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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sobre o incipiente

"O incipiente hodierno, da aldeia global que é a televisão, não é um indivíduo mediano, como o marido que aparece no ecrã a acusar a mulher de lhe ser infiel. É um indivíduo que está acima da média. Convidam-no para participar nos talk shows e nos concursos, precisamente porque é incipiente. Porém, o incipiente televisivo não é necessariamente um atrasado. Pode ser um espírito bizarro (como o descobridor da Arca Perdida ou o inventor de um novo sistema para o movimento perpétuo, que durante anos bateu à porta de todos os registos de patentes e de todos os jornais, e que finalmente encontra alguém que o leva a sério); pode também ser um escritor de trazer por casa que todos os editores se recusam a publicar, mas que percebeu que mais eficaz do que escrever uma obra-prima era baixar as calças em directo na televisão e dizer palavrões durante os debates culturais; ou pode ser a bas-bleu da província, que encontrou finalmente um político que se dipõe a ouvi-la soletrar umas quantas palavras difíceis a propósito das suas experiências extra-sensoriais.
Antigamente, quando os clientes da tasca faziam o incipiente ultrapassar o limite do tolerável, intervinha o presidente da junta, o farmacêutico, um amigo da família, que agarrava no desgraçado e o levava a vasa. Hoje, pelo contrário, ninguém leva o incipiente da aldeia global da televisão para casa, nem ninguém o protege, e o incipiente passa a desempenhar um papel semelhante ao do gladiador, condenado à morte para agradar à multidão. A sociedade, que protege o suicida da sua trágica decisão, ou o drogado do desejo que o iria conduzir à morte, não protege o incipiente televisivo; antes pelo contrário, encoraja-o, tal como antigamente se encorajavam os anões e as mulheres com pêlos a exibiram-se nas feiras populares".

Umberto Eco, A Passo de Caranguejo, Gradiva, 2012.

5 comentários:

Tonibler disse...

Das nossas discussões entre a forma e o conteúdo, exclui-se tudo o que envolva Eco. Essa forma vale tanto como o conteúdo.

Anónimo disse...

Profundo de mais para mim o seu comentário, meu caro Tonibler.
Importa-se de simplificar o que nos quer transmitir de modo a que as minhas limitações não me impeçam de o entender?

Tonibler disse...

Peço desculpa, está perfeitamente incompreensível :)

Estava só a admirar a forma como o Eco diz as coisas e os casos em que pega para falar do ser humano. Peço desculpa...

Anónimo disse...

:)
De acordo. Aliás, todo o texto é magnífico. Extraído de uma sua comunicação apresentada em Veneza há 13 anos, mas perfeitamente atual e assertivo, sobre a perda de privacidade. Vale a pena ler.

Suzana Toscano disse...

Esse livro é fantástico mas demolidor de quase tudo o que, orgulhosamente, chamamos de "modernidade", mudámos o aspecto das coisas mas os fenómenos sáo muito semelhantes, evoluímos pouco ou nada no substancial.