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terça-feira, 28 de maio de 2013

Uma palavra...


Ouço o vento zangado a soprar nas minhas costas. Não o entendo, não sei o que pretende, talvez queira assustar-me. Incomoda-me aqueles longos gemidos de dor a adivinhar outras dores. O sol dança, o sol esconde-se, também não deve gostar muito daquela agitação e as árvores rodopiam num bailado sem sentido, como almas possuídas pelo demónio.
Invade-me uma sensação de enjoo, deve ser cansaço do corpo e tormenta na alma. Refugio-me em pensamentos mas não os encontro. Leio e não vejo nada. Assusto-me com as pessoas que não temem o vento. Ouço-as a semear ventos. Nunca colhem nada, nem as tempestades. Sopram ventos da desconfiança, ventos da discórdia, ventos de dores, ventos desnorteados. Eu ouço-os e sinto medo. O sono invade-me lentamente como querendo roubar-me à realidade. Alicia-me com uma breve ida ao paraíso, onde não há vento, gritos de dor e ameaças de sofrimento. Sinto um suave peso nas pálpebras. Uma agradável sensação penetra no corpo paralisando os músculos e as ideias. O vento continua a soprar. Parece-me que estou a deixar de o ouvir. Entretanto, o crepúsculo do sonho deixa-se invadir por curtas lembranças. A jovem, tímida, vem atrás de mim, e pergunta-me, posso dar-lhe uma palavra. Olho para o seu semblante e reconheço-a das aulas, uma aluna atenta, sempre atenta. Uma das poucas que resistiram até ao último dia. Faz favor. É só para lhe agradecer as suas aulas. Gostei muito. Sorri e, meio atabalhoado, perguntei-lhe, como é que se chama. Rita. Posso dar-lhe um beijinho? Sorriu, encostou a sua face e cumprimentei-a, dizendo-lhe, obrigado, foi a melhor prenda que recebi até hoje. Ao rememorar este episódio os músculos adquiriram o tónus, o cérebro despertou com alegria e o vento desapareceu como que por encanto e com ele levou as minhas mágoas e medos, ficando a saborear tão belo episódio...

7 comentários:

MM disse...

Ainda vai havendo reconhecimento. Alias + que merecido! Parabens ao Prof e aluna.

MM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Suzana Toscano disse...

Há gestos que valem ouro, essa aluna é mesmo atenta e não é só às aulas! Vai ser uma excelente médica uma discípula à altura do mestre.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

No meio das tempestades surgem, quando menos se espera, brisas doces e suaves...

Bartolomeu disse...

Os maiores momentos da vida de um Professor, são certamente, quando recebem manifestações de apreço, como esta aqui tão bem descrita.
Não sei ao certo porquê, este texto lembrou-me o poema de Pessoa na sua Mensagem:
"O mostrengo"

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que a minha alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!

Ha que ter ânimo para continuar a lutar contra o "mostrengo" que a todo o custo deseja afundar a nau onde fomos paridos, tendo presente que vencidos os medos e os vendavais, alcançaremos a bonança. assim nos guiem a luminosidade da esperança e a vontade ferrea do querer.

jotaC disse...

Bastam pequenas coisas, pequenos gestos, até um sorriso!, para amenizar o momento de incerteza angustiante que vivemos, que tolhe os sentidos e tira sentido à nossa própria vida... Parabéns ao srº Prof e também à aluna, que soube ver para além do seu horizonte...

SLGS disse...

Como o compreendo, caro professor.
Muito imodestamente, mas salvaguardando as devidas distâncias, vou contar algo que, semelhante, se passou comigo. não sou professor, mas quiseram as circunstâncias que um amigo e director de um colégio, nos idos anos de 1971/72 me convidasse, numa aflição, a leccionar Matemática a uma turma do antigo 3ºano liceal, por não conseguir professor devidamente habilitado (na altura era possível).Sendo compatível com o meu trabalho, embora com alguma relutância, aceitei e, esforçando-me para ser sério e competente, levei a tarefa ao fim. Terminou aí e até hoje, a minha experiência como professor.
Acontece que no Outono de 2011, estando a comprar medicamentos numa farmácia, ao balcão, do meu lado esquerdo, se encontrava uma senhora em igual tarefa. A dita senhora abordou-me e disse:
-desculpe, não é o prof. fulano que leccionou matemática em tal ano, no colégio tal?
Respondi:
-nunca tendo sido professor, está absolutamente certa. Já depreendi que foi minha aluna, quer lembrar-me o seu nome?
- sou fulana e hoje, também sou professora;
-lembro-me perfeitamente, era muito boa aluna;
-e eu, senhor "prof." quero dizer-lhe que foi o melhor prof. de Matemática que tive em toda a minha vida de estudante.
CAIU-ME O MUNDO EM CIMA.
Vê, Sr. Professor, como o compreendo? Perdoe-me a imodéstia, mas é verdade.