúvidas e as angústias que nos assolavam. Eu e ela, sobretudo, partilhámos de perto a integração das crianças na mesma escola, aprendemos os segredos da vida no bairro, ocupávamos as horas livres a conversar ou a desvendar a cidade que nos acolhia, a mim transitoriamente, a ela num novo rumo de vida que sempre pensou que seria para sempre. Ainda me lembro bem do dia em que íamos tranquilamente na rua e se ouviu um estrondo enorme, por um incidente qualquer, e ela ficou lívida, paralisada de horror, chamava-a e não respondia, de repente transportada para Beirute, as bombas, o impulso entre abrigar-se ou fugir. Foi a primeira vez que percebi o que era o medo a sério.
Mandaram-me há meses uma fotografia da neta e reparei então que já decorreu quase uma vida inteira desde que nos separámos, vamos sentar-nos numa casa que eu não conheço embora ainda os imagine na sala de dantes, com as coisas que tinham ganho o seu lugar à medida que iam abrindo os caixotes chegados de longe. Ela explicava-me que a carpete ali parecia pequena, que o espelho estava por cima de outro móvel, que a mesa ficava acanhada, tudo era pensado por referência a um mundo que deixara para trás, as coisas também ganham uma vida própria e depois teimam em não aceitar os novos espaços que lhes destinamos.
Penso como será possível escolher o mais importante de todos estes anos, passo em revista todos os factos e percebo que o mais importante é difícil de contar, não é o que aconteceu mas o que foi acontecendo, como se viveu e não o que se viveu. Lembro-me de um jogo que as minhas filhas faziam nos escuteiros que era descreverem-se sem recorrer a nenhum facto concreto que as situasse numa família, numa terra, numa escola, num meio social. Tinham que aprender a “traduzir-se” pelo seu sentir, pelo que preferiam, pelo que recusavam, de modo a que os outros pudessem então interpretar, decifrar as suas influências e concluir assim que tipo de pessoa é que afinal eram.
Um exercício difícil mas de uma sinceridade exigente, longe de atavios ou de rótulos que abreviam juízos e servem de muleta, ocultando tantas vezes a verdadeira essência da pessoa. Ao fim de vinte anos, uma conversa entre pessoas que mantiveram preso o laço da amizade merece o esforço de que se fale sobretudo do essencial, do que ficou de cada um de nós depois de vividos os anos centrais da nossa vida de adultos.
E, a pensar nisso, é como se já tivesse começado a minha viagem até casa deles.

8 comentários:

Catarina disse...

Quando se fazem grandes amizades – aquelas amizades que nascem ao primeiro encontro – nunca a distância porá fim. Bom reencontro.

Bartolomeu disse...

«reparei então que já decorreu quase uma vida inteira»
Não! Permita-me, cara Drª Suzana: Aquilo que reparou, ao ver a fotografia da neta que o casal seu amigo lhe enviou, foi que decorreram várias vidas em simultâneo e que novas vidas surgiram.
Um milagre que a todos continua a surpreender, apesar de universalmente natural.
Não tema o reencontro, cara Drª. A Senhora é uma excelente comunicadora e dotada de uma imensa sensibilidade. Foram essas características que a fizeram aproximar e tornar-se amiga desse casal Libanês. Confie. A alegria do reencontro será imensa e, o(s) assuntos de conversa, fluirão naturalmente.
O problema irá ser, quando chegar a hora inevitável do regresso.
Eles, não vão querer devolvê-los e vocês, vão querer trazê-los. Ficará a incerteza angustiante, se irão voltar a encontrar-se...
Mas, é assim a vida dos seres humanos, recheados de sentimentos e, o coração e a memória servem para manter vivos os momentos e as pessoas que nos são queridas.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Pois é, Suzana, como é que se conta uma vida? Havendo pouco tempo é um exercício difícil para não ser igual a tantas outras vidas. Com um pouco mais de tempo, fará toda a diferença o modo como será contada a vida e todas as vidas que a compõem. Serão as emoções e os sentimentos vividos colocados na voz, no olhar e nos gestos que permitirão contar as histórias como se fossem hoje vividas. Será uma espécie de um "diário" falado. Como a Suzana é uma pessoa muito comunicativa e muito sensível aos "pormenores" da vida, quer-me parecer que vai precisar de muitos dias para ir conversando, e também escutando, as vidas de um lado e de outro.
A propósito de contar a vida, ouvi há uns tempos uma entrevista com uma senhora que decidiu escrever um livro da sua vida para deixar aos netos. A senhora tinha a vida para contar mas pouca veia literária, confessava, para a escrever e na escrita reflectir as emoções e sentimentos vividos. Contratou uma empresa que presta este tipo de serviços. Fiquei admirada, pois não tinha ideia da existência destes serviços. Mas achei o projecto extraordinário.
A Suzana tem tudo. A vida e o resto, que é muito, para a voltar a viver...

Floribundus disse...

tem o nome de minha irmã.
leio sempre os seus textos sem comentários
gostava que visitasse o meu blogue
viático de vagamundo
http://www.viticodevagamundo.blogspot.com

saúde e fraternidade

Suzana Toscano disse...

Obrigada Catarina, cá estarei depois a dar notícias :)
Caro Bartolomeu, está mesmo muito bem visto, são várias vidas as que percorremos, é difícil falar d enós sem falar dos outros, dos que nos acompanham, dos que já morreram e dos que nascem e que também são nossos, deixando-nos entrar um bocadinho, através do que lhes ensinamos, na vida que seguirá depois do nosso tempo.
Margarida, que lindo comentário e essa referência ao diário falado. É engraçado, já me aconteceu várias vezes, que há pessoas que nos agradam quase de repente, com quem se estabelecem laços e que resistem ao tempo, mesmo quando há um longo afastamento, quando nos reencontramos parece que sempre estivémos próximo, nesses casos o "diário falado" é fácil, basta "continuar a conversa" porque tudo se ajusta com toda a facilidade.Mas nunca me tinha acontecido uma ausência tão grande e tão distante, ao telefone e em poucos minutos só chega para dizer que está tudo bem e o que foi evoluindo. Além disso há uma expectativa mútua, como é que cada um foi capaz de cumprir os seus sonhos? Vamos desiludir-nos ou vamos encontrar a antiga chama que nos fazia acreditar que ía ser possível mudar o mundo? De certo modo, é uma viagem no tempo mas na vida real.
Cara floribundus, volte sempre, já fui espreitar ao seu blogue, que lindas imagens, deve dar-lhe muito trabalho fazer pesquisa e anotar factos tão curiosos da história.E obrigada pelas visitas, esperamos que continue a gostar.Cumprimentos à minha homónima!

Bartolomeu disse...

Curto bué oferecer coisas às pessoas, é um vício que herdei...
Assim, ofereço-lhe, cara Drª. Suzana este clip de Rod Stewart, que considero um hino à amizade e ao desejo de atravessar distâncias, para rever a quem gostamos.
http://www.youtube.com/watch?v=Bpbuqh12oj4

"can you ear me thru the dark night?"
Quando a amizade é forte, sincera e leal, podemos ouvir-nos através das mais violentas tempestades!
Desejo-lhe uma excelente viagem, cara Drª. Suzana.
;)

Francisco Velez Roxo disse...

Uma vida pode contar-se entre a melodia do velho fado do António Mourão "ó tempo volta para trás", ou mesmo até com a musica popularucha "pelos caminhos de Portugal".Ou ainda com a leitura de uma parte do poema de Jorge de Sena- Ode para o Futuro:
Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Fica-me a convicção que este escrito da Susana está a meio caminho da esperança de um bom futuro e da convicção que "o céu pode esperar".
Gostei de ler.E recordar o mesmo exercicio que a minha filha tambem fez no mesmo agrupamento de escuteiros.
Afinal para viajar na distancia do tempo basta apenas dar um passinho amigo.
FVRoxo

Suzana Toscano disse...

Obrigada caro bartolomeu, adorei o presente, vem mesmo a propósito!
Caro Francisco, o ó tempo volta pra trás não me seduz mesmo nada,como dizia o meu avô "quem já andou não tem para andar" e gosto dessa certeza do que já foi vivido. Mas o poema de Jorge de Sena é lindissimo, já o adoptei para a viagem :)
è engraçado que também se lembre desse jogo dos escuteiros, os pais também fizeram a sua recruta :)
Abraço amigo